Machete: um herói improvável em uma história perfeita para os EUA de hoje | JUDAO.com.br

Sangue, pólvora e o astro de ação mais esquisito do planeta numa trama que envolve um político maluco apoiado por um bando de rednecks que querem fechar a fronteira com o México. Sacou?

A história de Machete começou muitos anos antes de Grindhouse. Quando anunciou que um dos trailers falsos que conectava os dois filmes iria se tornar um longa-metragem com vida própria, Robert Rodriguez contou para a plateia do festival SXSW (conforme relata o IGN) que a ideia veio de um projeto concebido lá por volta de 1995, quando o cineasta conheceu Danny Trejo no set de A Balada do Pistoleiro.

Além da surpresa de descobrir que o ator é seu primo de segundo grau (sério), Rodriguez encontrou naquele cara – encrenqueiro na juventude, peão de obra antes de decidir se tornar ator, campeão de boxe na cadeia – um talento nato para os filmes de ação. “Logo pensei que este cara devia ser o Jean-Claude Van Damme ou o Charles Bronson do México, com um filme sendo lançado a cada ano”, diz, relembrando que as filmagens aconteceram no pequeno vilarejo mexicano de Ciudad Acuña, onde ninguém fazia ideia de que diacho de filme era aquele que estava sendo rodado. “Mas os moradores locais achavam que o Danny ia ser o personagem principal, não o Antonio Banderas. Ele tem uma presença incrível”.

Logo, Rodriguez escreveria um roteiro com Trejo em mente, já devidamente escalado como um tal Machete, depois de ouvir a história de que por vezes o FBI ou o DEA contratam agentes mexicanos para trabalhos muito perigosos, no qual teriam medo de escalar seus melhores agentes. “Este é o Machete. Aí, dei uma faca para o Danny e disse para ele começar a praticar”. O diretor lembra ainda que não costumam existir muitos filmes de ação com um ~sabor latino focado num público mais abrangente. “Quando eu via os filmes do John Woo, eu queria ser asiático. Woo e Chow Yun-Fat realmente me inspiraram a fazer filmes que pudessem criar este sentimento do lado latino”.

Mas, por mais que Danny Trejo tenha se tornado presença frequente em praticamente todos os filmes de Rodriguez desde então (passando por coisas que iam de Um Drink no Inferno a Pequenos Espiões, no qual chegou a interpretar um cara chamado...Machete), o tal filme tão sonhado nunca saiu do papel.

Até que veio Grindhouse.

Rodriguez usou pedaços de seu próprio antigo roteiro para fazer o trailer, rodado ao mesmo tempo em que ele fazia Planeta Terror. “As pessoas começaram a me perguntar ‘mas e aí, você vai fazer este filme mesmo?’ e eu dizia ‘claro que vou’, por mais que não tivesse planos pra isso”.

Aliás, o Danny Trejo era um dos que vinham perguntando a mesma coisa para o primo desde 1995. Quando o trailer saiu e a galera enlouqueceu, ele continuou a ligar pra encher o saco do diretor. “Bom, agora temos que fazer o filme porque todo mundo quer isso”, ele falava. Bom... :)

Os resultados de Machete foram até melhores do que os do próprio Grindhouse: custando meros US$ 10 milhões, o filme do anti-herói mexicano faturou mais de US$ 44 milhões em todo o mundo, enquanto o combo Tarantino + Rodriguez custou polpudos R$ 67 milhões e, considerando a soma dos resultados domésticos + globais, mal chegou aos US$ 25 milhões.

O feito de Machete é ainda mais impressionante porque conseguiu tudo isso protagonizado por uma estrela totalmente improvável. Quando Machete estreou, Danny Trejo tinha 66 anos — ou seja, não era nenhuma jovem aposta dos filmes de ação, descoberta por algum produtor espertalhão. Estamos falando de um latino, que foge completamente daquele padrão branco-nórdico-de-olhos-claros que Hollywood sempre amou para os seus papéis principais.

Se tem uma coisa que Trejo tem, e isso não dá pra negar, é carisma. Transbordando. Ele ocupa toda cena em que aparece, por mais canastrão que seja. E quando usa o seu vozeirão cheio de sotaque para soltar pérolas do universo das frases-chavão como “Machete Don’t Text”, falando de si mesmo em terceira pessoa, a plateia está devidamente conquistada.

Sabe toda essa história envolvendo Ghost in the Shell e a ideia de que Scarlett Johansson foi escolhida em detrimento de uma atriz oriental por conta do seu STAR POWER? Vai por aí — e lembre-se que O Poderoso Chefinho venceu a treta contra a Major nas bilheterias desse fim de semana. :D

Assistir novamente a Machete hoje, sete anos depois, tem um sabor muito especial. Vamos esquecer, pelo menos por agora, aquela merda de continuação que saiu em 2013 – e que, apesar da Lady Gaga e da porra toda, se perde ao tentar enfiar elementos demais no meio de um baião já bem cheio de ingredientes, além de ser uma versão megalomaníaca demais da história original.

Foco no primeiro filme: um verdadeiro primor da filmografia B, com figurinos esquisitos, penteados forçados e alguns momentos preciosos de violência escancarada (como o já memorável trecho das tripas usadas como corda) e outros de sacanagem gratuita e sem sentido, a la pornochanchada 100% nacional (como o momento em que ele entra na água e se agarra com Lindsay Lohan e sua mãe, num momento que poderia muito ser vivido pelo David Cardoso), tudo isso devidamente embalado por uma trama que, infelizmente, faz ainda MAIS SENTIDO nos dias de hoje. Se liga só: um político maluco (no caso, Robert DeNiro interpretando um tipo bastante reconhecível, tanto lá quanto cá) americano que resolve ARREBANHAR os votos de seus apoiadores branquelos e ricaços criando UM MURO ao redor da fronteira com o México, além de endurecer pra cacete a política de imigração.

Não te lembra nada? Pois é. “Cada vez que um imigrante ilegal cruza a fronteira na calada da noite, é um ato de agressão contra os Estados Unidos. E eu aviso, é um ato aberto de terrorismo. Estas pessoas são terroristas”. Este é o Senador John McLaughlin falando, um camarada cercado de tropas de texanos de mullets que se divertem atirando em quem é diferentes deles. Mas podia ser aquele cara sentado na principal cadeira da Casa Branca, com o botão das bombas nucleares ao alcance dos dedos.

“Deixamos estes caras entrarem nas nossas casas, cuidarem dos nossos jardins e das nossas roupas... Mas não queremos deixá-los entrar no nosso país. Isso faz sentido?”, reflete um dos seguranças do vilão Booth, braço-direito de McLaughlin, depois de levar uma coça de Machete, diante de seus ESTUPEFATOS colegas. A consideração faz um bocado de sentido. Mas a resposta quem dá é o próprio Booth ao torturar o irmão de Machete, o padre vivido por Cheech Marin, em busca da localização do mestre das facas e cutelos. “Por que você nos odeia tanto?”, questiona o homem da fé, sangrando, tentando entender o motivo da perseguição aos mexicanos. “Eu não os odeio”, afirma Booth. “Eu odeio perder dinheiro”. E aí parte para o seu clássico discurso do malvadão, revelando que ter o controle do muro vai permitir que eles tenham mão de ferro total sobre as mercadorias, talvez “ilegais”, que entram e saem do país.

“Existe a Lei. E existe o que é o certo”, solta a jovem e dedicada agente da imigração interpretada por Jessica Alba, depois de entender justamente estas conexões e sacar o planinho sinistro dos engravatados. “E eu vou fazer o que é certo”.

Machete pode parecer apenas uma diversão escapista. E, caralhos, é claro que é uma diversão escapista. Mas digamos que dá aprender uma ou outra lição bem da importante em meio às cabeças cortadas, mãos decepadas e olhos perfurados. Basta saber olhar direitinho pro mundo ao seu redor.

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