Lançado recentemente pela Panini, primeiro volume da minissérie Império dos Mortos mostra que não basta ser um cineasta genial para ser um escritor igualmente genial de gibis
Vamos supor aí, por um momento, que o Neil Gaiman anuncia que vai dirigir um longa-metragem. Ele já fez um curta, um episódio de uma série de TV, mas não é a mesma coisa. Um filme inteiro dirigido pelo Gaiman, pensa só. Era óbvio que todo mundo ficaria empolgado, o cara é um gênio das HQs e da literatura – por mais que, no fundo, a gente saiba que isso não quer dizer que ele vá reproduzir a mesma genialidade em outra plataforma, outra linguagem. EM NOSSOS CORAÇÕES, a gente saiba que existe a grande chance de dar merda.
Então. Agora inverte. Pega um diretor como o George A. Romero. Quando se fala em zumbis no cinema, cacete, ele é O cara. A Noite dos Mortos-Vivos, de 1968, é tipo uma Bíblia para quem quer escrever qualquer coisa relacionada a este bando de cadáveres PUTREFATOS que caminham por aí. Então, a Marvel convida Romero para escrever um gibi. De zumbis, mas é claro. O mundo comemora. Gente, isso só pode ser muito foda. E ainda com arte do Alex Maleev, não tem como dar errado, né? Pois é, mas tem sim. Porque dirigir filmes e escrever gibis são coisas BEEEEEEM diferentes.
E isso fica claríssimo na primeira leitura de Império dos Mortos – cujo encadernado com o primeiro arco de histórias da minissérie acaba de sair no Brasil, pela Panini (tava programado pra dezembro, mas vamos que vamos). Se a gente comparar esta incursão de Romero com o que seu seguidor, Robert Kirkman, faz em The Walking Dead, os fãs podem se rasgar inteiros, mas Kirkman faz Romero comer poeira. Mas tipo assim, de longe, MUITO LONGE. Comparando uma história em quadrinhos de zumbis com outra, vejam. Não dá pra evitar e não dá pra negar.
A ideia geral da trama até que é bem bacana: estamos em Nova York, cinco anos depois do aparecimento dos primeiros zumbis. Com uma mão de ferro, o prefeito Chandrake protege a parte mais rica da população usando um exército muitíssimo bem treinado. Parte das ruas estão seguras justamente porque os mortos-vivos são capturados e usados como lutadores em uma espécie de arena montada em pleno Central Park. É neste contexto que surge uma brilhante médica que quer treinar os zumbis e provar que podemos viver em paz com eles se quisermos. O lance é que a doutora não sabe bem onde está se metendo – já que a Grande Maçã está infestada não apenas de zumbis, mas de outras criaturas sobrenaturais.
O conceito é realmente muito legal – mas o que pega é na hora da execução. Ao assistir à sua clássica trilogia de zumbis (A Noite dos Mortos-Vivos, O Despertar dos Mortos e Dia dos Mortos), percebemos claramente que o orçamento de Romero nunca foi dos maiores e mais representativos. Logo, ele compensa isso com criatividade, se focando em um pequeno grupo de personagens cujas histórias individuais ajudam a dar uma ideia do que está acontecendo no mundo ao redor. Somos apresentados à invasão dos zumbis graças ao microcosmo deste bando de sobreviventes.
Em Império dos Mortos, Romero não precisa se preocupar com limitação de orçamento. Estamos no mundo dos gibis, então a imaginação é o único limite. Logo, tudo fica grandioso, poderoso, surpreendente. Mas aí é que ele perde a mão na hora de conduzir a história. Acabam sendo muitos personagens e muitas subtramas rolando ao mesmo tempo. O autor não tem tempo de dar foco ao que é realmente importante: é a médica e sua relação com o treinador dos zumbis, é o segredo obscuro do prefeito, é a preparação para as eleições, é o comportamento degenerado do sobrinho de Chandrake, é um complô nas sombras pra derrubar o prefeito, é um grupo de malucos sulistas que resolvem invadir a cidade, é uma ex-policial morta que se torna zumbi e começa a demonstrar inteligência, é uma pequena menina órfã que se afeiçoa aos zumbis... Ufa!
É, você já entendeu que é coisa pra caralho. Tudo acontecendo junto e em pouquíssimas páginas. E você, pobre leitor, mal sabe onde diabos prestar atenção. Aqueles que deveriam ser os protagonistas simplesmente desaparecem em alguns momentos da história. Você não cria vínculos com os personagens, porque eles não têm tempo de se apresentar, de dizer a que vieram, de revelar o seu passado, de ser no mínimo carismáticos. Não dá pra gostar da tal da médica e nem odiar o prefeito. E com tudo isso apertado, momentos que deveriam ter um pouco mais de destaque são tratados na correria, em meros dois quadrinhos do tipo “preciso apertar pra caber tudo aqui”, e quando você menos percebe, está pensando “mas espera, será que eu perdi alguma coisa?”.
Faltou ao Romero um bom editor. Alguém que lesse o gibi e fosse honesto ao dizer: “Amigão, que história você quer contar de verdade? Que tal a gente se focar nela e nos seus desdobramentos, hein?”.
Vale lembrar ainda que esta não é, oficialmente, a primeira incursão de Romero no mundo das HQs. Dentro da coleção Toe Tags, da DC Comics, ele escreveu a mini The Death of Death, de 2004, baseada em um roteiro do próprio diretor para cinema que acabou nunca sendo usado. O tema era um zumbi que recobra a inteligência (olha aí, hein, alguém reaproveitando velhos temas...), lembra de seu passado e luta contra vivos e mortos-vivos para reencontrar a família. O resultado? Quem leu diz que é melhor esquecer. ;)
Império dos Mortos, ora vejam, também vai virar série de TV – encomendada pelo mesmo canal AMC de The Walking Dead e com Romero como roteirista/produtor executivo. Talvez este seja um formato no qual a história tenha mais chances de engrenar. Porque, pelo menos em teoria, a TV é uma plataforma que vai pedir que eles tenham foco. Que vão desenvolvendo os personagens pouco a pouco a cada episódio. E escolham bem os caminhos que querem seguir.
Talvez a televisão ensine Romero um jeito novo de escrever quadrinhos, afinal de contas.