Vamos tentar esclarecer esta história de uma vez por todas?
Na data em que o mundo inteiro relembra as duas décadas que se passaram desde a trágica morte do vocalista Kurt Cobain, líder do Nirvana, só consigo lembrar do filme O Lutador, de Darren Aronofsky. Mais especificamente de uma determinada cena na qual o decadente wrestler vivido por Mickey Rourke dança ao som de Round and Round, clássico absoluto do Ratt. Num papo com a personagem de Marisa Tomei, ele relembra algumas boas bandas do hard rock oitentista. E logo depois, ele dispara: “aí veio aquele maricas do Cobain e arruinou tudo”. Para então completar: “cara, eu odeio os anos 90”.
Como o filme todo traz na trilha-sonora uma série de clássicos do chamado hair metal (ou glam metal, ou metal farofa, ou metal laquê, ou poodle metal... escolha a opção que mais lhe agrada), sucesso na década de 80 mas ofuscado pelo grunge na década seguinte, surge a pergunta recorrente: o grunge matou o metal? Kurt Cobain, mais especificamente, matou o heavy metal?
Mas é claro que não, querido colega headbanger. Embora, sejamos honestos, alguns exemplares mais true insistam em defender esta hipótese e tenham no grunge um inimigo e alvo primordial.
Vamos começar partindo de um princípio bem básico. Nunca acreditei nestas afirmações apocalípticas que dão conta da morte deste ou daquele estilo musical. O heavy metal, assim como o punk e, pasmem, como o funk carioca e o rap paulistano, nunca precisou da grande mídia. São estilos que sobrevivem por conta própria. Têm suas próprias rádios (digitais ou analógicas), seus próprios veículos, suas casas especializadas de shows, suas formas particulares de divulgação. Ou alguém aí já deixou de ir a uma apresentação de banda internacional de metal só por que não tinha nada sobre ela no Guia da Folha? Tá bom. Como Sam Dunn diz no documentário A Headbanger’s Journey: obrigado, estamos bem e não precisamos de você.
O que rolou na década de 80 é que o mainstream (rádios, gravadoras, publicações especializadas, boates, a ainda poderosa e absoluta MTV) se interessou pelo metal de grupos como Mötley Crüe, Poison, Skid Row, Cinderella, Twisted Sister e demais maquiados. É absolutamente natural, um processo cíclico, que este ou aquele estilo musical entrem sob os holofotes da imprensa de vez em quando, dando a falsa impressão de que ele só está “bombando” naquele momento em particular. Isso acontece no mundo todo, incluindo o Brasil. Tivemos a era do pagode, do axé, do sertanejo e hoje em dia tem-se uma tendência a prestar atenção em roqueiros como NX Zero, Fresno, Pitty e demais variantes.
Mas muito antes dos veículos de comunicação descobrirem a Banda Calypso, Joelma e Chimbinha já reuniam milhares de pessoas nos palcos do Nordeste, sem precisar aparecer no palco do Faustão. E alguém acha que, se a Rede Globo desencanar do Calypso, eles vão simplesmente sumir e parar de fazer shows? É óbvio que não. Quando a grande imprensa gringa então percebeu que tinha uma molecada de camisa flanelada em Seattle fazendo barulho, esqueceram os cabeludos e suas canções sobre a Sunset Strip e foram ver qual era a daquelas canções melancólicas e raivosas. Natural, ué.
O jovem dos anos 80 se identificava com os excessos do rock farofa de uma forma aspiracional – a molecada queria ser como aqueles estranhos sujeitos de calça de oncinha que entravam no bar montados numa motocicleta, cravavam uma faca na mesa do rival, colocavam uma gostosa na garupa e disparavam cantando uma melodia sobre festejar a noite inteira. Mas conforme avançaram os anos 90, aquilo já não falava mais com eles. Tudo que era lindo, belo e colorido passou a desmoronar em uma crise cinzenta. E então os jovens passaram a se identificar com Cobain e sua galera de uma forma relacional – eles podiam, de fato, ser como aqueles caras. Um bando de moleques de cabelos desarrumados e roupas rasgadas tocando rock com as entranhas em uma garagem qualquer. Come as you are, já dizia a música.
Talvez a sentença mais acertada não seja “Kurt Cobain matou o heavy metal”, mas sim “Kurt Cobain tirou a atenção de um tipo peculiar de heavy metal”. Até porque, sejamos honestos: não creio que nem Cobain e nem nenhum dos músicos costumeiramente associados ao movimento grunge tivesse algo contra o heavy metal de maneira geral. Apesar do grunge ser tratado pelos críticos como uma espécie de herdeiro natural do punk, o caldeirão de influências daqueles moleques era muito maior. Cobain gostava do Kiss – lembram do já lendário desenho que ele fez na lateral da fã de turnê da banda Melvins? E já é público e notório que uma de suas maiores influências era justamente o Black Sabbath, considerados os pais do heavy metal.
Se eu gosto do Nirvana? Não. Essa é fácil. Acho que Pearl Jam e Soundgarden, só para citar os dois mais óbvios (nem vou falar no Alice in Chains e no Stone Temple Pilots), faziam um som muito mais competente e representativo do que o executado pelo trupe de Kurt Cobain. Gosto bem mais de Foo Fighters do que de Nirvana. O Mötley Crüe que o Nirvana ajudou a derrubar na década de 90 é uma das minhas favoritas. E completo: acho um saco o fanatismo quase religioso que se formou ao redor de Cobain e cia. Além disso, tenho minhas opiniões pouco populares a respeito dos motivos de sua depressão, sobre como o grunge, movimento tipicamente independente e garageiro, atravessou as fronteiras do mainstream e tornou-se popular entre jovens de todo o planeta – e como a pressão foi demais para a cabeça dele. Mas isso sou eu. Isso é a minha opinião pessoal. No entanto, aqui o papo é outro.
É claro que entendo as críticas que um sujeito linguarudo como Gene Simmons faz à mítica que gira em torno de Kurt Cobain. Mas é preciso admitir que, como um dos grandes expoentes daquela cena de Seattle, ele foi um dos principais responsáveis por fazer com que os jovens não apenas voltassem a se interessar por ouvir rock, mas também por fazer rock. Aquela coisa de “pegue a guitarra e saia tocando”, muito comum no chamado do-it-yourself, o faça você mesmo que os punks popularizaram. Assim como os quatro fantásticos do Sabbath, assim como a maior parte das bandas do movimento conhecido como NWOBHM (New Wave of British Heavy Metal, do qual fazem parte mestres como Iron Maiden e Saxon) e assim como um certo James Hetfield, Cobain e os grunges eram filhos de uma classe operária, moleques de vida complicada e loucos para berrar suas frustrações em canções repletas de críticas ácidas.
Gostemos ou não, Cobain esteve no epicentro de um movimento que acendeu uma chama que reverbera até hoje. Os indies de hoje, sejam eles de quais vertentes forem, devem muito ao músico. Mas não apenas eles. Toda a música dita independente, todos os garotos que acham que não precisa de muito para montar uma banda e tocar sem se preocupar com cifras. É apenas subir ao palco e mandar ver, nem que seja debaixo e goteiras e para meia-dúzia de pés-sujos. É tudo sobre querer fazer e ter prazer fazendo. Se depois você e seus camaradas de banda vão conseguir um contrato milionário para se lançar no mercado, é consequência. E não o objetivo final. Claro que todo músico quer viver de música. E está certíssimo em fazê-lo, em ter ambições. Mas ambicionar a fama pela fama é vazio demais. A fama verdadeiramente duradoura vem com muita ralação. E ralar quer dizer não ter medo de dar as caras. Isso Cobain e os grunges fizeram e muito.
Não é pouco. Já é uma missão e tanto. E esta ele cumpriu com louvor.