O conceito da super-heroína como ela é nos dias de hoje, tanto nos gibis quanto na sua versão cinematográfica, só existe graças ao trabalho da roteirista que redefiniu sua origem e seu papel na mitologia da Casa das Ideias
Como parte de uma das edições de seu 99U, um evento sobre inovação e criatividade que é praticamente um TED Talks da vida, a Adobe convidou a roteirista americana de quadrinhos Kelly Sue DeConnick para uma fala. O tema que ela preparou não poderia combinar mais com sua própria trajetória profissional: cinco passos para se tornar um provedor profissional de desconforto.
Natural de Ohio e leitora de quadrinhos desde a infância, ela começou a dar seus primeiros passos na indústria dos gibis (ou algo do gênero) ainda bem jovem, depois da formação universitária em artes cênicas pela University of Texas at Austin, ao escrever legendas para as fotos de revistas adultas (“odeio admitir isso, mas não eram exatamente as modelos falando”, revelaria ela mais tarde numa entrevista para a Vanity Fair). Mais tarde, tratou de encarar outro ambiente recheado de homens com suas inabaláveis percepções de que o mundo gira ao redor do seu umbigo ao publicar histórias próprias nos fóruns mantidos pelo colega Warren Ellis. O sujeito sacou que ela tinha um talento bruto e a trouxe para trabalhar com ele, inicialmente cuidando dos textos dos catálogos de gibis de seu site da época, o hoje finado artbomb.net.
Mas ela chegaria a colocar as mãos DE FATO nos gibis quando teve a chance de começar a adaptar os roteiros de mangás da Tokyopop e da Viz para o inglês, com a providencial ajuda de um tradutor. Foram sete longos anos, escrevendo mais de 10.000 páginas neste esquema. “Quando dizem que os diálogos são a melhor parte dos meus roteiros, é porque eu pratiquei bastante”, brinca ela.
Embora a primeira HQ com um roteiro seu que viu de fato a luz do sol tenha sido uma história de cinco páginas na revista CSI: Crime Scene Investigations, em 2004, como parte das séries limitadas que a IDW Publishing colocava na rua para adaptar a franquia de seriados, Kelly tinha um foco bastante específico: a Marvel. Em 2009, ela enviou profissionalmente para a editora duas sugestões de roteiros, propositalmente deixando de lado a informação de que era casada com um camarada que conheceu ainda nos fóruns de Ellis, em 2001. Um tal Matt Fritchman, que assina como Matt Fraction.
Na real, ela só revelaria sua relação com o roteirista, que fez sucesso com títulos como Gavião Arqueiro, Punho de Ferro, Homem de Ferro e Thor, depois que suas propostas fossem aceitas e ela ganhasse passe livre dentro da Casa das Ideias. E foi o que aconteceu. Já lá dentro, ela escreveu uma série limitada estrelada por ninguém menos do que Norman Osborn, além de one-shots de personagens como Sif, a guerreira asgardiana, e Resgate, o alter-ego de armadura metálica de ninguém menos do que Pepper Potts. Só que o melhor, o trabalho que marcou sua carreira mas também mudou para sempre a personagem que a acompanharia a partir dali, ainda estava por vir.
“Eu ouvi alguém falar que o Steve Wacker, um dos editores da Marvel, estava em busca de uma ideia interessante para a Carol Danvers”, conta Kelly, em entrevista ao EW. “Eu tinha prestado atenção na personagem e encontrei muito nela que era interessante e que era pessoal pra mim. Aí, desenvolvi uma abordagem que se aprofundava na história das mulheres no cenário da aviação”.
A conexão que ela encontrou foi que, bom, Carol Danvers era uma piloto e seu próprio pai também, um civil trabalhando junto com a Força Aérea dos EUA. Desta forma, Kelly acabou sendo criada e passou grande parte da infância em bases da aeronáutica, capaz, segundo seu pai, de identificar um modelo de avião apenas pelo barulho do motor. “Conforme eu crescia, nos anos 70, tinha uma espécie de conexão entre as culturas dos gibis e da Força Aérea. Fazia sentido que as pessoas que prestavam aquele serviço acabassem se interessando por histórias a respeito de heróis”.
O grande problema é que, apesar do apoio de Wacker, que deu a ela o trabalho e estava entre aqueles que defendia que Carol finalmente devia assumir o manto do Capitão Marvel, nada ali se encaixava exatamente na fórmula de um título que prometesse durar muito. “Pra dar certo, era preciso ter um personagem da classe A, ou então um roteirista da classe A ou quem sabe um artista da classe A. Carol não era um personagem do alto escalão, eu certamente também não era uma roteirista do alto escalão e a gente nem tinha um desenhista ainda. As chances estavam contra nós”, conta ela.
Mas aconteceu.
Com arte de Dexter Soy, que nunca tinha desenhado um título sequer para nenhuma das grandes duas editoras na época, além de um novo uniforme desenvolvido pelo renomado Jamie McKelvie (que topou a aposta com Kelly: caso a Marvel não gostasse do modelo e não comprasse a ideia, ela mesma pagaria do próprio bolso), o novo gibi de Carol Danvers, que deixou de ser Miss para tornar-se Capitã, tinha um arco que, na cabeça da roteirista, duraria umas seis edições antes do cancelamento. Mal sabia ela que a parada duraria uns bons três anos. Com seus 30.000 exemplares mensais, Capitã Marvel não vendia tanto quanto os grandes medalhões da editora, mas desenvolveu uma base de fãs fiel, do tipo que tinha tatuagens da personagem, coisa inimaginável alguns anos antes. Nascia ali a Carol Corps.
“Ela é uma garota com histórico militar, feminista. A ideia de tê-la voando por aí com a bunda à mostra é ridícula”, afirma Kelly, relembrando a roupinha de Miss Marvel, com o maiô cavado, as botas e luvas de ir pra ópera. O novo uniforme deu a ela uma postura diferente, isso é claro. Mas qual o segredo, no fim das contas, para a mudança de paradigma, para o sucesso da Capitã Marvel? “Carol é lindamente imperfeita”, afirma Kelly.
A escritora defende que a personagem conseguiu preencher um vácuo entre o Capitão América e o Homem de Ferro. Ela é um soldado, como Steve Rogers. Mas, ao contrário do Bandeiroso, não estamos falando de um soldado todo certinho, que segue o livro de regras sem pensar. Na real, ela se deixa guiar menos por ser a coisa certa a fazer e mais por “você não vai me deter”. Desafiadora, desaforada, Carol é cabeça quente, tem um senso de humor meio pastelão, mas também carrega um pouco da arrogância, do brilho nos olhos do Tony. “Ela sabe que nem todos os seus motivos são puros”, diz. E foi aí que ela ganhou esta nova base de leitores.
Parte desta força da personagem, na real, Kelly atribui às suas próprias origens. Porque, muito embora a autora seja feminista e tenha incluído isso em sua versão da personagem, que não apenas mostrou uma personalidade única mas também se cercou de um grupo de coadjuvantes que formavam um grupo verdadeiro de amigas, ela faz questão de ressaltar que isso já estava presente, de alguma forma, desde os primórdios. “Não chegou a ser uma mudança, de fato. Foi mais como uma restauração”, afirma ela, para a rádio Wbur 90.9, de Boston.
“A Carol, enquanto Miss Marvel lá em 1977 [quando Gerry Conway deu superpoderes a ela e a tirou da condição de coadjuvante/interesse romântico do Capitão Marvel], era ainda mais feminista”, explica, relembrando que a jovem heroína chegou a virar editora de uma revista feminina focada numa mulher mais moderna, dinâmica e independente. “Mas vivemos num mundo hoje em que as pessoas se sentem ameaçadas por isso. Acho que tem mais gente que apoia do que gente que é contra. Mas aqueles que ficam nervosos se tornaram mais VOCAIS sobre o assunto”.
As respostas dos meninos chorões ao sucesso da Capitã Marvel, que seriam parte de uma “agenda SJW da Marvel”, inspiraram Kelly em um de seus títulos autorais de sucesso: Bitch Planet, publicado pela Image Comics. “Eu não estava, com a Capitã Marvel, escrevendo panfletos feministas. Eram histórias sobre uma mulher que disparava raios das mãos, sabe”, conta. “Mas eu tive a chance de criar laços de amizade intergeracionais entre mulheres e tinha um elenco feminino enorme no título e, veja, de vez em quando até uma piada. Isso mexeu com algumas pessoas e eu pensei: bom, se é sobre isso que vamos falar, então vamos falar mesmo”.
Bitch Planet se passa numa realidade distópica, na qual mulheres que “não se encaixam” são enviadas para um lugar bastante violento, uma espécie de planeta-prisão. Além desta HQ, ela também escreve a igualmente autoral Pretty Deadly, uma mistura de horror e western com os belos traços da artista espanhola Emma Ríos. Depois de sua saída do título da Capitã Marvel, curiosamente quando o filme enfim foi confirmado (“uma decisão calculada, eu tinha muita coisa acontecendo, ou saía no topo ou então encarava mais três anos”), estes têm sido seus focos na Milkfed Criminal Masterminds, empresa que administra com Fraction para cuidar dos trabalhos autorais de ambos.
E isso é bastante coisa, já que o casal, vivendo em Portland e cuidando de seus dois filhos, recentemente fechou um acordo de dois anos com a Legendary Television para adaptar algumas de suas obras para série (seja numa TV tradicional ou streaming) e também para a criação de material novo, exclusivo e original.
Mas Kelly não consegue, obviamente, e também nem faz questão de querer, se desvencilhar da personagem que remodelou para um novo mundo – e que, vamos lá, é a principal inspiração para o filme. Tanto é que DeConnick atuou como consultora para a Marvel Studios. “Me senti bastante ouvida”. Além de gravar uma participação especial no melhor estilo Stan Lee (se liga na cena da estação de trem), ela teve a chance de ler todas as versões do roteiro, deu sugestões e conversou muito com os diretores Anna Boden e Ryan Fleck.
“Também falei muito sobre o que achei que era importante sob uma perspectiva feminista”, conta. “Sei que às vezes a simples menção ao termo é algo que faz as pessoas se arrepiarem, mas não peço desculpas por isso. Este é o primeiro filme de uma mulher super-heroína da Marvel e isso é muito importante”. Além disso, a autora também conversou com Brie Larson a respeito da Capitã Marvel e sobre como todo este projeto importava para ambas. “Sobre os motivos que a levaram a escolher esta produção e como um filme desta magnitude afetava sua vida, como ela iria se adaptar”.
Seja numa grande ou numa pequena editora, tanto faz, Kelly Sue DeConnick faz questão de permear seus quadrinhos com altas doses de representatividade feminina – e também tenta, a todo custo, incentivar OUTRAS mulheres a assumir seus espaços em um mercado no qual, basicamente, apenas ela e Gail Simone costumam ser lembradas de imediato como “mulheres contemporâneas fazendo quadrinhos”.
“Ser uma mulher numa indústria dominada por homens é um saco, mas não é mais terrível do que ser uma mulher no mundo”, respondeu ela, certa feita, a uma pergunta do público sobre o sexismo nos quadrinhos, durante uma apresentação para um curso de jovens aspirantes a quadrinistas. “Meu conselho? Be terrifying”. Deixamos aqui em inglês porque a palavra pode e significa duas coisas diferentes: “sejam fodas”, do tipo façam um trabalho absolutamente incrível. Mas também quer dizer “sejam aterrorizantes”, daquele tipo que chega pra incomodar mesmo. Um “provedor profissional de desconforto”, saca? ;)