Editora AVEC libera com exclusividade para o JUDÃO o primeiro capítulo do livro de temática steampunk que deve virar gibi, RPG e afins em breve :)
Paris, Parque da Exposição Universal, 1867
Milhares de lampiões a querosene espalhavam seu brilho como vaga-lumes na noite abafada do Campo de Marte. Trabalhadores executavam piruetas dependurados em andaimes, soldando as últimas escoras, enquanto guindastes bufavam e chiavam para levar as pesadas esculturas até os andares superiores da magnífica construção que abrigaria o parque da Exposição Universal. Mesmo tarde da noite, os operários não poupavam esforços para realizar o sonho do Imperador Napoleão III.
Enquanto sangue e suor eram gastos em doses cavalares, drozdes pessoais acompanhavam seus amos, esgueirando-se por entre a floresta de aço e argamassa para amparar os humanos a quem foram conectados. Um observador mais atento notaria suas formas desengonçadas e seu comportamento errático. Afinal, entre a classe operária, autômatos complexos eram raros. Muitas vezes, o drozde não passava de um relógio mecânico sofisticado.
Construídos em latão ou zinco, ainda havia alguns de segunda mão, mas estes eram raros. Depois que o cristal de quartzo vibrava pela força das molas pela primeira vez, o drozde afeiçoava-se ao amo, permanecendo eternamente ligado a ele. A troca era possível, mas efeitos colaterais bizarros e um comportamento um tanto quanto errático desestimulavam as tentativas.
Entre a miríade de gatos, cachorros e pardais mecânicos (Uma verdadeira febre por drozdes pardais baseados em ardonita1 ocorrera havia uns dez anos, levando a fábrica do Monsieur Jaquet-Droz a produzir milhares deles. À maneira das manias de todos os lugares do mundo, o entusiasmo arrefeceu depois de um tempo e os porões da fábrica ficaram abarrotados com a mercadoria encalhada. Como uma última medida desesperada para recuperar parte do investimento, Monsieur Jacques vendera a preços populares os pardais, que agora habitavam boa parte das classes menos abastadas de Paris), o professeur2 Verne e o ingénieur3 Dupond andavam de um lado para o outro com os seus cadernos de anotação, conferindo tudo nos mínimos detalhes, enquanto os seus próprios drozdes dourados saltitavam ao seu redor, compartilhando a excitação de seus amos. Afinal, em apenas seis dias a exposição seria aberta e cinco anos de planejamento seriam postos à prova.
Afastado do burburinho incessante e dos quilômetros de dutos de pressão por onde escapavam silvos agudos de vapor, um homem baixo e atarracado avançava pela noite eterna dos corredores de apoio que avançavam como um labirinto de portas e escadarias. O toc-toc da fina bengala de prata ressoava estranhamente agudo naquele espaço vazio, acompanhado apenas pelo roçar do longo e elegante capote negro que esvoaçava rente ao soalho de madeira encerado.
Em seu ombro, junto à cartola negra, um drozde em forma de marmota ressonava tranquilamente enquanto suas patas traseiras escorregavam pela insígnia da coroa que laureava a bandeira negra, branca e vermelha. O homem afagou a marmota com seus dedos grossos, piscando rápido. Os olhos rechonchudos, recobertos por um pincenê de aro dourado, eram vigilantes e atentos. O queixo fraco sustentava lábios finos que carregavam uma piteira de âmbar, onde um cigarro deixava escapar a fumaça enrodilhada pela brasa acessa.
O andar do homem era curiosamente firme e descompromissado, como se estivesse passeando em Montmartre ou se dirigindo ao Café Anglais em vez de perambular pelos escritórios dos representantes estrangeiros da Exposição Universal, um lugar que supostamente deveria permanecer fechado e vazio durante a noite.
Uma luz cinzenta e pálida escapava da sua mão. O mecanismo, provavelmente um filamento de Woulfe-Lehmann alimentado por uma célula galvânica, distribuía sombras aranhosas pelos corredores opacos e o chão de tábuas, alongando a silhueta do homem atarracado e seu drozde até o início do corredor, onde um segundo homem o espreitava.
Outro andarilho nos corredores internos da exposição era algo tão improvável quanto a ausência do Imperador Napoleão III no badalado baile de abertura, dali a cinco noites, no Palácio das Tulherias. A sua presença só poderia ser explicada pelo seu comportamento, um tanto quanto suspeito, em vigiar o homem atarracado com os olhos semicerrados, como se buscasse enxergar por trás da máscara fleumática e dos seus passos confiantes.
As suas roupas estavam amarrotadas e empoeiradas, mas eram de boa qualidade. O chapéu-coco, da marca Bingley & Sons, era conhecido pela sua durabilidade, sendo possível encontrá-lo nas cabeças da maioria dos cidadãos parisienses naqueles dias. De abas um pouco mais largas do que o normal, o acessório ajudava a esconder os estranhos e grossos goggles que ocultavam os olhos do sujeito. Graças a um intrincado jogo de lentes, o artefato capturava o máximo de luz possível do ambiente, o que lhe permitia rastrear a sua presa a uma distância segura. E caso isso não bastasse, ele ainda podia contar com a ajuda segura do seu drozde coruja, que observava atentamente o corredor, empoleirado em seu ombro direito.
Alheio à movimentação sigilosa que ocorria atrás de si, o homem atarracado repousou a elegante bengala por um momento e vasculhou com os olhos as portas que se seguiam até que um quê de reconhecimento transpareceu em seu rosto. Levantando o bastão até a altura do queixo, ele bateu por duas vezes em uma porta e girou a maçaneta, desaparecendo em seu interior.
O seu perseguidor não perdeu tempo; assim que aquele desapareceu, ele avançou pelo corredor com os passos rápidos, sabendo que os sapatos com as micromolas senoides abafariam sua aproximação. Com a memória fotográfica treinada em inúmeras missões, ele se aproximou da porta recém-aberta do escritório com a confiança de quem não se enganaria em um detalhe tão prosaico.
Ao reconhecer o brasão pontilhado em um cartão preso na porta, o homem deu um passo para trás.
Foi o seu grande erro.
Uma mão em forma de garra apertou o seu pescoço, tão silenciosa, que seu atento drozde não percebeu até ser tarde demais. Piando baixo, o artefato em forma de coruja voou enquanto o seu amo lutava pela própria vida.
O homem tentou se livrar do abraço sufocante, mas o atacante era esguio e contorcia-se ao seu redor, impedindo que os seus braços musculosos encontrassem algum ponto de apoio. Ele tentou se virar, mas a dor no pescoço era excruciante: dedos longos e fortes como torqueses penetravam lentamente na carne mole, alcançando a traqueia e comprimindo a sua garganta até ele querer urrar, sem conseguir emitir um único som.
A coruja piou mais uma vez e homem arfou, lutando com as suas últimas forças. Num gesto desesperado, ele abandonou as mãos do seu atacante e buscou no bolso do capote a pistola Laumann, mas era tarde demais. Ele foi desarmado antes mesmo de poder engatilhar a arma.
Um gemido engolido escapou quando seus sentidos esvaeceram e suas mãos descansaram ao redor do corpo.
Bastaram apenas alguns momentos para que o atacante terminasse o seu trabalho macabro, apertando os dedos até sentir a garganta estalar entre suas falanges. O corpo escorregou para o chão, ao lado da silhueta de um homem esguio e disforme, que trajava vestes justas. Os olhos eram tão fundos quanto poços, e o seu dorso parecia estranhamente retraído, como se alguém tivesse escavado parte dos seus músculos abdominais.
Um sorriso malvado surgiu entre seus lábios finos e, com um salto atlético, ele alcançou o pequeno drozde coruja, que piava desesperado, sem entender o que estava acontecendo. Ele acariciou lentamente o pequeno artefato de cobre, como se o acalantasse da perda do amo.
Então, uma raiva corrosiva relampejou em seus olhos e trouxe um brilho obscuro à suas faces escorridas. Com os dentes trincados, ele destruiu o drozde, socando-o repetidamente no chão até vê-lo desmantelado entre seus dedos. A sua respiração se tornou audível por longos momentos, até que somente o silêncio escuro reverberou pelos corredores vazios.
Pouco depois, o sinistro som do arrastar de um corpo foi observado apenas pelas paredes e portas, testemunhas mudas de um assassinato feroz.
1. Ardonita! O famoso isótopo de Osmium descoberto pelo Monsieur Ardan. Um metal leve e instável, incapaz de existir em quantidades superiores a poucas gramas sem oxidar-se. Suas propriedades anti-gravitacionais têm sido utilizadas em drozdes pessoais e pequenos brinquedos.
2. Mestre
3. Engenheiro
Le Chevalier e a Exposição Universal é o primeiro capítulo da saga Le Chevalier, projeto da editora AVEC que inicia uma narrativa transmídia que irá percorrer romances, HQs, RPGs e outros. A ambientação apresenta uma trama alternativa de clima steampunk, mostrando uma Paris que nunca existiu. Em um mundo dominado pela tecnologia a vapor, a França de Jules Verne comanda o palco europeu e atrai a inveja das outras nações. O que acontecerá se Le Chevalier não descobrir a verdade por trás do estranho assassinato de um agente do Bureau? E a Exposição Universal do Imperador Napoleão III, poderá sobreviver às intrigas da política internacional? A obra está sendo traduzida para o inglês e espanhol e deve estar disponível no mercado europeu e americano até o final do ano. A primeira HQ com o personagem – narrando o encontro de Le Chevalier com a terrível besta de Notre Dame – também deve estar disponível no mercado brasileiro até dezembro.