As mulheres de Sin City | JUDAO.com.br

As beldades ferozes e fatais que habitam uma das obras máximas de Frank Miller

Pode parecer meio óbvio, dada a nacionalidade do cidadão, mas espere até que eu explique: sempre defendi que, da santíssima trindade dos quadrinhos (Alan Moore, Neil Gaiman e Frank Miller), o autor de “O Cavaleiro dos Trevas” era o escritor mais, digamos, americano dos três.

Tudo bem, ele é MESMO nascido nos EUA enquanto os dois são oriundos da Inglaterra. Mas a comparação é mais sensível do que isso: dos três, Miller é quem tem a obra mais visceral, violenta e, por que não dizer, mais masculina de todas. Enquanto Moore é mais cerebral e Gaiman é mais sentimental/onírico, Miller desferia grande quantidade de socos e pontapés a cada quadrinho – sempre com inteligência, é claro. Ou pelo menos lá, naquela época, era assim, mas vamos manter a discussão nestes termos.

Mestre em personagens masculinos fortes, perigosos e intensos, Frank Miller poucas vezes pisou no terreno feminino com a delicadeza e destreza de Gaiman. Sua grande personagem feminina tinha sido, até o momento, a letal ninja Elektra, criada por ele e eternizada na graphic novel “Elektra Assassina”. Isso, é claro, até Miller se enveredar pelo terreno de uma certa cidade dos pecados. Isso até surgir, em 1991, a sua série sobre Sin City. Uma cidade repleta de grandes e perturbadoras mulheres. Mas, antes de falar sobre elas, cabe aqui um pouco de história...

Noir

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Inspiração noir

[/one-half][one-half last=”true”]Embora Miller afirme que, em termos de conteúdo, Sin City é inspirada em sua experiência hollywoodiana em Los Angeles, quando escreveu os roteiros de “Robocop 2” e “Robocop 3”, sabe-se bem que sua grande inspiração é o cinema noir, gênero de filme que teve seu apogeu na década de 40 e mistura elementos dos romances policiais de autores como Dashiel Hammett e Raymond Chandler com um pouco da estética do expressionismo alemão dos anos 20. “Traduzindo literalmente, o termo, criado por críticos franceses para denominar fitas policiais, significa ‘novela escura’. Como o próprio nome diz, a principal característica dos exemplares desta categoria envolve a exploração do lado sinistro do duelo mocinho vs. bandido”, explica Leandro Fernandes, o Zarko, especialista em cinema e colaborador do Judão. “Até os idos de 1930, os longas-metragens policiais eram bem claros: o mocinho era bondoso e puro; o bandido era o estereótipo máximo da vilania (o que o tornava muitas vezes risível). O noir procurava dissecar o lado psicológico deste embate; nos filmes noir, integridade era uma palavra inexistente, ou seja, o bom poderia ser tão corrupto, sinistro e dissimulado quanto o mal. Às vezes, até mais. O objetivo do gênero era explorar o filão policial através de seu lado mais complicado: o psíquico”. [/one-half]

Se você está na década de 40 e quer rodar um autêntico noir, você deve: narrar um crime; ambientar seu enredo numa cidade grande e suja, cheia de becos escuros e inferninhos; utilizar uma atmosfera soturna e sombria, de preferência com uma fotografia sem cores e bastante contrastada; contar sua história sob a perspectiva do(s) bandido(s); retratar a polícia como uma organização com um potencial fora do comum para se corromper; mostrar gangues ou grupos de homens (bandidos ou mocinhos) cheios de amor e ódio para um com o outro; não ter medo de filmar violência; e, como cereja do bolo, ter uma femme fatale entre seus personagens, para causar o declínio do mocinho. Além, é claro, de usar e abusar da fotografia em P&B.

Em “O Falcão Maltês”, de 1941, exemplar máximo do cinema noir, o detetive particular Sam Spade acaba se envolvendo com a misteriosa e sedutora Brigid O’Shaughnessy (Mary Astor), que o contrata para um caso cujo pivô é uma valiosa estátua de falcão vinda da Ilha de Malta. Já em “Gilda” (1946), Rita Hayworth encarna a personagem-título, a femme fatale por excelência, uma cantora indomável que transforma a vida do malandro Johnny Farrell (Glenn Ford) em um inferno – e ainda faz um estonteante strip-tease tirando apenas uma das luvas... Hayworth ainda encarnaria, agora loira e não mais ruiva, outra inesquecível dama fatal dos filmes noir em “A Dama de Shangai” (1948), a maligna Elsa. Não dá para esquecer também da bela e provocante Cora Smith (Lana Turner) de “O Destino Bate à Sua Porta” (1946), que seduz o caminhoneiro Frank Chambers (John Garfield) para matar o próprio marido. Deu para sacar a fonte na qual Miller bebeu?

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Will Eisner, o mestre

Mas esta não foi a única, é bom que se diga. “Sin City” é, também, uma espécie de herdeira direta e mais obscura de uma certa série de quadrinhos chamada “The Spirit”, momento de maior notoriedade de ninguém menos do que Will Eisner, considerado o grande nome da Nona Arte em toda a história e mestre/inspiração rasgada de Miller. Além da linguagem cinematográfica e da iluminação que se vê claramente no trabalho de Eisner, Frank Miller também carregou consigo as fortes personagens femininas que viravam a cabeça do vigilante mascarado Denny Colt.

Na obra de Eisner não faltam nomes como P’Gell, que tenta seduzir o Spirit para que ele se junte a ela enquanto casa com uma coleção de homens ricos que, ao morrer, fazem com que sua herança dê subsídios para um império do crime em Instambul; e a espiã internacional Sand Saref, amiga de infância de Denny, que sabe que ele é o Spirit e, frequentemente, se coloca no lado oposto da lei que ele defende. Não dá para esquecert também de Silk Satin, a morena com uma mecha branca nos cabelos e que, de aventureira, se torna uma encrenqueira reconhecida em diversos países.[/one-half][one-half last=”true”]The Spirit[/one-half]

Basin City

Chegando em Basin City

Quando misturamos a inspiração dos filmes noir com Will Eisner e a propria mente do Frank Miller, chegamos n personagem principal de “Sin City”, que é justamente a cidade, a sombria e apavorante Basin City — cujo apelido de ‘Sin City’ (cidade do pecado, exatamente como no subtítulo em português do primeiro encadernado brasileiro e também do filme de Robert Rodriguez) se justifica graças aos tipos que povoam seus becos escuros e ruelas mal-ajambradas: bêbados, prostitutas armadas até os dentes, mafiosos, matadores de aluguel, policiais corruptos, gangues em polvorosa... Em “Sin City”, as mulheres são sensuais, provocantes e fatais – no sentido mais sangrento da palavra. Os marmanjos não sabem ao certo se ficam excitados ou com medo.

Lembremos, por exemplo, do arco de histórias “A Grande Matança”, que inclusive foi parte da adaptação das HQs para o cinema. A Cidade Velha, território comandado (e policiado) pelas prostitutas, é um lugar no qual a polícia não manda nada. E a máfia está bem longe, anulando a popular figura do cafetão. Mas o equilíbrio está prestes a ser quebrado quando Jackie Boy e seus comparsas entram no bairro em busca de diversão. Ameaçando uma das garotas com sua arma, ele e seus amiguinhos acabam sendo mortos pela letal e silenciosa Miho, uma oriental que sabe manejar uma espada como ninguém. Só que o esperto Dwight McCarthy, que vinha seguindo Jackie Boy desde a casa de sua nova namorada, a garçonete Shellie, acaba descobrindo que o defunto fresco era policial. E sua morte pode atrair os homens de azul para o território de Gail, dominatrix e uma espécie de líder das prostitutas e que está disposta a comprar a guerra com a corporação policial para evitar que a máfia faça tudo ser como já foi um dia… Uma guerra à base de chumbo e aço conduzida por mulheres com mais culhões do que muito marmanjo.

Sin City

Já que falamos sobre Dwight McCarthy, ele foi a vítima de uma femme fatale tipicamente noir em “A Dama Fatal”, história que se passa cronologicamente antes de “O Assassino Amarelo”, “A Grande Matança” e mesmo antes do primeiro Sin City. Fotógrafo vivendo à margem da sociedade (como todo bom habitante de “Sin City”, leia-se), Dwight estava numa fase absolutamente perdedor, pensando em como desperdiçou sua vida miseravelmente. Mas quando ele recebe uma ligação de Ava (que, no segundo Sin City para os cinemas, será vivida por Eva Green), a mulher que partiu seu coração quatro anos antes em troca de um ricaço qualquer, Dwight sabe que tudo tende a piorar. Manipuladora, usa sua sedução para conseguir tudo que quer – e, caso não consiga, tem a seu serviço um capanga gigantesco e extremamente fiel de nome Manute, que a considera a sua deusa absoluta. Ava é, digamos, uma versão mais contemporânea e ainda cruel da Gilda de Rita Hayworth. Até o visual é impressionantemente similar. Mas é claro que Miller fez isso propositalmente – assim como Eisner fez com P’Gell, por exemplo.

No primeiro arco de histórias de “Sin City”, estrelado pelo truculento Marv e batizado, em inglês, de “The Hard Goodbye”, toda a ação é conduzida graças ao tesão transformado em paixão pela personagem Goldie. A prostituta se entrega ao gigantesco e deformado personagem principal e acorda morta, ao seu lado, transformando-o em principal suspeito. Ele enfrenta a polícia e quem mais se mete em seu caminho até que, num passe de mágica, ela parece voltar do mundo dos mortos. Não é ela, mas sim Wendy, sua irmã gêmea e mais alucinada, sua grande parceira no controle da Cidade Velha. Marv já era uma máquina de matar sem controle, mas só conduz sua vingança sangrenta ao limite quando Wendy assume o papel da irmã e passa a apoiá-lo – e depois de deixar um rastro de cadáveres, já condenado, ela o presenteia ao permitir que ele a chame de “Goldie”. Isso sem falar na Nancy Callahan de “O Assassino Amarelo”, a doce menina salva pelo policial Hartigan e que, muitos anos depois, já uma mulher, o reencontra e se torna motivo ainda maior para que ele a defenda, ao tornar-se uma sedutora stripper/dançarina erótica. Um corpo cheio de curvas e um coração apaixonado, o mulherão que todo policial aposentado sessentão pediu a Deus (ou ao diabo) para encerrar os últimos anos de sua vida. Novamente, vemos uma mulher tornar-se o guia de toda uma trama e seu principal fio condutor, ainda que ela não seja a protagonista. No entanto, sem ela, não haveria história. Elas, sejamos honestos: sem ELAS não haveria história. Nunca haveria.

Nem em Sin City e nem em lugar nenhum.