Não se deixe enganar pela palavra “CRISE” no título da nova série: a proposta é muito mais um exame de consciência do que uma daquelas sagas épicas que prometem colocar a cronologia nos eixos MAIS UMA VEZ.
Quando a DC convidou parte da imprensa especializada, durante a Comic-Con 2018 (a real, de San Diego), para uma apresentação detalhada do que será Heroes in Crisis, minissérie em sete partes cujo primeiro número sai em Setembro, tudo parecia bastante insólito à primeira vista. A começar pelo fato de que o evento seria num iate, ancorado no porto da cidade.
Os jornalistas foram então convidados a vestir robes brancos e se sentar em almofadas, muitos deles achando tudo aquilo estranhíssimo. “O Santuário é a terapia que você necessita”, dizia uma voz no aparelho de som. “Baseamos nossa terapia na força de vontade do Batman, na compaixão da Mulher-Maravilha e na necessidade de fazer aquilo que é certo que o Superman tem”. Foi então que o roteirista Tom King, a nova joia da coroa da DC, chegou para falar com a imprensa, devidamente ladeado por dois caras usando máscaras douradas. Quando eles tiraram o disfarce, descobriu-se que se tratavam dos desenhistas Clay Mann e Mitch Gerads, que farão a série junto com ele — sendo que o último, recém-anunciado, vai cuidar dos volumes à parte da série principal que serão como mergulhos no lado psicológico dos personagens.
Apesar de toda a afetação, King tava lá pra falar bem sério sobre a série, cujo tema é muito mais profundo e intimista do que a utilização da já batidíssima palavra CRISE no título pode sugerir. Na real, a crise aqui é outra: a descrição que o roteirista deu é mais mudar a forma como os heróis e suas histórias são vistos por meio de histórias pessoais. “Vamos nos permitir abrir centenas de heróis ao tipo de exame que demos ao Scott Free”, conta o escritor.
Claramente, King se refere ao Senhor Milagre, cujo título ele conduziu em dupla com Gerads e conseguiu tornar numa das melhores coisas já publicadas nos gibis de linha da DC em muitos anos. Era muito menos ação desenfreada e mais o retrato de um homem LITERALMENTE em crise. Tomado por um VAGALHÃO emocional chamado depressão, ele sente o peso de carregar o mundo nas costas, numa desconstrução incômoda e sutil. “Esta é a razão do lado de relações públicas pela qual usamos a palavra Crise”, explica King. Porque vai ser uma crise de vulnerabilidade.
O tal “Santuário”, na verdade, é parte da trama: trata-se de um local oculto, na parte rural de Nebraska, criado pelo Batman, fazendo uso de tecnologia kryptoniana e guiado por uma inteligência artificial cujos padrões são baseados na compaixão que Diana tem pela humanidade. Trata-se de uma espécie de fazenda à qual os super-heróis, com poderes ou não, podem ir para tentar se recuperar de traumas psicológicos por conta do tipo de coisa que são obrigados a encarar em ação, num dia a dia de combates, de perdas, danos e difíceis escolhas de vida e morte. Todo o processo é anônimo e, justamente por isso, eles usam os robes brancos e as máscaras douradas, para que possam se ajudar sem qualquer julgamento, sem que as identidades venham à tona.
Abaixo da fazenda, existem câmaras que, similares a um holodeck de Star Trek, ajudam a simular diferentes (e necessários) cenários para ajudar na terapia. E a reta final do tratamento é uma espécie de confissão, seguida então da retirada da máscara dourada. O Santuário, aliás, está previsto para aparecer em vários outros gibis da editora assim que for apropriadamente apresentado na série.
Mas o segredo é que em Heroes in Crisis, algo dá terrivelmente errado: “o Santuário é ambientação, mas a história é, na verdade, sobre um massacre”, revela King. “Tudo fica sombrio, mas é quando descobrimos que nossa dor é nosa maior força”. Basicamente, rola uma matança generalizada naquele lugar considerado tão puro e tão fora da realidade de violência dos heróis. Uma dúzia de heróis são mortos (ele não diz quais, embora relembre uma antiga frase de Dan DiDio: “não se tem uma Crise sem a morte de um Flash”) e, na real, ninguém sabe quem foram os responsáveis. Mas é hora de tentar descobrir.
A investigação será conduzida pelos três grandes medalhões da DC Comics: o Homem-Morcego, o Homem de Aço e a Princesa Amazona. E a escolha do trio não foi por acaso — reunindo os pináculos da força da masculinidade e da feminilidade para enfatizar a importância de se abrir para pedir ajuda. Os dois principais suspeitos do crime são Arlequina e o Gladiador Dourado, outras escolhas absolutamente propositais: eles cometem uma série de erros mas ainda são, cada um a seu modo, também heróis. “Harley Quinn é uma sobrevivente e isso é tremendamente inspirador para as pessoas. E o Gladiador é o rei das boas intenções”, diz.
Esta é uma história, portanto, sobre como o Santuário falhou. “Estou escrevendo sobre isso neste momento da nossa história. Nos sentíamos seguros. Sentíamos que tínhamos segurança. Aí algo deu errado de maneira tenebrosa. É possível reparar isso? Lutar CONTRA isso?”.
Trata-se de um gibi de super-heróis que é sobre SAÚDE MENTAL. Porque a principal inspiração aqui foi a crise nervosa que o próprio King sofreu em 2016, incluindo ataques de pânico que foram apenas intensificados quando ele soube da morte da avó que o criou, como se fosse sua mãe. “Eu tava quebrado. Eu não fazia ideia do quão frágil estava”, conta.
Então, o autor (que, é bom lembrar, foi um agente de contraterrorismo da CIA pós-11/09) passou dois anos em terapia, cuidando do transtorno de estresse pós-traumático. E ele diz que só sobreviveu porque se apoiou nos outros. “Dá pra conseguir ajuda sem sentir vergonha ou preocupação”, reforça, lembrando que foi aí que começou a pensar no tipo de vida que os super-heróis levavam e como eles sobreviviam a todo tipo de traumas, desde a perda de entes queridos nas mãos de um vilão até a morte acidental de inocentes num combate entre seres superpoderosos.
King diz ainda que quer falar SOBRE e PARA as milhões de pessoas que saíram de suas casas e foram lutar por seu país em todo mundo... e aí têm que enfrentar a realidade que é voltar e tentar retomar às suas vidas normais. “Quero falar sobre suas esperanças, suas dores, seus triunfos. Quero usar os heróis da DC pra contar as suas histórias”.
Eu não acho que criei o Santuário. Eu sinto como se o tivesse encontrado
Depois, num papo com o IGN, King detalhou que esta é uma história pra refletir muito do que está acontecendo no mundo real, coisa que os gibis fazem desde a Segunda Guerra Mundial. “Infelizmente, nosso atual momento é de violência, de viver com a violência, e nossos gibis têm que tratar disso”, opina. “Temos que usar nosso poder, como guardiões destes super-heróis, para falar sobre estes assuntos e fazer histórias sobre eles e sobre como lidar com a dor em nossas vidas. Está acontecendo e temos que olhar isso nos olhos e ver por que e como podemos passar por isso da melhor forma”.
Estamos falando, logo, de uma história que é muito menos Crise Infinita ou Crise nas Infinitas Terras e mais Crise de Identidade, cujos efeitos de uma tragédia reverberam em toda a comunidade de vigilantes mascarados, abalando seus mais íntimos relacionamentos. “Heroes in Crisis é sobre heróis que vivem em meio à violência pra salvar o mundo — e o que a violência faz com eles”, conclui King. “Eles se sacrificam toda vez que saem pra enfrentar os vilões. E este sacrifício é o coração da série”.