Obra de fantasia do polêmico escritor inglês finalmente começa a ganhar uma publicação no formato que merece aqui no Brasil
Por mais que você seja um fã dedicado de literatura fantástica, ainda assim existe uma boa chance de que você não saiba quem é Michael Moorcock. E tudo bem, você está perdoado. Afinal, este escritor britânico de recém-completados 75 anos não é exatamente um fenômeno pop mainstream como é, por exemplo. J.R.R.Tolkien (uma menção que não foi aleatória, aliás — falaremos dele um pouco mais pra frente). E se isso é uma verdade no mercado europeu, o que dirá aqui no Brasil, País no qual a obra de Moorcock foi publicada com pouca ou quase nenhuma regularidade até hoje?
Depois de alguns contos em obras esquecidas da editora Martins Fontes na década de 1970, de uma raríssima edição batizada de A Espada Diabólica pela Francisco Alves Editora e algumas adaptações de HQs como Navegante dos Mares do Destino e Cidade dos Sonhos — ambas escritas por Roy Thomas e publicadas respectivamente pelas editoras Abril e Globo –, agora a principal criação de Moorcock ganha uma boa chance pelas mãos da Editora Generale.
As livrarias brasileiras já receberam o volume 1 da saga de Elric de Melniboné, batizado de A Traição do Imperador – seguindo a alteração que o próprio Moorcock fez recentemente na ordem de sua jornada, agora tratada de maneira cronológica e não pela ordem de publicação, facilitando o trabalho para novos leitores. A editora Generale – um selo da Évora – garante que assegurou os direitos da série completa e que o segundo volume deve sair em abril deste ano.
A história gira, essencialmente, em torno do príncipe albino Elric, herdeiro do trono de Melniboné, também conhecida como Ilha do Dragão: um verdadeiro anti-herói, representante de um povo decadente que outrora foi uma raça culta e nobre, mas que agora enxerga os humanos como seres inferiores. Elric é um um sujeito frágil, debilitado (que recorre a drogas e poções mágicas para manter sua saúde), um tanto inseguro, mas, ao mesmo tempo, é um guerreiro exemplar e um mago poderoso.
Ele vive suas aventuras por outros mundos, considerando que a obra de Moorcock se passa em um Multiverso repleto de dimensões paralelas e realidades alternativas, tentando cumprir seu destino como o chamado Campeão Eterno, escolhido pelo destino para trazer equilíbrio à luta entre a Ordem e o Caos. Elric mostra pouco interesse pelas tradições de seu mundo, o que acaba por incomodar os súditos e revoltar o seu primo, o príncipe Yyrkoon, sucessor direto que ambiciona o trono. Além de toda a guerra pelo poder, Elric nutre uma paixão por Cymoril, irmã de Yyrkoon, que busca apoiá-lo e compreendê-lo, apesar das dificuldades de entender as motivações do imperador.
Ao lado de Elric está sempre a espada Stormbringer. A arma, que absorve a energia espiritual das pessoas que mata e ajuda a deixar seu soberano ainda mais forte, parece ter vontade própria e, em alguns momentos, ataca pessoas que Elric ama – levando-o à beira da loucura. Some a isso o fato de que ele tem diferentes versões de si mesmo (ou algo assim) andando por aí nos mais diferentes tempos/espaços e causando reações impensáveis ao encontrarem umas com as outras (quem lê HQs da Marvel e da DC vai entender o que isso quer dizer), e bingo, temos um sujeito mentalmente desequilibrado que está longe do estereótipo do herói perfeito.
Fãs de rock talvez se recordem da obra do autor, embora muitos não liguem exatamente o nome à pessoa. O clássico Stormbringer, do Deep Purple com David Coverdale nos vocais, faz referência direta à espada de Elric – assim como a música Black Blade, do Blue Öyster Cult, que por sinal foi co-escrita pelo próprio Moorcock. Já a cidade de Tanelorn, mencionada pelos alemães do Blind Guardian em canções como The Quest For Tanelorn e Tanelorn (Into The Void), é um ponto focal importante do Multiverso de Moorcock, ligado diretamente à jornada do Campeão Eterno. E a banda de hard rock psicodélico Hawkind, da qual fez parte ninguém menos do que Lemmy (vocalista do Motörhead), dedicou um disco conceitual inteiro à obra de Moorcock: The Chronicle of The Black Sword, lançado em 1985.
“Eu amaria fazer um álbum conceitual sobre a obra dele”, disse certa vez o vocalista do Blind Guardian, Hansi Kürsch, a respeito de Moorcock numa entrevista para a revista Metal Hammer. “Você tem sido uma grande inspiração. Ou, colocando de outra forma, eu provavelmente sou, em maioria, culpa sua”, derreteu-se ninguém menos do que Neil Gaiman em um texto sobre o escritor. Para alguns fãs, ler apenas isso já significaria um interesse soberano sobre o que Moorcock tem a dizer.
“Moorcock é único porque não foi devorado pelos clichês do gênero”, opina Vinicius Dreger, historiador especializado em história medieval e um verdadeiro fanático por literatura de fantasia. “Ele os manipulou admiravelmente e os empregou para contar suas histórias, pouco se importando com o que se esperava que ele fizesse”. O tradutor André Gordirro, outro fã declarado do autor inglês, concorda. E afirma que, além de desconstruir os clichês, Moorcock é único principalmente por ser mestre em transferir o mundo real para o fantástico. “A Ilha de Melniboné e seu império decadente claramente são a Inglaterra e os farrapos do antigo império britânico”, explica. “Ele trabalha com um ‘grande mal’ que nem sempre é um grande mal assim; há muita dubiedade nas intenções de heróis e vilões”.
O próprio Gordirro, que vai estrear como escritor em breve com livro a ser lançado pelo selo Fábrica231 da Rocco, admite ter seguido a cartilha do autor, mascarando vários aspectos da geopolítica atual em um cenário de fantasia épica. “O agradecimento ao Moorcock está lá, é claro”, ressalta.
Dreger defende que Moorcock nunca foi publicado como deveria no Brasil por muitas razões, mas, principalmente, por chutar um monte de tabus: “culturais, sexuais, políticos, o pacote todo”. Para ele, o escritor é um iconoclasta. “E isso trouxe muita rejeição de editores, que sempre se enxergam como guardiões do gosto público”. Para Gordirro, a fantasia de Moorcock sempre foi sofisticada demais. “Ela foge ao padrão elfo-anão-grande-mal, pode não agradar o leitor da modinha ou que só jogue RPG. O próprio gênero no Brasil só veio a ser bem tratado agora, com a profusão de filmes do gênero”, opina.
Para ambos, a série de Elric não tem como dar errado aqui no Brasil. “O problema básico é saber quem é esse leitor brasileiro de fantasia. Tipo Globo Repórter: o que ele lê? Quais são suas referências e preferências? O que fazer para tirá-lo das garras do Tolkien?”, brinca Gordirro.
A menção de Gordirro à obra de Tolkien não é mera provocação gratuita – porque há anos o trabalho dos dois vem sendo alvo de comparação e polarizando os fãs. Sim, pode ficar espantado: Tolkien está longe de ser uma unanimidade, apesar de Peter Jackson e seis filmes. Tanto o aspirante a escritor quanto o historiador, por exemplo, são do time que prefere Moorcock ao paizão de Bilbo e Frodo.
“O Tolkien é um linguista e cartógrafo que cismou de ser escritor; tem uma prosa ruim e desenvolve mal os personagens, em grande maioria rasos”, justifica Gordirro. “O Moorcock é maluco, esquece o que escreve, mas tem um domínio de atmosfera que é bem melhor do que a descrição enfadonha de cada folha de uma árvore que não interessa à trama”.
Dreger faz eco ao dizer que Tolkien é ingênuo, fruto de uma época mais simplista. “Ele se prende a limites morais muito claros e nunca poderia criar um mago guerreiro albino, traidor de sua raça, matador de mulheres e servo do Deus do Caos, que sobrevive graças à energia que retira das almas que a espada devora. Elric é complexo, ambíguo e mortal”.
Mas não pára por aí. Além de uma divisão clara entre os fãs, existe também uma ruptura, vejam só, entre os próprios autores. Ou, pelo menos, da parte de Moorcock – que já afirmou enxergar na obra de Tolkien “nada mais do que uma visão conservadora do status quo”. Em entrevista ao jornal inglês The Guardian, o escritor guardou comentários pouco elogiosos ao companheiro de profissão, dizendo que sua coleção de elfos e anões é “uma confirmação perniciosa dos valores de uma classe média moralmente falida”.
Muitos anos antes, ainda com seus tenros 20 e poucos anos, em uma publicação experimental editada por ele chamada New Worlds, Moorcock escreveu um ensaio inteiro no qual comparava o estilo narrativo de Tolkien ao de A. A. Milne – que, caso você não tenha ligado o nome à pessoa, é o criador do Ursinho Pooh (ou para você, que é tiozinho como eu, Ursinho Puff). Para ele, Tolkien (assim como C.S.Lewis, autor de As Crônicas de Nárnia) glorifica a guerra e força um “final feliz” pela garganta do leitor.
“Escritores como Tolkien levam você à beira do abismo e apontam para um belo jardim que tem lá embaixo, mostrando degraus entalhados na pedra para a descida e lembrando que o corrimão ainda está meio bambo, porque eles não tiveram aprovação para colocar um novo ainda”, menciona ele num dos momentos mais divertidos – a íntegra do ensaio pode ser lida aqui.
Anarquista autoproclamado e encrenqueiro afamado, Moorcock tem um histórico de desafetos – exatamente como um dos autores que mais se declaram influenciados por ele e que, em dado momento, tornou-se seu amigo pessoal. É, você deve estar imaginando que estamos falando de Alan Moore. Sem qualquer custo, Moorcock chegou a liberar os personagens Michael Kane (do livro Kane of Old Mars) e o agente secreto Jerry Cornelius (de outra série de obras do autor) para que Moore os usasse em sua Liga Extraordinária.
Mas ambos, vejam só, têm um “adversário” em comum: o escocês Grant Morrison. Durante um raríssimo videocast que Moore realizou respondendo perguntas dos colaboradores da campanha do Kickstarter para ajudar a fazer uma estátua para do finado quadrinista Harvey Pekar em Cleveland, ele soltou a pérola quando perguntado sobre Morrison. “O único ponto de divergência entre eu e Moorcock é sobre quem teve mais coisas roubadas por Morrison nos últimos anos. Eu digo que foi ele. E ele diz que fui eu”.
Em sua defesa, Morrison escreveu um artigo para o site The Beat, no qual afirma que as alegações de Moorcock se devem por conta de algumas passagens entre os números 17 e 19 de Os Invisíveis, nas quais faz uma espécie de pastiche/homenagem à obra de Moorcock dentro da cabeça do personagem King Mob – que, ao longo da trama, se declara um obsessivo por Jerry Cornelius. “Ele julga centenas de páginas do meu trabalho por causa de umas 10 páginas de homenagem”, diz.
Parece que Alan Moore aprendeu bem mais do que apenas estilo literário com Michael Moorcock, afinal de contas... :)