Essa frase, dita por Zack Snyder, é tão, mas tão errada, que nem sei por onde começar…
Houve um momento em que o projeto de adaptação cinematográfica da HQ Watchmen esteve nas mãos do diretor Terry Gilliam, mas infelizmente a coisa nunca caminhou como deveria – muitos anos depois, Zack Snyder assumiu as rédeas da direção, tirou o projeto do papel e o resto é história.
Porém, sabe-se que o lendário produtor da Warner, Joel Silver (de filmes como Matrix, por exemplo), que estava envolvido com Gilliam naquela época, em entrevista ao site Comingsoon.net, revelou os planos de Gilliam para o roteiro: “O que ele fez foi contar a história como era mas, ao invés de toda a coisa da viagem intergaláctica, o que ele fez foi questionar como a existência do Doutor Manhattan mudou o equilíbrio da economia e da estrutura política mundial. Ele sentia que aquele personagem tinha sido o responsável pela alteração da realidade. Então, o Ozymandias convenceria, essencialmente, o Doutor Manhattan a voltar no tempo e impedir o incidente responsável por sua criação, de modo que o Doutor Manhattan nunca existisse. Como ele seria o único personagem com superpoderes reais, ele voltaria, impediria que se tornasse o Doutor Manhattan e o vórtex resultante faria com que eles se tornassem apenas personagens de uma história em quadrinhos. Então, Rorschach, Coruja e Silk Spectre estão de repente em Times Square e tem um garoto lendo um gibi. Eles se tornam apenas pessoas vestidas como os personagens ao invés de SEREM os personagens. Então o garoto lendo o gibi diria “hey, vocês são como na minha HQ”. Era uma conclusão muito esperta, muito articulada e dava uma resolução bastante satisfatória para a história”.
Snyder, reconhecidamente por ser do tipo cabeça-quente, não ficou calado. E respondeu, para o Huffington Post: “É engraçado porque a maior crítica contra o meu filme é que nós mudamos o final”, afirma, dizendo que este final proposto por Gilliam é “completamente insano”. E ele completa: “Sim, os fãs iam enlouquecer com este final. Então, honestamente, eu fiz ‘Watchmen’ para mim mesmo. É provavelmente é o meu filme favorito de toda a minha filmografia. Eu amo a graphic novel e eu realmente amo tudo sobre o filme. Eu amo o estilo. Eu simplesmente amo o filme e foi um trabalho de amor. E eu fiz porque sabia que o estúdio faria o filme de qualquer jeito e eles iam enlouquecer. Então, eu o fiz para salvá-lo dos Terry Gilliams deste mundo”.
Bom, vamos lá. Tirando completamente a frase de Snyder do contexto, ela já estaria errada. Porque ninguém salva um filme de Terry Gilliam. O cara é um cineasta simplesmente genial – responsável pelos melhores filmes do Monty Python, por exemplo. Um filme como Brazil tem as doses de crítica social que seriam necessárias para uma obra como Watchmen. E 12 Macacos sozinho já mastiga, com farinha, toda a filmografia do Zack Snyder — e olha que eu até gosto do cara, sou fã de 300 e Madrugada dos Mortos e não me incluo entre aqueles que odeiam Homem de Aço. Mas é preciso ser honesto: qualquer filme seria beneficiado ao ter a direção segura de um sujeito do calibre de Gilliam. Assim sendo, “salvar um filme de Terry Gilliam” não faria qualquer sentido.
De volta ao contexto, não desgosto do Watchmen do Snyder. Os efeitos são incríveis (com destaque para o Dr.Manhattan criado digitalmente, trazendo aquela aura de divindade), a direção de arte é primorosa e minuciosa, a trilha sonora é sensacional. Jeffrey Dean Morgan como Comediante e Jackie Earle Haley como Rorschach estão perfeitos. E tenho profundo respeito pela decisão da trama ser mantida numa década de 80 alternativa, na qual qual Richard Nixon foi eleito pela terceira vez consecutiva. Mas acho o filme apenas divertido. Ponto final. Tem lá seus bons momentos mas, no balanço geral, está bem longe de ser histórico, clássico, um marco da indústria cinematográfica. É um trabalho de amor. Mas a gente não vive só de amor nesta vida.
Snyder se engana ao achar que pelo menos o meu problema com o seu filme reside no final – ou apenas nele. Não, meu caro. O buraco é BEM mais embaixo. O primeiro grande problema do filme é o que chamo, desde a época d’A-ARCA, de “o pecado da ultrafidelidade”. Snyder é um cineasta, um criador original como o próprio Alan Moore. E daí que ele tá fazendo uma adaptação? Ele tem absoluto direito de trabalhar para fazer sua própria obra, sem necessitar de uma reverência constante ao original – como foi o caso do sonolento Harry Potter e a Pedra Filosofal, no qual Chris Columbus chega a reprisar as mesmas falas do livro, tornando-se entediante e cansativo. No terceiro filme, veio o Cuarón e colocou o seu estilo. Bingo. Este é o lance com Watchmen. A seqüência de abertura, por exemplo, é linda, um primor. Mas só faz sentido para quem leu a HQ de Alan Moore – porque é uma enorme quantidade de informações atiradas ao mesmo tempo na tela e que teriam de ser esmiuçadas para que o espectador comum pudesse compreender a ambientação, o clima de paranóia, a transformação dos vigilantes de ídolos em ameaças – neste sentido, Brad Bird é muito mais inteligente na abertura de Os Incríveis, nitidamente inspirada em Watchmen. Para ver “Watchmen – O Filme”, eu não precisaria ter de ler “Watchmen – O Gibi”. Não é pré-requisito obrigatório. Mas acaba acontecendo. “Watchmen – O Filme” não tem vida própria sem “Watchmen – O Gibi”.
A obsessão por recriar detalhe após detalhe da série faz com que ele tenha medo de usar a tesoura e acabe lotando a trama de pontas e mais pontas que não vão se fechar e que poderiam muito bem ser eliminadas para que outros pedaços da história tivessem a oportunidade de ser melhor explorados. Por que insistir na cena da conversa entre Dan Dreiberg e Hollis Mason, o Coruja original, se a sua morte foi totalmente apagada mais para frente? E aquela última cena na redação do New Frontiersman, envolvendo o Diário de Rorschach? Ele não é sequer mencionado durante todo o filme como uma publicação de direita que Rorschach usava como leitura de cabeceira. A referência à “pilha dos lunáticos” fica perdida, sem nexo algum com a história.
Filmes não são feitos para fãs. Filmes são feitos para ganhar dinheiro. E para isso, precisam pensar em um público mais amplo, mais abrangente. Uma adaptação de HQs não pode agradar apenas aos fãs de quadrinhos ou será, inevitavelmente, um fracasso comercial. Cada mídia tem suas forças e particularidades. O diretor tem que ter coragem para manter o espírito do personagem ou obra que estão sendo adaptados, mas usando e abusando da força do meio no qual ele está sendo inserido a partir daquele momento. Snyder peca miseravelmente neste sentido.
Outro defeito? Ozymandias. Matthew Goode é uma escolha completamente equivocada para o papel. Seria necessário um homem mais velho e com um perfil diferente. Mais carismático, mais envolvente, que ficasse no ponto certo entre o arrogante e o angelical. O olhar blasé de Goode não reflete em nada a inteligência quase soberana de Ozymandias, que fica parecendo apenas um milionário mauricinho e entediado, que quer explodir umas bombas aí só para passar o tempo. Ele aparece muito pouco durante a história para que se tenha uma justificativa plena do final. Sabe-se quase nada de sua trajetória, de suas habilidades atléticas, da afeição do público por um dos poucos heróis que tirou a máscara antes mesmo da Lei Keene. A história vai passando e, em nenhum momento, fica totalmente visível o porquê de Veidt ser considerado o homem mais inteligente do mundo. Foi um erro terem tirado as suas pesquisas genéticas da história (Snyder não soube mesmo onde usar a tesoura) e muito menos a explicação sobre seu hábito de assistir tantos televisores ao mesmo tempo. Sejamos sinceros: a cena na qual ele vai contando sua história para Lee e Iacocca enquanto se dirige ao elevador é curta demais, não ajuda a dar tridimensionalidade ao sujeito e a entender tudo que ele conseguiu absolutamente sozinho em um mundo virado de pernas para o ar.
Ozymandias está diretamente ligado ao defeito de número 3: o final. Não, não sou um daqueles nerds xiitas que faziam questão da utilização da lula gigante. Antes mesmo de assistir ao filme, achei ótima a saída de Snyder ao trocar o imenso alienígena psíquico por explosões nucleares que colocariam toda a culpa no Dr.Manhattan. Mas é tudo conduzido de maneira apressada, sem ritmo, sem timing. Quando o Coruja e a Espectral libertam Rorschach, o filme se acelera de tal forma que você acaba descobrindo toda a maquinação de Veidt de maneira ligeira e quase superficial. O filme não te dá tempo de juntar as pistas, de saborear a descoberta. A investigação do Coruja e de Rorschach é desleixada e, vejam só, é tudo tão simples, as coisas caem no colo deles. E, como a representação de Veidt não é das melhores, você nem chega a ficar surpreso com a descoberta. No gibi, o personagem é retratado de maneira tão intocável, como uma estátua grega clássica, um patrimônio histórico, que você se recusa a acreditar que, de fato, ele seja o responsável por um plano destes. “Como assim? O cara é praticamente um santo!”, pensei na primeira vez que li a série. Nem precisei do Coruja dizendo que ele era um pacifista vegetariano. Alan Moore já tinha me feito comprar a idéia.
Aí, os heróis seguem para a base de Adrian Veidt na Antártica. Outro erro. Transformar sua colônia idílica de pesquisas para um mundo melhor em um templo gigantesco tentando emular Karnak só ajuda a dar uma imagem errônea sobre Ozymandias – agora, entendido como um megalomaníaco que quer destruir o planeta. Com aquele ar de soberba, Matthew Goode não convence ninguém na hora de explicar seu plano-mestre, suas motivações não estão claras, você jamais compra a idéia de que ele de fato acredita em suas boas intenções, de que ele realmente está convencido de que vai salvar o mundo. E, de novo, Ozymandias fica com os tons cinzentos de um vilão básico de histórias em quadrinhos mequetrefes. Faltou apenas a risada maquiavélica. A frase lendária, “eu fiz isso 35 minutos atrás”, tem seu impacto totalmente esvaziado.
O pior, no entanto, estaria por vir. Com cerca de duas frases, Ozymandias convence a todos, na sala do trono (Afe!), que terão que manter sigilo sobre o plano. Rorschach se recusa e vai embora. É interceptado e morto pelo Dr.Manhattan. Mas, diferente do que acontece no gibi, o Coruja presencia a cena do ex-parceiro sendo desintegrado. E a reação apaixonada que ele deveria ter tido na cena, cortada do roteiro, em que descobre a morte de Hollis Mason no bar, acaba tendo ali. O Coruja volta correndo para o interior da fortaleza e DÁ UMA LIÇÃO DE MORAL no Ozymandias, pegando-o pelo pescoço e enchendo sua cara de bofetadas. Repito: lição de moral. Quando ele e Espectral saem indignados, olhando para trás como se estivessem acima daquele homem completamente louco, fica claro que o final foi transformado em uma bobagem maniqueísta típica do cinemão hollywoodiano. Veidt é o vilão. Temos, portanto, uma divisão clara entre o bem e o mal. Não, não, não, não. Muito errado.
Nos quadrinhos, até mesmo os leitores acabam sendo convencidos de que seu plano de matar milhões para salvar bilhões, de causar uma tragédia para unir a humanidade, de derramar tanto sangue para enfim alcançar a paz, pode fazer todo o sentido. O grande antagonista da história é um dos homens mais bem-intencionados da trama. E o que é mais incrível: ele é tão inteligente e puro, com uma eloqüência imensa, que suas loucas maquinações não nos passam a impressão de loucura, mas sim de paixão, de desejo de mudar o mundo. Veidt é um personagem muito verdadeiro e superior, que fica acima de todos os outros no final, por mais que paire uma nuvenzinha de dúvida sobre sua cabeça. No filme, no entanto, ele é tratado como um verme aproveitador – que vai usar a tragédia para reconstruir a cidade usando suas empresas e encher ainda mais os bolsos de dinheiro, como fica claro logo depois no buraco de Nova York sendo colocado novamente de pé.
O grande trunfo dos quadrinhos originais de Watchmen está justamente em usar a metalinguagem para homenagear os quadrinhos dentro dos quadrinhos. Não sei se a proposta que Silver descreveu é de fato verdadeira. Mas, para mim, é fácil imaginá-la saindo da cabeça do Gilliam. E sendo conduzida por um cara como Gilliam. Seria uma mudança radical, muito mais radical do que a proposta por Snyder. Dane-se. Eu acho que seria lindo. E que seria uma forma magistral de brincar com a metalinguagem tão presente na HQ original. Seria um gibi dentro do filme. Se Gilliam errou em algo, foi em ter tido medo de rodar Watchmen, em ter considerado a orba “infilmável”. Tenho cá pra mim que, se ele continuasse mesmo à frente do projeto, seria a primeira vez que teríamos Alan Moore se aproximando do dito cujo de alguma forma.
A minha comparação original continua valendo: “Watchmen – O Gibi” é um arquivo enorme do Photoshop, com centenas de camadas que dão volume e sutileza a cada pedaço da obra. Transformado em filme, Watchmen virou um JPEG salvo para a web, com todas as camadas mescladas e as bordas meio borradas. De longe, a imagem pode até ser a mesma. Bonitinha, até. Mas tente mandar imprimir. Seus olhos vão reconhecer imediatamente a diferença.