George Martin e a magia por trás dos Beatles | JUDAO.com.br

A morte do clássico produtor dos Fab Four, aos 90 anos, acabou sendo tão sentida como se um dos próprios músicos tivesse partido. E faz todo o sentido, aliás

“Produtor musical é como o diretor de um filme. O compositor é o roteirista, a banda é o elenco e o arranjador é o cenógrafo”, definiu certa vez o veterano produtor Carlos Eduardo Miranda (responsável pelos primeiros álbuns de bandas como Raimundos e Mundo Livre S/A) para a revista IstoÉ Gente. O também produtor Arthur Joly complementa, num papo com a rádio Jovem Pan, dizendo que enquanto o diretor decide onde vai ser a cena, como os atores vão interpretar e viver o script, o produtor musical faz mais ou menos a mesma coisa, mas com a música. “Decide a ordem das músicas, qual o melhor ritmo, quais instrumentos utilizar”, explica.

No mundo da música, portanto, não dá pra dizer que o produtor faz a mesma coisa que o cara que carrega o mesmo nome faz no cinema. O produtor musical é mais do que um cara de negócios, o homem da grana – é um sujeito que tem que manjar de música tanto quando os próprios músicos. Tecnicamente, a gente diz que ele é a pessoa responsável por deixar a gravação master prontinha e completa para o lançamento. É ele que controla as sessões de gravação, treina e guia os músicos, supervisiona todas as etapas do processo de mixagem de todas as faixas...

Um bom produtor não é só o cara dos equipamentos, que manda a banda regravar aquele trecho mais uma vez ou arrumar a posição dos microfones, como a gente vê nos filmes sobre música. Tem produtor que chega até a compor e tocar instrumentos com a própria banda. Um dos produtor é um profissional que faz música DE VERDADE.

George Martin era um destes caras, considerado por muitos críticos especializados como um dos melhores da história. Dá pra sentir o tamanho da sua contribuição para o mundo da música ao ver o impacto que sua morte, na madrugada desta quarta-feira (9), aos 90 anos de idade, causou. Foram mais de 700 álbuns produzidos ao longo de cinco décadas de carreira. Músicos e fãs lamentaram a perda de um dos responsáveis pelos Beatles serem, de fato, os Beatles que conhecemos hoje.

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Outro George, Paul e Ringo

“Ele era um verdadeiro cavalheiro e uma espécie de segundo pai para mim”, declarou Paul McCartney em um post emocionado em seu perfil oficial no Facebook. “Ele guiou a carreira dos Beatles com tanta habilidade e bom humor que acabou se tornando um amigo de verdade para mim e para a minha família. (...) Mesmo quando foi coroado cavaleiro pela Rainha, não havia o menor traço de arrogância nele”. E ainda completa: “Se alguém merece o título de ‘quinto Beatle’, este alguém era o George”.

O próprio McCartney conta um episódio que é bastante ilustrativo da importância de Martin, quando o baixista apareceu com a ideia para a música Yesterday. A banda adorou e sugeriu que Paul cantasse a música solo, tocando sozinho na guitarra. Mas depois de uma primeira gravação, Martin chegou a disse: “Paul, tive a ideia de colocar um quarteto de cordas (dois violinos, uma viola e um violoncelo) nesta música”. E aí o beatle, ainda jovem, ficou um pouco contrariado. “Pô, George, não, somos uma banda de rock, não acho que isso seja uma boa ideia”.

Gentil mas firme, Martin insistiu: “vamos tentar e, se não funcionar, vamos com a sua versão solo”. Paul concordou e, no dia seguinte, deu um pulo na casa do produtor para trabalhar no novo arranjo. E foi aí que o músico teve sua primeira lição de como usar as variações das cordas para dar diferentes vozes a um quarteto. “Quando a gente finalmente gravou em Abbey Road com o quarteto de cordas, fiquei tão empolgado com o quanto a ideia dele tinha funcionado que saí contando pra todo mundo durante algumas semanas. Claro que a ideia funcionou, afinal esta é uma das músicas mais regravadas da história, com versões de Frank Sinatra, Elvis Presley, Ray Charles, Marvin Gaye...”, revela McCartney.

Nascido no ano de 1926, George Henry Martin era o filho de um carpinteiro e uma faxineira do norte de Londres, que simplesmente se apaixonou pelo mundo da música ao ver uma apresentação da London Symphony Orchestra na escola. Autodidata, aprendeu a tocar piano aos 16 anos. Treinou pra ser piloto, mas acabou mesmo tocando oboé profissionalmente anos 1940, antes mesmo de saber ler partituras musicais.

Formado na Guildhall School of Music, chegou a trabalhar cuidando do acervo de música clássica da BBC, até ir trabalhar como produtor na EMI. Inteligente, instintivo e com ótimo ouvido musical, logo se tornou mestre de todos os recursos da mesa de som do hoje lendário estúdio Abbey Road. Com 29 anos, já era o todo-poderoso do selo Parlophone, onde cuidava de artistas como a diva Shirley Bassey (aquela mesma do tema de 007 Contra Goldfinger) e comediantes como Peter Sellers.

Foi este Martin, já desfrutando de algum prestígio na cena mas ainda em busca de seu grande hit, que recebeu a visita de Brian Epstein, empolgadíssimo para mostrar a fita demo de uma banda de “caipiras” de Liverpool para a qual vinha trabalhando como empresário. Eles já tinham sido rejeitados por um monte de grandes gravadoras, mas Epstein era persistente. Quando ouviu os moleques tocando, o produtor não ficou lá muito impressionado.

“Eles eram estridentes”, já disse ele, muito depois, em diversas ocasiões. “Não eram lá muito afinados. Na verdade, não eram muito bons”. Mas quando conheceu Lennon e McCartney, Martin se encantou. Acostumado ao humor dos comediantes de rádio que gravavam em seu selo, sacou neles personalidade e bom humor que serviriam perfeitamente para ajudar a lapidar e polir o lado musical. E eis que resolveu fazer uma aposta e contratar aqueles tais de Beatles, afinal. Quando o disco Please Please Me, o primeirão, de 1963, enfim saiu e a música Love Me Do explodiu nas paradas de sucesso, ele sacou que tinha feito a coisa certa.

George Martin

O humor britânico era a principal cola, aliás, entre aqueles quatro músicos ainda em estado bruto, básico, ingênuo até, e o produtor mais de dez anos mais velho. Martin se tornou uma espécie de mentor, uma mistura de psicólogo, professor e paizão (ou, em alguns casos, irmão mais velho), que falava com eles sobre música mas também sobre a vida, sobre relacionamentos. Os Beatles se tornaram uma espécie de projeto pessoal ao longo dos oito anos seguintes.

A sofisticação musical que estava ali escondida nas músicas doces e de refrão fácil dos primeiros anos foi cada vez mais incentivada, para que o trabalho fosse ficando mais experimental, mais rebuscado, mais único. E Martin, pra garantir que as ousadias dos Beatles fossem possíveis, acabava sendo tão ousado quanto eles para driblar os recursos técnicos limitados da época. Afinal, comandando um selo pequenino como o Parlophone, ele tinha liberdade de ação o suficiente. Todas as loucuras e camadas sonoras de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), por exemplo, só foram possíveis porque ele pegou os simplórios gravadores de quatro pistas da EMI e juntou dois gravadores de rolo na mesa de mixagem. Com esta “mágica”, bingo, eis que surgiriam oito canais de gravação.

Sem George Martin, será que os Beatles teriam de fato soado como os Beatles? Será que a máquina formada por John, Paul, Ringo e George teria conseguido alcançar seu verdadeiro potencial musical?

George Martin, no fim, também foi responsável por mudar os rumos do mundo da música – ou do rock, pelo menos. Quinto Beatle? Pode ser. Mas talvez seja mais correto dizer que ele era o Beatle que fez os Beatles, afinal de contas.