Conversamos com três praticantes da arte de se vestir como seus personagens favoritos sobre os abusos que sofrem em eventos de cultura pop
O ano era 2004. O local era o Espaço das Américas, em São Paulo, onde acontecia mais uma edição do Anime Friends. E lá estava eu, como jornalista da hoje finada AOL Brasil, registrando mais uma matéria em vídeo da tal série “Repórter Nerd”, que inventei para cobrir “com humor” os eventos do gênero. Os tempos eram outros, eu tinha 20 e poucos anos e uma visão bem mais babaca do mundo. Mas, ao encontrar ninguém menos do que a Marimoon, versão Fotolog pré-MTV, vestida com a decotada roupa de uma personagem do anime/mangá Chobits, perguntei: “quantas cantadas você já levou hoje?”.
“Olha, por incrível que pareça, nenhuma”, revelou ela rindo, para depois apontar para o enorme amigo barbado e com cara de poucos amigos que a acompanhava pelos corredores. “Mas é porque eu ando com o meu segurança particular, né? Uma garota com esta roupa não pode sair sozinha por aqui”. Desligada a câmera, não demorou até que um sujeito atrás de nós gritasse “E aí, gostosa!”, deixando-a extremamente constrangida e arrancando um rosnado do amigão guarda-costas.
Onze anos depois, a Mari anda afastada do mundo dos animes e mesmo desta coisa de fazer cosplay, conforme ela mesma contou em entrevista ao nosso PoOOoOooODCAST. Só que, vejam vocês, este tipo de situação nunca parou de acontecer. Na real, segundo as garotas com as quais conversamos para esta reportagem, o consenso geral é de que estes constrangimentos só aumentaram, indo do fiu-fiu e das cantadas de construtor de Minecraft para atitudes ainda mais graves como apertões, passadas de mão e fotos em ângulos não-solicitados. A grande diferença é que as mulheres passaram a não ficar mais caladas. Começaram não apenas a mostrar e gritar para o mundo o que estava acontecendo como também a se unir.
E reagir.
“Às vezes é difícil saber de onde veio a mão no meio da multidão”
Figura bastante presente nos eventos do sul do país, a cosplayer Camila Gamino da Costa diz que rigorosamente toda mulher que faz cosplay já passou por situações assim. “Às vezes é difícil saber de onde veio a mão no meio da multidão. Fora, claro, ter que ouvir gracinhas do tipo ‘sempre quis comer essa personagem’ ou ‘bati muita punheta pra essa personagem’. Geralmente é bastante constrangedor”. Praticante de cosplay e também estilista/costureira especializada neste ramo, Karol Souto concorda e ainda diz que existe muita diferença entre um elogio e aquele passo a mais. “Nos eventos, principalmente os mais cheios, se você reparar bem, muitos caras tiram foto da sua bunda escondidos. E ainda tentam justificar dizendo nossa, quem manda vir com esta roupa toda gostosa?“, afirma. Camila complementa, afirmando que a primeira reação masculina quando acontece uma repreensão é dizer “não foi bem assim, você interpretou errado” ou então o clássico “ai, mas você tá se achando, hein?”.
Daniele Rios Boleeiro, mais conhecida no meio cosplayer pelo nickname de Dandi Le Pirate, conta que em seus mais de 10 anos atuando fantasiada, já passou por todos os tipos de ataques. “Já tentaram passar a mão em mim, agarraram pela cintura com força pra tirar foto, recebi cantadas (de pais bêbados de meninas pequenas que iam ao evento, inclusive) e fotos com focos inadequados”. Mas ela revela que, no seu caso, ainda teve que escutar que estava “gorda demais” pro cosplay ou não era “gostosa” como a personagem original. “Vale citar a criança de 12 anos que passou a mão na bunda de todas as cosplayers do último evento que fomos?”, ela ainda relembra. “Sério! 12 anos! Uma colega teve que pegar o menino e dar uma lição verbal até ele sair chorando e sumir”.
“Eu saio de perto, olho feio, encaro e algumas vezes tive que perguntar: E aí, tá com algum problema? Uma vez uma criatura pediu pra tirar foto e veio alisar as minhas costas, fiquei sem ação na hora e demorou pra cair a ficha que devia ter dado um chega pra lá, mas às vezes é tão de surpresa que a gente trava”, explica Karol. Dandi concorda que, apesar da maturidade ter trazido respostas mais prontas e agressivas a esse tipo de abuso, existe a chance de que a mulher fique em choque na hora, sem reação. “Sempre ocorrem quando menos esperamos. Quando é rápido, não temos tempo de reação, mas quando nos recobramos costumamos responder e pedir para se afastar ou retirar. No entanto, aprendi a andar sempre acompanhada. Ter amigos por perto ajuda muito nessas horas”.
As duas afirmam ainda que em eventos de anime as coisas perdem mais o limite – Karol cita como exemplo os muitos eventos medievais onde expõe/vende suas roupas e nos quais nunca passou por qualquer situação similar, enquanto Dandi relembra nunca ter presenciado coisas assim nos eventos de Star Trek que frequentou. “O público é mais maduro e o nicho menor e portanto as pessoas se conhecem mais”, opina ela. “Os eventos de anime são maiores, numerosos, e o público muito variado. Constantemente vejo jovens tentando repetir as piadas sexuais dos animes e mangás com teor yuri [com relações entre mulheres] e parodiar hentais [de cunho sexual] como se fosse uma coisa normal de se externar para o mundo real. Mas não é! Não é engraçado tirar foto por baixo da saia, nem apertar os peitos e bundas”.
Dandi conta ainda, bastante chateada, que infelizmente já diminuiu ou excluiu decotes de seus cosplays por conta do tipo de reação que o público pode dar. “Adoraria usar a roupa que desejasse sem ser julgada por ela, mas isso é apenas uma visão utópica que não vejo sendo praticada enquanto a sociedade toda ainda estiver sem educação para esse tipo de liberdade. Até mesmo pra usar um collant coberto passamos por problemas”. Para Camila, este tipo de pensamento está se tornando cada vez mais comum. “Eu tenho tentado não me deixar levar por isso, mas é muito difícil. A única coisa que deveria ser levada em consideração para se fazer um cosplay é o carinho pelo personagem, mas é impossível não pensar na reação dos outros e – em alguns casos – não ter medo”.
Mas como impedir que este tipo de coisa aconteça? Para Camila, conscientização é a palavra certa. “Dos homens, para entenderem que, ao contrário do que sempre ensinaram, eles não têm o direito sobre o corpo de nenhuma mulher, que o fato dela estar com roupa X não é um convite para uma passada de mão. E das mulheres, para entenderem que elas têm sim o direito de reclamar, que mesmo de roupa curta ninguém pode invadir o espaço do corpo dela, que não é frescura e tem sim que ser falado”. Dandi também faz eco sobre a questão do silêncio – que, segundo ela, deve ser evitado a todo custo. “Quando tomamos o controle da situação e respondemos, o agressor fica com medo. Se encontrarem alguém passando por isso, ajudem! Se passarem por isso, respondam!”. Para Karol resume em apenas três itens: “Meu corpo, minha vontade, minhas regras”.
“Ao contrário do que sempre ensinaram, eles não têm o direito sobre o corpo de nenhuma mulher, que o fato dela estar com roupa X não é um convite para uma passada de mão”
As três são unânimes quando dizem, no entanto, que é fundamental que os próprios eventos também se manifestem a respeito. “Condenar esse tipo de atitude é importante. Se alguém não souber se comportar, precisa ser impedido pelo evento de continuar ou convidado a se retirar”, diz Dandi. “Poderia haver campanhas dentro dos eventos e um respaldo em forma de apoio às garotas, seria um começo”, aposta Karol. Já Camila conta que chegou a trabalhar no treinamento de equipes em eventos do tipo – e sempre reforçava a importância de coibir este tipo de comportamento. “Orientava a escutar as reclamações e dar um ‘te liga’ no cara caso eles não pegassem no flagra e, se pegassem, para chamar um segurança e retirar o cara do evento. A organização tem obrigação de zelar pelo bem estar dos participantes, e estas atitudes de abuso não podem ser toleradas. O treinamento destas pessoas tem que ser no sentido de apoiar a menina e tentar tomar providências, ao invés de minimizar ou fingir que não aconteceu”.
“Aos demais caras no evento, o importante é não apoiar quem faz este tipo de coisa. Os caras fazem e se vangloriam porque os amigos acham legal. Se este cara for hostilizado pelas demais pessoas do evento, incluindo outros caras, pensarão duas vezes antes de fazer de novo. Chamar a atenção de quem faz e não incentivar os amigos”, diz Camila. Ela faz questão de ressaltar que não existe um estereótipo do cara que comete este tipo de abuso. “São os caras que andam contigo, frequentam tua casa, são gentis com tua família. Tem gente escrota em todo lugar”.
Procurada pelo JUDÃO, a Yamato, organizadora do Anime Friends e de tantos outros eventos temáticos como a Brasil Comic Con, afirma considerar o cosplay não somente o ato de se fantasiar, mas se divertir sem qualquer tipo de problema. “Também destacamos que assédio sexual é crime e qualquer incidência deste tipo em nossos eventos é tratada da forma como a lei especifica, tratando de fazer o boletim de ocorrência e assim garantindo os direitos de todos os visitantes. Para isso temos uma equipe muito grande de staffs, seguranças, bombeiros, além da visita periódica da GCM, PM e do próprio corpo da aeronáutica [Nota do Editor: já que o evento vem sendo realizado no Campo de Marte], que endereça aos organizadores do evento caso sejam notificados de algo”.
A nota oficial, contudo, faz uma ressalva que é extremamente perigosa – ao ressaltar que entre as regras para utilização de cosplays, existe um item em específico que diz “serão coibidas todas e quaisquer cenas e vestimentas ilícitas ou impróprias para TODOS os visitantes (maiores ou menores de idade)”. A definição do que eles chamam de “vestimenta imprópria” se aplica a “toalhas, sungas, biquínis, roupas íntimas, sem roupas ou similares”. E finalizam afirmando que “em caso de reincidência, a pessoa em questão será convidada a se retirar do evento”. Este tipo de atitude pode dar uma margem GIGANTESCA para a culpabilização da vítima. Ah, tava usando esta roupa? Viu só, as regras diziam que não podia, então, olha só, levou um apertão na bunda. Lembrando que, assim como um cara de sunga pode estar muito bem fazendo um cosplay de Namor, o Príncipe Submarino, uma garota com um biquini feito de cota de malha poderia ser a Sonja.
Já o FIQ (Festival Internacional de Quadrinhos) afirmou que está elaborando um regulamento do visitante que será divulgado mais próximo do evento (que acontece entre os dias 11 e 15 de novembro) no qual constará a política contra qualquer tipo de assédio. Além disso, publicaram recentemente uma espécie de manifesto a favor da diversidade, no qual afirmam que querem que o FIQ seja um ambiente seguro e acolhedor, livre de assédios e constrangimentos. “Para isso, precisamos e contamos com a ajuda de todos: convidados, expositores, visitantes e mesmo aqueles que não poderão estar aqui em BH, mas acompanham e apoiam o evento. Através das nossas redes sociais, esperamos criar um canal de comunicação para debater essas questões com o público”.
As ações parecem uma reação direta ao caso ocorrido em 2013, quando um quadrinista brasileiro presente no evento fotografou partes íntimas de algumas cosplayers e postou nas redes sociais, com os devidos comentários escrotos para acompanhar, usando a hashtag oficial do FIQ. A atitude, quando descoberta, causou a revolta de outros artistas presentes no Festival, que se manifestaram e acabaram fazendo com que as postagens fossem eliminadas – e a organização acabou sendo acusada de “colocar panos quentes” e não se envolver diretamente, publicando apenas uma nota na qual “repudia” o acontecido. Afonso Andrade, coordenador de quadrinhos da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte, defende o FIQ e afirma que as coisas se desenrolaram de maneira diferente.
“O evento tem uma movimentação gigantesca nas redes sociais, antes, durante e logo após sua realização. A nossa responsável pelas redes sociais do FIQ, que fazia o monitoramento na rede, foi alertada sobre esta foto, mas isso só aconteceu um ou dois dias após o término do evento. Quando soubemos, a foto já tinha sido deletada da conta do usuário em questão. Infelizmente, ninguém tinha feito um print da publicação”, explica ele. “Com o evento já encerrado, a foto apagada e sem um print, nossa capacidade de atuação e intervenção era limitada. No entanto, alertamos o responsável pelo estande onde o autor da foto tinha estado durante o festival, prestamos nossa solidaridade, apoio e nos colocamos à disposição para qualquer coisa junto à cosplayer vítima do assédio e publicamos uma nota de repúdio. Então não é correto afirmar que ficamos fora do assunto ou nos silenciamos”.
Também procuramos a organização da CCXP para entender que tipo de atitudes eles tomam para evitar este tipo de situação, mas não houve nenhuma manifestação. Se e quando houver alguma resposta, atualizaremos a matéria.