Mayra Dias Gomes foi até o Tuska Open Air Festival pra entender por que a Finlândia é TÃO heavy metal
Sempre pensei nos Finlandeses como vampiros da vida real. Nascidos no clima mais extremo de todos os países, eles enfrentam o desafio de lidar com pelo menos três meses de escuridão quase total e um verão de luz contínua. Entre Novembro e Janeiro, o sol se retira, e raramente aparece. No norte do país, não se põe por 73 dias, e o dia, após dia, após dia de escuridão, acaba dando origem ao fenômeno natural conhecido como “Sol da meia noite”, em que o sol fica visível por 24 horas no verão. A Finlândia é o quarto país mais gelado do mundo, e muitos acreditam que a casa do Papai Noel fica lá, na Lapônia. Apesar de ser um dos lugares com melhor segurança e educação, lida com altos índices de depressão e suicídio (contudo, o número de suicídios diminuiu, com o crescimento de programas de prevenção.)
É natural que as trevas externas causem cansaço, desânimo, tristeza, e que acentue a escuridão que há, inevitavelmente, dentro de todo ser humano, coexistindo com o que há de iluminado. Os finlandeses, apesar de muito amigáveis, são pessoas geralmente reservadas e fechadas com seus sentimentos. Uma excessão é quando falamos de heavy metal: um veículo perfeito para externar o que fica reprimido, uma forma pura de libertação das condições climáticas únicas da vida na Finlândia.
Uma vez subjulgado e rejeitado pela mídia, o heavy metal na Finlândia cresceu nos últimos trinta anos, a ponto de virar um gênero musical mainstream, o que significa que crianças e avós o escutam, e que toca nas rádios. Hoje é motivo de orgulho, promovido por entidades do governo, como o Consulado Geral da Finlândia e o Ministério de Relações Exteriores, em parceria com a Music Finland, uma companhia que promove o sucesso da música finlandesa, e o heavy metal como parte da identidade do país — tornando inclusive um clichê explicar que há doze anos, a banda finlandesa Lordi foi vencedora do famoso concurso de canções Eurovision, e com isso ajudou o a popularidade do metal do país a crescer ainda mais durante a década de 2000.
Eu fui para Helsinki, capital da Finlândia, durante o verão, para ir ao Tuska Open Air Metal Festival, um dos festivais de rock mais antigos da Europa, agora localizado em uma extinta usina no centro da cidade, e que acontece há respeitáveis vinte e um anos. Apesar de ter visitado a cidade uma vez há dez anos, quis voltar e compreender melhor por que o país é tão heavy metal, inquestionavelmente o país mais heavy metal do mundo — tem o maior número de bandas de todos os possíveis sub-gêneros mais complexos do metal per capta, fato repetido até pelo ex-presidente americano Barack Obama durante um discurso para representantes nórdicos na Casa Branca, em 2016.
Os festivais de verão na Finlândia, como o Tuska, costumam atrair mais de 30 mil pessoas. e tudo isso faz com que o país seja um dos lugares mais legais para passar o verão se você é roqueiro, ou se quer descobrir novas paixões musicais. Esse ano, o line-up de três dias e três palcos continha artistas locais (Moonsorrow, Turmion Kätilö, Arion, Shiraz Lane, Hard Action, Gloomy Grim, Hallatar, Mokoma, Beast in Black, Foreseen), e de países vizinhos, como Suécia (Europe, Arch Enemy, Meshuggah, At The Gates, Bombus), Noruega (Leprous, Emperor), Dinamarca (Baest), França (Gojira), Alemanha (Kreator, Mantar), e até Canadá (Crowbar, Oni), Austrália (Parkway Drive), além de alguns americanos (Clutch, Dead Cross, Stick to Your Gun, Bodycount). Diversos gêneros estavam presentes — death metal, black metal, power metal, doom metal, thrash metal, goth metal, progressive metal — exibindo a complexidade do metal e a variedade de estilos que atendem aos gostos.
A educação e respeito do público do Tuska imediatamente me impressionaram; todas as pessoas migram de um palco para o outro para dar oportunidade para todos os artistas, ou seja, não há ninguém segurando lugar ou causando confusão. Também não há um mar de telefones celulares no ar. Diferentes de públicos de outros paises, os finlandeses aproveitam o momento.
E há senhoras e muitas crianças na platéia. <3
Algúem me perguntou por que temos tantos guitarristas ótimos na Finlândia e eu falei que é porque há tantos ursos polares do lado de fora durante o inverno, que as pessoas ficam dentro de casa praticando a guitarra
Lá, encontrei com Toni Peiju, empresário da banda de maior sucesso do país, o Nightwish, de metal sinfônico, formada em 1996 e hoje popular à ponto de lotar arenas. “O Nightwish é mainstream demais para tocar em festivais de metal como esse”, disse Toni. “Meu pai e minha mãe amam Nightwish, por exemplo. Quando o metal começou a crescer mesmo aqui, rapidamente se tornou mainstream. Quando o Amorphis lança um álbum, ele vai para o topo da lista da Billboard na Finlândia. A Finlândia é metal.”
“Agora estamos no verão e tudo está ótimo, mas na maioria do ano, é muito, muito escuro, e os pensamentos que as pessoas têm são mais escuros ainda. Algúem me perguntou por que temos tantos guitarristas ótimos na Finlândia e eu falei que é porque há tantos ursos polares do lado de fora durante o inverno, que as pessoas ficam dentro de casa praticando a guitarra”, disse Toni Peiju. “Como você vai fazer música alegre, quando está tendo tanos pensamentos obscuros? Aqui há a chance de fazer metal de qualidade, porque vem associado com todos os pensamentos obscuros.”
Também encontrei com Jens Prüter, que está à frente do departamento de Artistas e Repertório da Century Media, gravadora originada na Alemanha, especializada em heavy metal. Ele me disse que “a melancolia é aceita como parte da alma finlandesa, e todos enlouquecem depois de alguns meses sem luz. É isso que faz com que o metal finlandês seja tão popular e especial na Finlândia e fora também. No fim do dia, são ativistas como Jouni Markkanen, co-organizador do Tuska, que têm promovido a cena por um bom tempo. Nós da Century Media temos um longo histórico com bandas da Finlândia, começando com a trágica e lendária banda Sentenced, nos anos 90. Hoje nós temos bandas como Insomnium, que teve a coragem de fazer uma música de 40 minutos, ou Swallow The Sun, que fez um álbum triplo. É preciso ser um pouco louco para ir tão longe. Eu amo a Finlândia.”
De fato, não tem como não amar a excentricidade Filandesa. Nas minhas primeiras horas em Helsinki, fui levada para o Riff, um bar no centro da cidade com jeito de lounge, cujo dono é o Jussi 69, baterista da banda de goth’n’roll, 69 Eyes, já na ativa há incríveis trinta anos, com fãs conquistados no mundo todo.
Assim que coloquei os pés no The Riff, dei de cara com uma das maiores lendas da música de todos os tempos, na Finlândia e no mundo, encostado no bar com seu estilo único e inconfundível, claramente copiado por muitos. Ele usava calças jeans apertadas, uma blusa branca de manga comprida com estampa, colete dourado e echarpe em volta do pescoço, chapéu de cowboy com uma bandana por baixo, anéis em todos os dedos e um elegante sapato de bico fino. Era Andy McCoy, guitarrista do Hanoi Rocks, a banda que inspirou praticamente todos os glam rockers de Los Angeles, de Mötley Crüe à Guns n Roses, e outros que não admitem. Jovens bandas finlandesas sonham em estar na Sunset Strip, em Los Angeles, mas muito do estilo da Sunset Strip veio diretamente da Finlândia, através do Hanoi Rocks. Jyrki 69, vocalista dos 69 Eyes, tem Andy McCoy como um dos seus ídolos e, dois dias depois, no Tuska, onde assisti ao show da banda e o entrevistei, me disse que aguarda ansiosamente por qualquer projeto dele, acima de qualquer outra pessoa.
Jyrki 69 ainda que me contou que com a comemoração de trinta anos da banda, eles estão em estúdio gravando um novo álbum e se preparando para focar em uma turnê americana. Depois de viajar pelos Estados Unidos com seu projeto solo, acompanhado por uma banda americana, Jyrki quer voltar para não deixar que os fãs se esqueçam do 69 Eyes, que tocou nos Estados Unidos já há quase dez anos. “A tour americana foi ótima. Eu queria tocar minhas músicas solo, que não toco com os 69 Eyes. Então montei uma banda baseada em Los Angeles para isso, mas gosto de pensar que sou só um membro dessa banda. Essa é minha maneira de me expressar, eu estou sempre criando coisas novas.”
Eu cheguei em Helsinki com uma mensagem de boas-vindas do Jyrki 69, mas nunca imaginei que seria ainda mais bem vinda à cidade dessa maneira. No bar, perguntei se ver Andy no The Riff era comum como costumava ser ver o Lemmy no Rainbow Bar and Grill, na Sunset Strip, em Los Angeles. “Não, é uma aparição rara”, me disseram. E ele mesmo fez questão de confirmar que eu tinha tido sorte em encontrá-lo naquela noite.
Andy e eu acabamos conversando em uma mesa, quando notei que meu celular estava ficando sem bateria. Não sabia como voltar para o meu hotel, e avisei para ele que tinha que ir. Gentilmente, ele disse que me levaria até a porta do meu hotel, que ficava há oito minutos do bar. No caminho, enquanto apontava lugares onde havia tocado com o Hanoi Rocks, contei para ele que eu estava em Helsinki para escrever sobre a cultura heavy metal da cidade. Eu deveria ter esperado a resposta que ele me deu: “Foda-se o heavy metal.” No fim, eu o agradeci por ter tornado minha viagem imediatamente mágica.
Não escrevemos sobre drogas, sexo e rock’n’roll. Claro que gostamos de nos divertir, mas nossa mensagem é de paz e amor. Há muita escuridão, muitas coisas ruins acontecendo no mundo, e nós achamos que a mudança começa com cada pessoa
No dia seguinte, o Tuska Open Air Metal Festival me apresentou uma variedade de bandas que eu não conhecia. As mais famosas do line-up eram Arch Enemy, Gojira, Kreator, Emperor, Europe, Body Count e Dead Cross (as últimas duas americanas, bandas do Ice-T e do Mike Patton com o Dave Lombardo). Fiz diversas descobertas de bandas novas que valem muito a pena conhecer, a maioria recomendada por Niko Kangas, gerente de exportação da Music Finland: Shiraz Lane, Temple Balls, Grave Pleasures, Blind Channel, Arion, Lauri Porra Flyover Ensemble (do baixista do Stratovarius, Lauri Porra) e Hallatar (do Tomi Joutsen, vocalista do Amporhis com o Gas Lipstick, baterista do H.I.M e o Heike Langhans, vocalista do Draconian.) Também me impressionei com Tribulation, Turmion Kätilö, Meshuggah, Beast in Black, e Galactic Empire (uma banda muito divertida, que toca músicas da trilha sonóra do Star Wars em versão metal.)
No primeiro dia, conversei com a banda Shiraz Lane, garotos jovens e talentosos, com nítidas inluências do hard rock, que divulgavam seu segundo álbum, Carnival Days, “que é muito mais evoluído que o primeiro”. Eles me disseram algo que me surpreendeu, após encontrar com Andy McCoy: “Há muitas bandas de metal na Finlândia, mas acho que não se compara com a cena de Los Angeles nos anos 80”. Perguntei para o vocalista Hannes Kett se eles já haviam ido para Los Angeles, e ele disse que não. Disse pra ele que hoje em dia a Finlândia tem uma cena maior que Los Angeles. “Honestamente, eu não sinto que a Finlândia é tão rock’n’roll, possivelmente porque eu moro aqui. Quando você mora em algum lugar, você não vê a beleza das coisas. Mas eu fico muito feliz ao ouvir isso. Os finlandeses são pessoas tristes, no fundo, porque está sempre escuro. Agora o tempo está bom e estamos felizes. Você se sente sortudo no verão, mas na maioria do ano, é uma escuridão que parece não ter fim.”
“Nós temos cabelos longos e parecemos meninas como outras bandas do mesmo estilo, mas nossas letras nos diferenciam”, ele continuou. “Não escrevemos sobre drogas, sexo e rock’n’roll. Claro que gostamos de nos divertir, mas nossa mensagem é de paz e amor. Há muita escuridão, muitas coisas ruins acontecendo no mundo, e nós achamos que a mudança começa com cada pessoa.”
Outra banda jovem de hard rock, Temple Balls, que assim como Shiraz Lane, poderia ter vindo da Sunset Strip, se sentou para bater um papo comigo no terceiro dia do festival, depois de um show energético no palco principal. A banda lançou seu primeiro álbum, Traded Dreams, em 2017, e é um dos nomes promissores da cena hard rock. “Vamos entrar no estúdio no dia 16 de Julho para começar a gravar nosso segundo álbum”, disse o vocalista Arde Teronen, cuja principal influência é o Kiss. Arde disse que o Tuska é um festival muito importante para bandas novas como o Temple Balls, e que dá A bandas novas a oportunidade de se mostrar para um público grande, ao lado de nomes reconhecidos do heavy metal.
“Eu estou muito feliz que você veio à Helsinki”, disse Jyrki 69, “porque há sempre algo a ser descoberto musicalmente. Nossos países vizinhos, como a Noruega e a Suécia, gostam de música dance, como ABBA. O rock é a música da Finlândia, bandas como AC/DC, são as mais populares. Nós fomos tão isolados do resto do mundo, que quando o rock veio para cá, nunca mais foi embora. Quando o finlandês descobre o rock, ele fica com a gente para o resto da vida. Nós somos verdadeiros amantes da música. Por exemplo, neste festival, há todas as idades de pessoas. Quando você começa a amar o heavy metal, ele simplesmente se torna quem você é.”
• Mayra Dias Gomes viajou a convite do Consulado da Finlândia em Los Angeles