Gaspar Noé deve ser daqueles que ficam se admirando na frente do espelho…
Love é um trabalho que já nasceu polêmico e com o batidíssimo estigma de “ame-o ou deixe-o”. Primeiro, porque é dirigido pelo argentino Gaspar Noé, cineasta pouco dado a eufemismos que assinou o pouco conhecido Enter The Void e o aclamado Irreversível. Segundo, porque é vendido como o primeiro filme não pornográfico a contar uma história de amor fazendo uso de cenas de sexo explícito... e em 3D. Ou seja, um trabalho com potencial de sobra para despertar o ódio dos puritanos, o amor do público indie e a curiosidade do público médio, pouco acostumado a visitar as salas de cinemas para prestigiar produções deste porte, geralmente relegadas aos cineclubes e circuitos alternativos.
A expectativa gerada por Love, que chega aos cinemas brasileiros depois de prometer escandalizar a platéia da última edição do Festival de Cannes e só causar risos e sono, infelizmente não se cumpre, e não me refiro somente ao fato de as tais cenas de sexo explícito estarem lá apenas para encher linguiça. Este não é, nem de longe, o único problema deste filme, até mesmo porque não tenho nenhuma ressalva com este tipo de recurso em filmes comerciais (desde que, claro, o contexto da obra exija isso, como é o caso do ótimo Nove Canções, do clássico O Império dos Sentidos e de tantos outros que já pipocaram nas telonas): o problema maior de Love é o ego e o gosto duvidoso de Gaspar Noé, que nos vende “uma obra-prima divisora de águas”, e nos entrega um produto capenga muito aquém disso, que não chega nem perto do frisson e do impacto causado pelo maravilhoso Azul é a Cor Mais Quente, só para citar um exemplo.
Explico: não há meio-termo no cinema de Noé. Em Enter The Void, por exemplo, o diretor abusa das tomadas de sexo, drogas e violências pra destrinchar a odisséia de um sujeito que, baleado em uma emboscada, vê sua “alma” vagando por Tóquio nos momentos pré-morte. Já em Irreversível, seu trabalho mais conhecido, uma sanguinária trama de vingança é desencadeada pelo estupro da personagem de Monica Bellucci, evento retratado de forma crua e visceral em uma sequência que dura intermináveis nove minutos. Noé é dono de uma estética única, que brinca com montagem, fotografia e música de maneira extrema, e não é chegado a abrir concessões em suas histórias, geralmente construídas em roteiros não-lineares, onde se faz necessário um esforço do espectador para se montar o quebra-cabeça e entender começo, meio e fim. É tudo gráfico, visual, para o melhor ou para o pior. Se não choca o público, pelo menos não o deixa indiferente (em muitos momentos de suas produções, porém, tem-se aquela sensação de que os exageros estão lá apenas para satisfazer o próprio ego do cara).
Essa loucura visual é o mínimo que se esperava deste Love, nas palavras do próprio diretor, “uma história de amor narrada do ponto de vista sexual” – uma obra que potencialmente deveria deixar o queixo da platéia no chão, ainda mais usando o recurso do 3D nas cenas de sacanagem. O que vemos aqui, no entanto, é um enorme FAIL em vários aspectos. São 130 minutos de cenas desnecessárias que não trazem nenhuma novidade ao modus operandi cinematográfico, desperdiçam técnicas extravagantes que não tem razão de existir e gritam o tempo todo “vejam como sou bom, vejam como eu tenho culhões de mostrar tudo quanto é tipo de putaria”. Pra quem se autoproclama “transgressor” e tenciona “despertar os sentidos do público”, não consegue ser bem-sucedido em nenhuma proposta: não excita, não causa repulsa, não incomoda. O único sentimento que causa no espectador é cansaço, e a vontade de olhar o relógio a cada dez minutos para saber quanto tempo ainda falta pra acabar. Não deu nem pra dar um tesãozinho... :-P
A própria história não prima pela originalidade: Murphy (Karl Glusman), estudante de cinema norte-americano que vive em Paris, está preso a uma convivência sem amor com Omi (Klara Kristin) e as responsabilidades da criação de um filho pequeno. Certo dia, Murphy recebe uma ligação da mãe de sua ex-namorada, Electra (Aomi Muyock). A mãe informa que Electra está desaparecida, e pergunta a Murphy se ele sabe de seu paradeiro. Murphy responde que não a vê há anos, e desliga o telefone. Abalado, entende que Electra sempre fora a mulher de sua vida. Então, o sujeito passa a revisitar cada uma das lembranças de sua relação com a ex, relação esta pautada por crises, brigas e muito sexo. A dois, a três, em grupo...
E é isso, essa é a história. E o roteiro nem perde tempo com uma suposta subtrama focada no desaparecimento de Electra, porque esse não é o mote central, portanto não espere que a narrativa se aprofunde nesse assunto ou mesmo apresente uma conclusão a ele – só o que interessa à câmera de Gaspar Noé é acompanhar a nostalgia de Murphy em cada um dos momentos, principalmente os sexuais, vividos com a ex-namorada. Descobrimos, em uma ordem cronológica embaralhada e MUITO confusa, como os dois se conheceram, como foi sua primeira experiência sexual, como tudo caiu no marasmo, como passaram a viver seu romance em aberto, permitindo a entrada de outros parceiros para apimentar a relação, a chegada de Omi, as discussões, as traições e a degradação física e psicológica de cada um deles, sobretudo Electra, pelas drogas. Não há uma mensagem a ser extraída das entrelinhas: o espectador nada mais é do que testemunha ocular de um namoro complicado que tinha tudo para dar errado, e de fato deu.
Conteúdo explosivo? Depende do ponto de vista. Pra começar, tenho a sensação de que Love poderia sim inflamar muitas discussões e constituir um marco... se tivesse sido feito há duas, três décadas. Nos últimos anos, o cinema comercial já viu muitos outros trabalhos, bem mais contundentes que este, com foco na construção e desconstrução de relacionamentos – e podemos citar como exemplo o próprio Azul é a Cor Mais Quente, que não traz cenas explícitas mas QUASE chega lá. Ter esta abertura e fotografar as trepadas entre os personagens centrais sem rodeios e sem economizar nas imagens não é exatamente o problema... mas nos dias de hoje, em que qualquer um pode digitar um RedTube no endereço do navegador de Internet e ter acesso a milhões de vídeos pornográficos com gente se virando do avesso, na mais suave das hipóteses, é preciso muito mais pra chocar.
As tais sequências em Love, além de serem muitas e muito longas, não apresentam nada além do trivial e, salvo um ou outro momento mais “bagaceira” (como quando Murphy é desafiado por Electra a participar de um ménage com um transsexual, uma das cenas mais risíveis do filme), boa parte delas são coreografadinhas, notadamente ensaiadas, conservadoras até, o que dá uma sensação de “Cine Privê” e causa estranhamento ainda maior quando sabemos que a produção vende estas sequências como “sexo não estilizado, real, sujo e sem ritmo como o sexo realmente é”. Sério, para algumas delas só faltou o neon do lado de fora da janela e o George Michael no cantinho do quarto cantando Careless Whisper (!). Propor retratar a prática do sexo da forma que ela é na vida real e ficar só nesse papai-e-mamãe não dá, né?
Em suma, os momentos “X-Rated” de Love correspondem a um pecado mortal: são DESNECESSÁRIOS. De verdade, a história (não) funcionaria, elas estando lá ou não. A metragem de Love poderia ter uma meia-hora a menos tranquilamente, que não faria diferença.
O que nos leva a outro ponto: o uso do 3D. Vendido como inovador por conta da técnica, o resultado desaponta. Primeiro, porque o 3D é bastante discreto (em dado momento da projeção até esqueci que o filme era em 3D e só lembrei porque não uso óculos e a armação estava me incomodando demais :/), e segundo porque quase não há momentos em que a sensação de profundidade seja notável, exceto por um ou outra cena gratuita, que não complementa a trama em nada, como as cenas em que somos forçados a enfrentar um close do PEPINO de Murphy ejaculando em direção à tela, ou a já famosa cena da penetração do ponto de vista interno de uma vagina. Estas cenas surgem do nada e vão embora na mesma proporção, e visivelmente só estão na montagem final para justificar um pouco o uso do 3D. Masturbação cult da pior espécie.
E se deixássemos estas cenas de lado, o que sobraria de Love, afinal? Não muito, na verdade. A história é rasa. Os personagens são construídos infundados em toda espécie de desvio moral, principalmente Murphy, que dispara preconceitos, sexismo e uma leve misoginia a cada diálogo proferido, o que já dificulta qualquer espécie de identificação. Os diálogos, aliás, não ajudam muito – são bastante superficiais, até mesmo porque não tem o que discutir: Murphy e Electra conversam banalidades pouco interessantes e pontos cruciais são pouco ou nada ditos. Sabemos, por exemplo, que Murphy é estudante de cinema porque seu quarto é decorado com milhões de pôsteres e porque isso é citado em um dado momento. Subentendemos que Electra é artista plástica, já que em certo ponto ela comenta que “o dono de uma galeria, meu ex-namorado, me ofereceu um trabalho”. Sobre Omi... bem, desta a gente sabe quase nada mesmo.
E como se não bastasse o desinteresse pelos personagens – honestamente, não dá pra simpatizar com nenhum deles -, os atores são muito, mas muito limitados. Claro que um trabalho desta natureza certamente constitui um problema na escalação dos atores, considerando que não é qualquer bom profissional que topará protagonizar cenas de sexo explícito e Love precisa de atores no mínimo muito competentes para se atingir seu objetivo; para o que se propõe a ser, um filme sobre O AMOR da forma mais natural, não basta escolher duas meninas com cara de atriz pornô do Leste Europeu (incluindo aí as sardinhas e os dentinhos tortos, hehe) e um indivíduo com um salame gigante no lugar onde deveria existir um pinto. Precisa ter um mínimo de talento para dar consistência e nos convencer de que estamos, de fato, presenciando os altos e baixos de um casal apaixonado. Karl Glusman e Aomi Muyock não conseguem transmitir, em nenhum momento, a paixão que o público PRECISA sentir pra embarcar nessa trama. E o caso de Muyock é ainda pior: ela é, provavelmente, a pior atriz em filmes que 2015 já viu até este momento. Sério, dá nervoso toda vez que ela abre a boca para falar alguma coisa. ( ͡° ͜ʖ ͡°)
E no meio de todos estes problemas, ainda há espaço para a punhetagem cult, como no momento em que a câmera desvia do ato sexual entre um casal na cama para focar em um pôster pregado na parede do quarto, um pôster vintage do “Frankenstein 3D” de Andy Warhol, e dar um close em sua tagline “VOCÊ TESTEMUNHARÁ A MAIOR EXPERIÊNCIA EM 3D DA HISTÓRIA DO CINEMA”. Miga... :/
Nem tudo, porém, está perdido aqui. A fotografia de Benoît Debie (colaborador habitual de Gaspar Noé) é linda, magistralmente executada, totalmente digna de qualquer premiação; se membro votante do Oscar eu fosse, este já seria, disparado, o meu escolhido deste ano. A belíssima trilha sonora incidental também é um achado – já estou há alguns dias vasculhando toda sorte de lojas especializadas em busca do CD. E a edição traz um recurso bastante interessante de inserção de uma cartela preta de poucos milésimos de segundo entre uma cena e outra, embora este recurso esteja lá apenas por puro exercício de estilo e não tenha sentido nenhum com relação ao filme em si.
Na real, tudo se resume mesmo a isso: Love é apenas, e nada mais, um grande exercício de estilo de Gaspar Noé. Love só existe para que Gaspar Noé massageie seu ego de cineasta-polêmico-transgressor, o que é bastante evidente quando sabemos, por exemplo, que dois personagens são batizados com seu próprio nome (o filho de Murphy é Gaspar e o ex-namorado de Electra é Noé). Love só existe porque Gaspar Noé, totalmente ausente de humildade, viu seu Irreversível fazer muito sucesso (porque de fato é um filme bem interessante) e acreditou fielmente que presta um serviço essencial à arte de se fazer cinema e tem a nítida sensação de que transforma em ouro tudo o que toca. Se ainda funcionasse como filme e divertisse enquanto dura, menos mal. Mas para um produto tão endeusado por si mesmo e com um diretor tão “fodão” no comando, decepciona justamente porque se apresenta como a trepada cinematográfica do milênio, se mostra apenas uma masturbação de ego e no final conclui-se como uma bela de uma broxada.
Já fico até imaginando Gaspar Noé lendo as críticas negativas e falando para si mesmo, “isso nunca aconteceu comigo antes, eu estava muito cansado, com dor de cabeça...” ¯\_(ツ)_/¯