Havia um Jack Nicholson entre eles | JUDAO.com.br

Stephen King jamais escondeu que uma de suas maiores decepções NA VIDA era aquela adaptação que Stanley Kubrick fez do seu livro sobre o alucinado Jack Torrance. Mas a pergunta ainda permanece: por qual motivo, mesmo?

“Kubrick fez um filme majestosamente apavorante, no qual você não vê ou compreende as sombras em cada movimento que os personagens dão”. Esta opinião, a respeito de O Iluminado (1980), é de ninguém menos do que Martin Scorsese, que colocou a produção como uma das 10 películas mais assustadoras da história em uma lista que fez pro Daily Beast. O cineasta não é o único que ama a obra de Stanley Kubrick: na sua lista de “melhores filmes de horror de todos os tempos”, a Rolling Stone deixou O Iluminado com a medalha de prata, atrás apenas d’O Exorcista; para o Guardian, o filme fica entre os top 5 da maestria no gênero.

Não por acaso, coisas como REDRUM, a clássica cena das gêmeas assustadoras no corredor do hotel, “all work and no play makes Jack a dull boy” e principalmente o “Heeeere’s Johnny!” de Jack Nicholson atravessando a porta com um machado se tornaram pedaços icônicos da cultura pop. Mas sabe que tem UMA pessoa que realmente não gosta do filme? “Eu acho que O Iluminado é um grande e belo Cadillac, mas sem nenhum motor”.

A frase, que dá uma boa medida do apreço pelo trabalho de Kubrick, é de ninguém menos do que o próprio Stephen King, autor do livro de 1977 no qual o filme é inspirado, em um papo com o Deadline. “Não dá pra fazer nada com ele a não ser admirá-lo como a uma escultura”, completou pro Paris Review.

O escritor conta que bateu um papo com Kubrick no telefone antes dele começar a rodar. “Você não acha que estas histórias sobre fantasmas são muito otimistas?”, disparou o cineasta. “Porque elas partem do pressuposto que, se existem fantasma, tem uma vida após a morte, você simplesmente não morre e pronto”. Então, King retrucou: “Kubrick, e sobre o inferno?”. E Stanley manda de volta: “Eu não acredito no inferno”. Como Stephen King já afirmou em seu livro de não-ficção Dança Macabra, no qual analisa o gênero que o consagrou, O Iluminado de Kubrick é um horror sobrenatural feito por alguém que não acredita no sobrenatural.

É, e o pior é que é isso mesmo.

Em 1980, numa entrevista para o The Soho News na qual divulgava o filme, Kubrick admitiu que sua visão foi deliberadamente diferente daquela que King defendia: “quero evitar a parafernália básica do filme de terror típico e contar a história de uma família silenciosamente enlouquecendo junta”. Ou seja: nada de fantasmas. Quem assiste ao filme, saca imediatamente que é tudo muito mais sutil, gradual, ambíguo, muito mais colocado na conta da loucura do que em seres ectoplasmáticos. Mas antes do filme sair, o escritor falou com a revista Fangoria, no finalzinho de 1979, relatando a sua visita ao set de filmagens, quando tanto Nicholson quanto Shelley Duvall já tinham acabado as suas partes. “Eu perguntei pro Stanley o quão próximo da história original ele seguiria e ele me disse que muito próximo, com apenas algumas mudanças, nada substancial”.

Acho que alguém contou uma lorota, não é mesmo? ;)

É compreensível, no fim, que Stephen King se emputeça com a versão de Kubrick, já que os conhecedores da obra do escritor do Maine sabem o quanto O Iluminado é um livro importante para a sua biografia. Jack Torrance é, dos muitos escritores que são seus alter-egos ao longo de sua bibliografia, aquele mais pessoal, o representativo de si mesmo. Ou, melhor dizendo, de seu lado negro. Aquele era um King, exatamente como Torrance, lutando contra o alcoolismo, querendo recuperar a sua família e a relação com seus filhos. Justamente por isso, King se incomoda com a performance do outro Jack, o Nicholson.

Sim, o filme tem uma porrada de diferenças com relação ao livro. Dos poderes de Danny Torrance, que ele usa e aceita com muito mais facilidade na versão impressa, passando pelo papel de protagonista (que vai direto de Danny para Jack, ainda que o título faça referência ao garoto), por uma Wendy bem mais passiva, submissa e vulnerável diante do marido abusivo — King costuma dizer que a sua Wendy revidaria — e até pelo final (no livro, o hotel desaba com Jack tendo um pequeno ato de redenção ao libertar a esposa e o filho; no filme, ele congela). Mas nada é tão diferente quanto as duas versões de Jack Torrance.

No livro, quando Jack chega ao Overlook, a gente já sabe um pouco a respeito de sua relação com a família. Ele é um cara de quem dá pra se gostar, mas que tem claros problemas com a bebida e com a autoridade que deve utilizar para disciplinar o pequeno filho. Aos poucos, ele vai sendo possuído pelos fantasmas do hotel e vai se tornando outra pessoa. Já o Jack Torrance do Kubrick é sinistro desde o começo, alguém com uma predisposição para o caos, um escritor nitidamente fracassado, em luta eterna com bloqueio criativo.

Exatamente por isso, Stephen King se opunha VEEMENTEMENTE à escalação de Nicholson para viver o protagonista. Pra ele, depois do papel desempenhado em Um Estranho no Ninho, seria fácil e rápido enxergar nele alguém que vai pirar, que vai se tornar o antagonista. Segundo King, faria mais sentido colocar um rosto insuspeito como Michael Moriarty, Jon Voight ou Martin Sheen como Torrance, alguém que a audiência jamais imaginaria pirar deste jeito, para que todos fossem apanhados de surpresa. Sei.

Seu Stephen King, olha só. Com todo o respeito ao sinhô, vou lhe contar que Nicholson não está perfeito no papel apenas por conta da intensidade de sua interpretação, mas sim porque os planos do Kubrick eram RIGOROSAMENTE estes. Era trabalhar uma família muito mais disfuncional e um patriarca completamente instável. “Jack chega no hotel psicologicamente preparado para se tornar um assassino”, explicou Kubrick. “Ele não tem que mergulhar muito em sua própria raiva e frustração para se tornar completamente incontrolável. Ele é um cara bastante amargo por seu fracasso como escritor. Ele é casado com uma mulher que despreza. Ele odeia o filho”.

O Jack Torrance de Stephen King é potencialmente bom: um homem problemático mas que ama profundamente a família e acaba pirando graças à ação dos fantasmas. O Jack Torrance de Stanley Kubrick é potencialmente mau: um maníaco em potencial, uma bomba relógio prestes a explodir e que, trancafiado num hotel com neve pra todos os lados, deixa sair o demônio que já existia em si (os fantasmas não são NECESSARIAMENTE nada mais do que visões de sua mente perturbada).

E com isso, definitivamente, King não se conforma.

Em 1978, Stephen chegou a dizer que Stanley perguntou sua opinião sobre um final no qual Dick Hallorann (Scatman Crothers) também piraria, matando Wendy, Danny e a si mesmo — e então os Torrance, agora como fantasmas, estariam permanentemente presos no Overlook, para todo o sempre. “O público te mataria se você matasse personagens com os quais você se importa”. Alguém devia apresentar George R.R. Martin ao Stephen King, talvez. De qualquer maneira, Kubrick estava longe de ser este otimista incorrigível. Só que, mesmo assim, por MUITO pouco ele não fez uma concessão pro velho Rei, mantendo uma cena na qual veríamos, pós-morte de Jack, a esposa e o filhote no hospital. Mas, depois de algumas exibições-teste, Kubrick não ficou satisfeito e passou a tesoura.

No posfácio da continuação literária d’O Iluminado, batizada de Doutor Sono (2013), agora com um Danny Torrance adulto, ele volta a falar do filme de Kubrick. “Claro que tem aquele filme que muitos parecem lembrar – por razões que eu nunca entendi muito bem – como um dos filmes mais apavorantes que eles já viram”.

Em 1997, Stephen King teve a chance de sua redenção com uma série em três episódios, depois lançada no formato filme, pro canal ABC. O roteiro ficou a cargo do próprio dono da bola, pra garantir a fidelidade da adaptação. E então o sobrenatural toma conta, meio que esfregado na sua cara. O Jack Torrance de Steven Weber é uma espécie de herói cotidiano, assim como a Wendy Torrance de Rebecca DeMornay é uma mulher chutadora de bundas. “Este é um sonho que se torna realidade”, afirmou King, à época.

Hummmmmmmmmmmmmmmmmmm... não. Na verdade, a série/filme é UMA BOSTA. Achatada, óbvia, sem graça.

Pensemos assim: sabe aquele Constantine de 2005, com o Keanu Reeves? Então. Enquanto adaptação, é uma bosta. Mas é um puta filme divertido, se você deixa pra lá esta sua expectativa de que aquele deveria ser o mago sacana da Vertigo. O Iluminado do Stanley Kubrick é isso elevado à décima potência: pode não funcionar como adaptação? Pode ser. Mas como filme, caralho, funciona que é uma beleza.