No novo disco de estúdio, The Pale Emperor, músico abandona as tentativas frustradas de ser o anticristo e encontra um caminho mais interessante e original
Tem um exercício que eu gosto de fazer as vezes, sabe, que é reler algumas coisas que escrevi há algum tempo – pelo menos, há mais de dois, três anos. Por vezes, sinto um pouco de vergonha alheia, confesso.
Mas no caso de resenhas, me ajuda a ter uma outra visão sobre aquele álbum e/ou filme, para saber se minha opinião permanece, se minha análise amadureceu...
Assim que escutei The Pale Emperor, o mais novo lançamento do Marilyn Manson, confesso que me bateu uma curiosidade em relembrar o que eu tinha escrito sobre os álbuns anteriores. Eis aqui a minha abertura para o texto sobre Eat Me, Drink Me (2007):
“Desde que pintou o retrato da família tipicamente estadunidense com seu espetáculo do mundo bizarro em 1994, misturando num caldeirão satânico o peso do heavy metal, as experimentações industriais do amigo Trent Reznor do Nine Inch Nails e a teatralidade de Alice Cooper e David Bowie, Marilyn Manson definitivamente tornou-se um chamariz. Os críticos se dividiram quanto a amar ou odiar o seu trabalho, assim como aconteceu com os fãs – mas o mesmo não valia para a tradicional família tipicamente estadunidense, que o detestava com todas as forças. Manson vestiu a camisa de ‘inimigo público número 1’ e, com o polêmico e inovador Antichrist Superstar (1996), abriu o armário e deixou todos os monstros saírem. Mas então veio Mechanical Animals (1998), uma tentativa de transformar a figura de Manson em um alienígena andrógino a la Ziggy Stardust, desta vez com um som mais limpo e mais inspirado no glam rock. E as coisas nunca mais foram as mesmas.
Aqueles que conheceram (e aprovaram) o artista em Antichrist Superstar não engoliram a tentativa, e o próprio Manson percebeu o erro e tentou retomar o aspecto sujo em Holy Wood (In The Shadow of the Valley of Death) (2000) e The Golden Age of Grotesque (2003), atirando-se de volta às sombras vampirescas das quais nunca deveria ter saído. O resultado foi até satisfatório, mas longe de qualquer comparação com o manifesto macabro do Antichrist. Quatro anos depois de seu último disco de inéditas, ele está de volta com Eat Me, Drink Me, ainda tentando recuperar o posto de grande demônio da América. Mas o único retrato que temos aqui é de um Manson comportado, quase domado e em determinados momentos até simpático, ainda perdido com relação ao seu papel no atual mundo do rock”
O mais frustrante é que não parou por aí. A história se repetiu e Manson continuou tentando dar murro em ponta de faca ao longo dos dois discos que vieram depois, The High End of Low (2009) e Born Villain (2012). Tínhamos um frontman sem entender muito bem o seu próprio papel, tentando nos fazer engolir uma persona de palco que nada mais era do que um monstrengo de papelão, um filho de Satanás que estava longe de apavorar alguém em um mundo real pós-11 de setembro beeeeeeem mais complicado e assustador.
Mas aí veio a participação de Manson na série Californication, inaugurando um interesse súbito do branquelo por outras plataformas de entretenimento. E lá, eis que ele conheceu Tyler Bates, o responsável pela trilha sonora do programa. Nos bastidores, a dupla se entendeu, musicalmente falando, e da parceria entre os dois surgiu um Manson reinventado. Que nem sequer contou com a participação do parceiro costumeiro, o guitarrista Twiggy. Um Manson que, em The Pale Emperor, enfim saiu do personagem. Abandonou a necessidade de interpretar um demônio e de mergulhar em metáforas sombrias a todo o instante. E que, da mesma forma que em Mechanical Animals, resolveu trilhar um outro caminho. Só que o caminho de The Pale Emperor é bem mais natural, moderno, inteligente, orgânico. É um Manson bem menos forçado – e muito, muito mais sombrio. Pode acreditar.
As trevas que o músico tira da cartola neste novo álbum são humanas, do tipo que qualquer um de nós enfrentaria – a tentação a qual o Fausto do clássico de Goethe é submetido na versão contemporânea da música The Mephistopheles of Los Angeles, ponto alto da bolacha no qual o músico parece falar sobre si mesmo. Em termos de sonoridade, The Pale Emperor deixa de lado o rock industrial experimental e, mesmo que mantenha parte do peso, prefere enveredar por paisagens mais blues, hard rock, construindo um rock ao mesmo tempo tétrico e sensual. Sabe quando Manson resolveu fazer a sua versão para Personal Jesus, do Depeche Mode? Pois é. Parece que AGORA ele finalmente entendeu.
A primeira faixa do disco, Killing Strangers, já é um resumo bastante coerente do que se pode esperar do restante da bolacha. É uma canção longe da porradaria que se esperaria, sei lá, de algo como The Beautiful People – mas não menos perturbadora. É quase como se fosse um vampiro (daqueles que não brilham à luz do sol) cantando um blues macabro e hipnotizante sobre a morte. A interessante mistura se repete em Third Day Of A Seven Day Binge, com o seu sabor de trilha sonora para strip tease numa casa de góticos (quase consigo imaginar a Salma Hayek tirando a roupa ao som desta música em Um Drink no Inferno).
Do outro lado, temos a intensa Deep Six, que tem uma guitarra mais frenética, agressiva, furiosa, mas com um tipo de groove diferente, bem mais hard rock do que heavy metal – lembra bem mais um Alice in Chains do que o Slayer, por exemplo. É um pouco do que se pode sentir em Slave Only Dreams To Be King e The Devil Beneath My Feet que, além dos títulos geniais, se parecem pela utilização climática dos sintetizadores e pela levada suingada da bateria, que é ao mesmo tempo pesada e envolvente, quase R&B.
Chega ser até surpreendente que a última das dez faixas, Odds Of Even, traga Manson quase sussurrando, numa espécie de balada melancólica de guitarra sofrida, sem gritos, sem berros, sem invocações. E assim, cantando sobre a casa da morte e sobre anjos que morrem nos braços de demônios, ele consegue ser brutalmente mais assustador do que grande parte do que o próprio fez nos últimos, sei lá, 15 anos.
The Pale Emperor é a prova de que a vida real pode ser muito mais bizarra e fascinante do que a ficção. Ainda bem que Marilyn Manson entendeu isso à tempo.