Acima de tudo, declaração da atriz demonstra total falta de conhecimento sobre o universo dos quadrinhos e suas diversidades
“É a coisa mais idiota que eu já ouvi”, disse a Michelle Rodriguez após ser perguntada pelo TMZ sobre os rumores de que a atriz seria a escolha da Warner para ser a nova Lanterna Verde dos cinemas. “Eu acho estúpido, tipo... Por conta de toda essa coisa de minorias em Hollywood. É muito estúpido. Parem de roubar todos os super-heróis dos brancos. Criem os seus. Sabe?”
Há uma enorme diferença entre um rumor e uma ideia, como as que demos aqui em relação ao novo Homem-Aranha. Aparentemente, essa história começou porque o pessoal do Newsarama se lembrou da Jessica Cruz, uma Lanterna Verde mulher e latina, encaixou perfeitamente Michelle Rodriguez no papel e a ideia virou um rumor irresponsável em um outro site, chegando aos ouvidos do pessoal do TMZ que, bem ou mal, fez seu trabalho. Vai quê?
Sua resposta deixou MUITA gente irritada e, vendo a proporção que a coisa estava tomando, Michelle foi lá e postou um vídeo no seu Facebook pedindo desculpas – e explicando melhor a posição que quis defender na entrevista ao TMZ. “O que eu realmente quis dizer é que, no fim do dia, a língua que você fala em Hollywood é ‘franquia de sucesso’. E eu acho que há muitas culturas em Hollywood que não são brancas e que poderiam criar sua própria mitologia. (...) Ao invés de transformar uma menina num cara, ao invés de transformar um personagem branco em negro ou latino, acho que as pessoas deveriam parar de preguiça e o pessoal de Hollywood deveria gastar tempo criando sua própria mitologia”, disse.
“Eu só tou dizendo que as diferentes culturas de todo o mundo que estão em Hollywood — latinos, negros, asiáticos e por aí vai — são consideradas minorias porque não há muitos escritores os representando, e deveriam focar em fazer disso uma prioridade e não pegando Mulher-Gato, Superman ou Lanterna Verde e tentar enfiá-los em qualquer background cultural que você queira. As pessoas deveriam ser mais criativas. Foi isso que eu quis dizer.”
Ok, Michelle. Entendemos sua posição. Mas, infelizmente, ela demonstra uma total falta de conhecimento seu sobre essa “tempestade em copo d’água” que ASSOLA Hollywood nos dias de hoje. ;)
Estamos vivendo em uma época de EVOLUÇÃO dos super-heróis, que simplesmente espelham a sociedade em que vivemos hoje, não aquela em que muitos foram criados, quando por exemplo mulheres não podiam votar, negros não podiam se casar com brancos e por aí vai. Um exemplo disso é Gal Gadot, a Mulher-Maravilha dos cinemas que, além de ter cabelos e olhos escuros, poderia ser simplesmente uma SECRETÁRIA da Liga da Justiça.
É sério.
Ainda nos anos 40, Diana Prince foi admitida na Sociedade da Justiça como uma mera secretária – culpa, em parte, do próprio criador da heroína, William Moulton Marston. O cara, que era psicólogo e também feminista, simplesmente não queria que outros roteiristas escrevessem histórias da Mulher-Maravilha, entrando em atrito com a National Periodical (que hoje atende pelo nome de DC Comics) e com os colegas de trabalho. Pra manter a heroína presente nas histórias da Sociedade da Justica, a antecessora da Liga, mesmo que com participações pequenas e rápidas, alguém teve a ~genial ideia de colocá-la no papel de secretária, fazendo com que percebesse que nunca se sentiu tão empolgada em toda a sua vida, enquanto todo o resto do pessoal cantava que ela era uma boa companheira.
Algo bizarro até para os anos 40 e que não pode ser justificado apenas pela posição do Marston, mas também por todo mundo envolvido com essa decisão e até pelos leitores, que aceitaram isso como algo normal. Porém, o crescimento da importância da Mulher-Maravilha nas histórias aconteceu, com a heroína finalmente formando a Tríade da DC ao lado do Batman e do Superman.
A questão dos direitos iguais entre brancos e negros é algo que chegou aos quadrinhos apenas a partir de meados dos anos 60. A Marvel, que vivia uma efervescência criativa, foi a primeira entrar nisso. Surgiram o Pantera Negra, Falcão, Luke Cage... Todos nomes importantes no imaginário da Casa das Ideias, mas que, por diversos (...) motivos, nunca superaram a popularidade daqueles que vieram antes, como Capitão América, Homem-Aranha e Quarteto Fantástico – todos originalmente brancos.
Enquanto a essa altura a Marvel era tipo a Apple dos anos 80 ou 2000, a DC era meio que como a IBM ou a Microsoft. Bem estabelecida, ficou acomodada no que criara nas décadas anteriores e falhou ao não conseguir acompanhar tão de perto a evolução da sociedade. Mas isso não quer dizer que eles ficaram parados – e, quando agiram, usaram justamente a tática que a Michelle Rodriguez agora condena.
Foi em 1971. Naquela época, a dupla Dennis O`Neil e Neil Adams dava ao mundo uma das melhores fases clássicas de um personagem. Ou melhor, de dois. Eles assumiram o gibi mensal do Lanterna Verde, trouxeram o herói para mais próximo dos problemas mundanos e acrescentaram o Arqueiro Verde ao mix (e ao título). Green Lantern/Green Arrow abordou então temas como drogas, religião e, claro, o preconceito.
Depois que o reserva do Hal Jordan, Guy Gardner, bateu a cabeça, os Guardiões do Universo escolheram uma nova pessoa para o posto: John Stewart, um arquiteto que também era veterano da Marinha. Jordan odiou a escolha, mas não só teve que engolir como também acompanhar o reserva em uma missão – que era justamente escoltar um político racista.
Eventualmente tentam matar o tal político com um tiro, e Stewart não o ajuda – e, no processo, é acusado até de tentativa de assassinato. No fim, o reserva revela que estava salvando a vida de um policial naquele exato instante, além da tentativa de assassinato ser apenas um plano pro político ganhar vantagem... Jordan percebe que estava sendo levado a desconfiar do colega por preconceito, finalmente vendo que ele merecia a confiança.
Se você perceber bem, o que a DC fez – e repetiu diversas vezes de lá pra cá, assim como a Marvel – foi usar uma franquia estabelecida anos antes pra abraçar a diversidade, justamente por já ter a atenção devida para um assunto tão importante, ou acompanhar a nossa própria evolução enquanto sociedade.
Os Lanternas Verdes são uma ótima plataforma pra tudo isso, inclusive. Estamos falando de um exército intergaláctico que precisa ser diverso por natureza. Aliens dos mais diferentes tipos estão lá e nunca houve a obrigação do representante da Terra ser o Hal Jordan – ou um cara da mesma etnia e gênero que ele. Além do John Stewart, tivemos recentemente a introdução do Baz, um Lanterna Verde de origem árabe. Tudo isso é algo que a própria mitologia da Tropa permite de forma fácil – como permitiria uma representante mulher pra Terra.
Também não podemos falar que nunca foram criados personagens pensados para “minorias” desde o dia 0. E em Hollywood. Não exatamente no cinema, mas, por exemplo, essa era uma preocupação da Hanna-Barbera nos Superamigos. Pena que heróis como Chefe Apache, El Dorado e Samurai eram estereotipados e nunca ganharam muita atenção dos fãs.
De certa forma, essa história de diversidade deu certo nos Superamigos apenas nos anos 80, quando colocaram o Ciborgue na equipe. Vindo dos gibis, era um personagem que não era estereotipado e teve uma identificação com o público – um início de trajetória que, hoje, faz do cara um membro da Liga da Justiça nos gibis AND nos cinemas.
Há inúmeros outros exemplos ignorados na declaração da Michelle Rodriguez (como, por exemplo, o Spawn, o Miles Morales, a Tanya Spears e, claro, Jessica Cruz), mas vamos ficar na DC, já que esse é o assunto. É só olhar para o histórico da editora que vamos ver o nome Milestone Media, uma grande iniciativa de HQs criada por quadrinistas negros, incluindo aí Dwayne McDuffie.
Basicamente, a Milestone criou um universo separado, chamado Dakotaverse (por justamente se passar em Dakota), povoado por heróis negros. Inicialmente a Milestone e a DC tiveram um acordo comercial, que envolvia publicação e tornou possível o crossover entre os heróis das empresas (na saga “Quando os Mundos Colidem”). Infelizmente, o mercado parecia ainda imaturo pra uma atitude dessas, houve uma grande crise em meados dos anos 90 e o selo foi pro limbo – com a empresa sendo comprada pela DC pouco depois.
Mas aquela iniciativa foi importante, além de ter continuado viva numa série animada estrelada por um dos heróis da Milestone, o Super Choque. Foi algo também que abriu o mundo da animação para o McDuffie, que se envolveu depois com a série da Liga da Justiça – que, não por coincidência, tinha John Stewart como o Lanterna Verde oficial.
Ou seja: o problema não é a preguiça de quem não cria esses personagens. ELES ESTÃO LÁ. O problema é Hollywood não investir neles logo de cara – ou criar próprios heróis – simplesmente porque um filme é algo caro e arriscado. Uma produção de uma franquia conhecida diminui esses riscos e deixa os investidores mais seguros sobre onde estão botando o dinheiro. Quando falamos de histórias em quadrinhos, “segurança” acaba sendo basicamente esses nomes tradicionais, aqueles criados na época que todos eles eram caucasianos.
Por sorte, há algum movimento de mudança por lá, também. O Pantera Negra vai ter um filme próprio, assim como a Mulher-Maravilha e Miss Marvel e o próprio Ciborgue – fora a importância já dada para personagens como Agente Carter, Viúva Negra e o Falcão...
O que todo mundo precisa fazer – e, nesse caso, a Michelle Rodriguez é alguém que pode ajudar MUITO nisso – é evoluir a discussão. Não podemos mais debater se “precisamos de uma heroína nos cinemas”, ou “vamos escalar um ator latino para tal personagem”. As histórias precisam ser contadas porque são interessantes, divertidas e/ou relevantes, com atores escolhidos porque têm competência para segurar o papel, INDEPENDENTE da sua cor de pele ou antepassados.
Porém, o que vemos é um Oscar que desdenha os super-heróis – e que este ano não trouxe nenhum indicado negro, apesar da qualidade (e da importância) vista em, por exemplo, Selma.
É, pois é. Um dia chegamos lá.