E esse é o desejo do diretor Rodrigo Aragão: que o público brasileiro se veja em tela e reconheça as tradições orais de seu rico folclore
Posso dizer aqui sem nenhum medo de ser leviano que Rodrigo Aragão é o maior nome do cinema de terror nacional. E em seu mais novo filme, A Mata Negra, o cineasta capixaba, mestre tupiniquim dos efeitos especiais, entrega seu melhor trabalho e segue firme e forte em sua cruzada de levar o gênero para o povão brasileiro.
Pois é, o cinema de terror é bastante judiado por essas bandas — seja pelo público, crítica ou mesmo pelas distribuidoras. Mas já estamos vivendo uma imensa melhora de qualidade técnica e, o mais importante, o aumento da quantidade de produções. Para se ter uma ideia, há 10 anos, no longínquo 2008, tivemos TRÊS filmes de terror produzidos no país: Encarnação do Demônio, Capital dos Mortos e Mangue Negro, justamente o primeiro longa de Aragão.
Neste ano que teima em não acabar, contabilizamos nada menos do que 37 produções — e se consideramos só no circuito comercial, foram lançados excelentes exemplares dessa safra, como As Boas Maneiras, O Animal Cordial, O Nó do Diabo e O Segredo de Davi, além claro de A Mata Negra que chega ao Cinemark dentro do Projeta às 7. Isso sem contar os queridinhos dos festivais e que não deram as caras por aqui, como Mal Nosso de Samuel Galli e Morto Não Fala, de Dennison Ramalho.
Podemos dizer, no entanto, que A Mata Negra é exatamente a EPÍTOME desse movimento, e igualmente do crescimento de Aragão – e equipe – por trás das lentes e na elaboração de efeitos especiais e práticos, imprescindíveis para o tipo de cinema com o qual o diretor quer nos presentear.
Vale lembrar que é o primeiro longa dele com financiamento da ANCINE e do Fundo do Audiovisual e com um orçamento maior, R$ 600 mil. Se compararmos com outras produções, mesmo nacionais, ainda se trata de um valor bem baixo, mas utilizado de forma exímia, como visto em tela. A evolução, com um punhado de reais a mais, salta aos olhos de forma perceptível.
E mais: Aragão dá um giro de 180º em seu costumeiro terror ambiental com zumbis para pegar, literalmente, o diabo pelo chifre, e firmar o subgênero batizado pelo site 101 Horror Movies de FOLGORE = folclore + gore.
E essa é a definição perfeita para A Mata Negra, filme no qual Aragão tece a costura de uma gigantesca colcha de retalhos de causos e histórias assustadoras repassadas por meio da tradição oral, usando elementos folclóricos tanto de sua infância e bagagem pessoal, quanto aqueles que escuta nesse Brazilsão afora e adentro enquanto ministra suas oficinas de maquiagem para pagar os boletos.
E mais do que que isso: é cinema de identidade, de DNA deveras brasileiro, colocando a mocinha no meio da densa Mata Atlântica – mantendo a marca registrada de Aragão em dar o protagonismo a simplórios e brasileiríssimos heróis improváveis – às voltas com um grimório maledeto, o Livro Proibido de Cipriano, se metendo em situações nababescas, obscuras e descontroladas.
Clara – interpretada pela filha de Aragão, que passa por maus bocados em tela – conforme vai invocando os rituais satânicos presentes nas páginas, vê sua vida, antes pacata, virada do avesso e testemunha uma série de infortúnios um atrás do outro, para desembocar no terceiro ato completamente porra-louca, com litros e litros de sangue derramados, demônios, assombrações, escrachos e um final absurdamente ousado.
Impossível não ovacionar a conclusão e ficar animadíssimo com o que o futuro nos reserva em sua, agora oficial, “Trilogia Negra”, que começou em Mar Negro e irá culminar no vindouro Terra Negra, cujo roteiro está sendo escrito e que o próprio realizador define como “seu Vingadores”, uma vez que pretende convergir elementos e personagens de todo esse “Aragãoverse”. CHUPA JAMES WAN!
E claro, mesmo sem subtexto ambiental, ainda se mantém firme no discurso social e político velado, na figura do personagem de Jackson Antunes, que Aragão revela que ele “se divertiu HORRORES”, dando vida a um picareta líder evangélico em busca de poder. O cara solta a seguinte frase em determinado momento do longa: “Dê ao povo uma pessoa para odiar e eles farão tudo por você” e depois emenda que, com o poder que lhe será dado pelo Livro de Cipriano, irá se tornar presidente do Brasil. Para meio entendedor...
E claro que as referências pelas quais Aragão é apaixonado estão gritantes ali: Sam Raimi e Peter Jackson, que moldaram sua forma de se fazer cinema, de Fome Animal (do splatstick da cena do pinto demoníaco totalmente escrachada e repleta de gore) ao clássico A Morte do Demônio (invocação de criaturas das trevas no meio da mata por um Necronomicon brazuca, além dos movimentos de câmera) com direito a uma pitada de filmes de samurai à la Kurosawa.
Só que, não OBSTANTE, não estamos vendo nenhuma cópia desses caras, e sim o estilo de Aragão enraizado e maduro em tela. Até porque não nos interessa um novo Raimi, novo Jackson ou mesmo um novo Mojica. E sim o Rodrigo Aragão, apaixonado, sem medo de se assumir como diretor de terror, dos seus exageros tresloucados, de parecer ridículo e, importantíssimo, em plena evolução técnica.
Torcemos para que ele de fato consiga, usando a mata, o folclore, os causos, os típicos personagens brasileiros simples – que foram outrora responsáveis pelo sucesso de outros gêneros do cinema nacional pós-Retomada – levar nosso povo sofrido ao cinema para se divertir, gargalhar e se assustar, para que possa ver seu reflexo em tela grande e se impressionar com a nossa qualidade — além de ter motivo de orgulho.