Morte na Estrada da Fúria | JUDAO.com.br

“É pela minha mão que vocês se erguerão das cinzas do mundo”

O canal de YouTube Wisecrack lançou recentemente um vídeo-ensaio sobre a carreira do gigante George Miller, cineasta (e médico) australiano, e como as mecânicas de “humanidade” encontradas nos filmes dele falam bastante sobre nossa relação com poder, vida e morte.

E eu enxerguei uma terra devastada perto de mim.

Lançado no longínquo ano de 2015, o quarto filme da saga Mad Max, meio continuação, meio reboot, meio “história paralela”, encontra Max Rockatansky (Tom Hardy) sozinho, à deriva, num mundo sem civilização, lei ou salvação. Antes de 5 minutos de filme, ele é perseguido e preso por soldados de um déspota estranho. Marcado como “sangue tipo O Positivo, doador universal”, ele é acorrentado e rotulado como “bolsa de sangue”.

E aí o filme acontece, a perseguição insana originada pela rebelião da Furiosa de Charlize Theron, libertando as “parideiras prêmio” de um “grande governante”. Ela mesma é uma líder que comanda forças em nome do chefe. “Uma das imperatrizes de Immortan Joe”. Começa a aparecer um padrão sinistro, um que ficou bem aparente em tudo quanto é lugar nos últimos meses, nesse 2020 “durante-apocalíptico”.

O filósofo francês Michel Foucault estabeleceu o princípio da BIOPOLÍTICA, a regulamentação da vida pelas mãos de quem tem o poder. Quando a vida se tornou “necessária” para a manutenção do sistema industrial, apareceu uma necessidade de “manter a vida mínima” de quem trabalhava nas fábricas. O líder supremo não queria mais saber de matar, porque ele precisaria manter sua população viva para a roda continuar girando.

Então, o filósofo camaronense Joseph-Achille Mbembe deu um upgrade no termo. Observando as engrenagens da humanidade, ele cunhou o termo NECROPOLÍTICA. Aqui, o que importa é como o estado, ou quem quer que concentre o poder, vai manusear a ideia, a execução e os dividendos do conceito de MORTE. Por exemplo, recentemente o mundo viu a sociedade estadunidense como um todo reagir aos efeitos da violência policial contra cidadãos negros. Uma faixa da população inteira que coloca a “morte pelas mãos do estado” como parte esperada da semana. Nada que o Brasil não conheça de perto também.

Em Mad Max, Immortan Joe precisa que seus súditos encarem a morte como parte do dia-a-dia. Se ele não tem soldados dispostos a morrer gloriosamente, encarando o fim com um sorriso prateado, ele não tem poder. No reino onde Joe manda, não existem cidadãos, existem engrenagens. Todo mundo é reduzido a uma “função”. Ninguém é “alguém” se não exercer alguma ação que mantenha Joe no trono.

Isso quebra quando Furiosa ouve os gritos de socorro das “esposas” de Joe. O grito de que “não somos coisas” e “nós pertencemos a nós mesmas”. Não mais a habilidade de gerar vida vai ser usada como manutenção do poder político de um déspota. A “bolsa de sangue” se vê no meio de uma guerra muito antiga e, ali no meio da areia, sangue e caos, Max toma a decisão de não ser mais um agente passivo. Max ajuda Furiosa a criar um pouquinho de justiça no meio da terra devastada.

Terra devastada também é um apelido do ano de 2020. No meio de catástrofes políticas, socioculturais e sanitárias, uma pandemia consegue dar mais ainda aquele sabor de “caos generalizado” para o começo da nova década. E o teor de “situações extremas e comportamentos extremos” transforma um ano difícil num ano fatal.

Vírus, pandemia, quarentena. Crise econômica. Todo mundo que tem o que chama de casa divide violentamente “o mundo de fora” e “o mundo de dentro”. Muita gente presa num rodamoinho de “precisar trabalhar e não poder”. Muita gente precisa num rodamoinho de “ter que se preservar e ser forçada a sair pra trabalhar”, Percebendo o velho paradigma da funcionalidade humana.

Um alerta soou quando os movimentos institucionais em prol da finalização da quarentena começaram a se expressar com mais vontade. Um alerta de que, sem fazer contorno algum, muita gente vai morrer. O vírus não espera domingo, não espera feriado. E muita gente vai morrer porque será empurrada às ruas pela necessidade de trabalho e pelo tal conforto de “voltar ao normal”. Um esforço coletivo para ignorar um risco enorme em nome de “mover as engrenagens”.

Se para as instituições que regem os rumos da sociedade um membro do povo só é tão importante quanto a função que ele exerce, como o cidadão pode esperar ser enxergado como um ser humano? Ou, o que é ser humano?

Só existem os garotos-da-guerra de Immortan Joe, prontos para entrar no Valhalla ao morrer gloriosamente na Estrada da Fúria. Fazer o que aprenderam, sem parar, sem perguntar, sem imaginar.

No filme, toda a reivindicação de alguma humanidade vem com a rejeição dessa funcionalidade sinistra. As mulheres declaram que não são posse. O garoto-da-guerra aprende que ele pode ser visto como mais do que bucha de canhão. Max larga a única razão da sua existência – sobreviver – e ajuda um grupo de maltrapilhas, o suficiente para admitir que é um ser humano, e que tem uma identidade. Lembra que tem um nome. E que pode compartilhar esse nome com Furiosa.

Nós somos mais do que nosso trabalho. Temos que ser mais do que o que fazemos. Temos um valor intrínseco, inseparável, indispensável, completamente à parte do quanto podemos fazer para manter o sistema funcionando. Um rei louco que olha para seus “súditos” e vê peças de uma máquina merece perder a coroa. Ou a máscara pós-apocalíptica.

Quase todos nós não temos escolha sobre como vamos viver por conta de como essa máquina foi construída. Centenas de milhares de pessoas não tem escolha alguma sobre como se proteger na pandemia. Precisam sair de casa, precisam trabalhar. A falta de uma solução viável para que todo mundo tenha uma proteção digna é outro grosseiro indicador de como estamos num reino doente, no meio de uma terra devastada. Um 2020 de fúria e sangue, de pulmões esburacados e fumaça no ar, que pode virar um 2020 de memória, de ensino.

“Onde devemos ir, nós que trilhamos essa terra devastada à procura de melhorar quem somos?” (O Primeiro Homem-História)

No final de Mad Max: Estrada da Fúria, o povo mais miserável, menos “humano” possível, sobe no elevador junto com Furiosa, indo construir um futuro melhor com os cacos do presente venenoso que tem. Qualquer futuro pode ser melhor que qualquer presente. Há quem diga que se alguém inventou a memória, inventou por conta disso. Para podermos dar passos para longe de uma coisa, para mais perto de outra.