Já dizia Fiuk, foda passar por isso.
Do momento que você acorda até a hora que você vai dormir, qual pedaço do seu dia você realmente decidiu se ia ou não encarar?
Deixa eu formular melhor: você escolhe alguma coisa?
Calma. Respira. Pensa bem.
“Ah, eu escolho o que vou comer no almoço”. Ok. Você escolhe com quem vai almoçar? Escolheu trabalhar onde trabalha com o tipo de pessoa com quem você trabalha?
“Ah, eu fiz faculdade de ______________, então SOU FELIZ trabalhando com ______________”. É? Aquela profissão que você começou a estudar entre 17 e 19 anos é a mesma que você quer fazer aos 30? Sério? Veja bem, estou só perguntando.
Calma. Respira. Pensa bem de novo, talvez enquanto você encara um trânsito arrastado ou na condução, entre idas e vindas do seu dia baseado nos horários do trabalho que você “escolheu” entre os 17 e 19 anos, com o perdão da repetição. Sem problemas.
Antes de seguir, quero deixar claro que sei que hoje em dia, entre tantos outros períodos da vida na Terra, é muito, mas muito mais difícil assistir ou ler alguma coisa sem pensar que a “coisa” em questão pende ideologicamente para uma ou outra direção. O sacal e imbecil debate que dividiu parte do público ENTRE time La La Land e time Moonlight é um exemplo dessa predisposição e a trapalhada na entrega do Oscar de Melhor Filme não ajudou em nada a dissipar essa treta idiota nas timelajes mundo adentro.
Duas obras cinematográficas incríveis foram reduzidas por isso e não multiplicadas, como mereciam, embora o marketing tenha se virado. Um ano de bons filmes virou uma discussão do nível daquelas que a gente malhava na época da Saga Prepúcio, entre #teamEdward e #teamJacob.
Pois bem, digo isso porque, para falar de um outro filme lá no fim do texto, primeiro vou precisar mexer com nossas ideias sobre os hábitos que cercam o dia a dia de boa parte de nós e sei da tentação de reduzir este texto a um pingente ideológico que isso vai causar na cabeça de alguns. Já adianto: não é.
Agora sim, vamos seguir, mas não com minhas promíscuas palavras, mas as de David Graeber, professor de Antropologia na London School of Economics, em seu texto Por que o Capitalismo cria postos de trabalho sem sentido.
“Enquanto as corporações se engajam em processos de downsizing (redução drástica de quadros), os cortes e revisões de processos invariavelmente caem sobre aquelas classes de trabalhadores que realmente estão fazendo, movimentando, arrumando e mantendo as coisas; por meio de uma alquimia que ninguém sabe bem explicar, o número de assalariados ‘empurradores de papel’ parece se expandir ultimamente e cada vez mais, os empregados vêem a si próprios, não como trabalhadores soviéticos, trabalhando 40 a 50 horas semanais com papel, mas efetivamente trabalhando 15 horas como Keynes predisse, desde que o restante de seu tempo têm sido aplicado em organizar ou participar de seminários motivacionais, atualizando seu perfil no Facebook ou baixando vídeos na internet.
A resposta certamente não é econômica: é moral e política. A classe dominante tem propagado que uma população feliz e produtiva com tempo livre em suas mãos é um perigo mortal (pense no que começou a acontecer quando isto apenas começou a se aproximar nos anos 1960). E, por outro lado, o sentimento de que o trabalho é um valor moral em si, e que qualquer um que não deseje se submeter a qualquer intensa disciplina de trabalho durante as horas do dia não merecia nada, é extraordinariamente conveniente para eles”.
Voltei. E você sabe o que rolou em 1960, né? Pessoas transaram sexo entre elas sem noias que as broxassem, sem necessidade de remédios ou produtos para erguer ou umedecer suas genitálias, lutaram por direitos, cultivaram ideias de igualdade e de resolução pacífica de conflitos, curtiram drogas que realmente as deixavam bem, não apenas açúcar e gordura, fizeram dos palcos dos teatros um espaço de processamento da realidade, produziram e trouxeram ao mundo música estupidamente foda, conseguiram que a literatura marginal passasse a integrar o grupo considerado literatura(!) e por aí vai.
Enfim, lembraram o mundo que a vagabundagem é uma coisa produtiva, ao contrário do que a voz corrente atual martela todo dia em nossas cansadas cabeçorras. Aquilo era comunismo? Socialismo? Não, mas também não era capitalismo. Era gente sendo gente e não creio que haja definição melhor.
Óbvio que boa parte dessa geração sessentista que abraçou a piração de ser quem quiser acabou sendo fagocitada pelo sistema vigente e hoje são simpáticos velhinhos com histórias muito doidas para contar. No entanto, as ideias que surgiram ali permaneceram e eu não estou falando só dos manos de dreadlocks fazendo bongs de durepox nas calçadas desse Brasilzão de meu Jah.
A tal contracultura causou rachaduras que perduram até hoje no mundo de aparências, aquele mesmo que muitos, inclusive eu, acusamos de tentar nos igualar a zumbis com tarefas para cumprir em vida tal qual uma planilha de Excel. Tabus que envolvem divórcio, casamento entre pessoas do mesmo sexo ou mesmo ser solteiro após a idade limite casamenteira (isso varia de acordo com a demagogia de cada família ou grupo social), por exemplo, já não fazem sentido para muita gente e arrisco dizer que isso não tem volta. Não digo que seja fácil mas que, a um custo alto e pessoal para os envolvidos, a tendência é que, com o tempo, não sejam mais razão de julgamento ou mesmo atenção alheia.
Tudo isso fumegou na minha cabeça depois de ver Já Não Me Sinto em Casa Nesse Mundo, filme que estreou em Sundance este ano (2017) e foi imediatamente adquirido pelo Netflix. Basicamente Melanie Lynskey, mais conhecida por ser a vizinha stalker de Charlie Sheen em Two and a Half Men, protagoniza como Ruth Kimke, uma mulher solteira de uns 40 anos, que paga o pato de encarar a profissão que deve ter escolhido 20 ou 25 anos antes, que não aguenta mais ser surrada em silêncio pela sociedade que a cerca e vai à luta.
Nesse caminho de fazer justiça com as próprias mãos, ela conhece Tony (Elijah Wood, O FRODO), um vagabundo com muito tempo livre, bem louco e muito disciplinado em seu interesse por culturas xaropes mundo afora, principalmente tudo que envolve o universo NINJA, que se revela um companheiro de aventuras, algo inédito na vida de Ruth. A cena deles dando as mãos pela primeira vez, vale frisar, é das coisas mais singelas que vi em um filme nos últimos tempos e acho que você também merece ver.
Como alienígenas em um mundo que sempre os cercou, eles se levantam com a missão em comum de cobrar pelo menos uma das milhares de dívidas que a sociedade tem com eles. Obviamente dá merda mas, como reza a sabedoria popular, é ela que aduba a vida, não é mesmo?
Um filme sobre indivíduos à margem da sociedade de consumo no qual dificilmente você não vai se identificar com alguns dos personagens, inclusive os vilões, por serem todos peças de uma engrenagem onde boa parte deles acredita ter escolhido estar.
Já dizia Fiuk, foda passar por isso.