Uma das maiores empresas de venda de ingressos do planeta anuncia investimento numa empresa focada em reconhecimento facial — e uma ONG focada na manutenção dos direitos civis no ambiente digital convoca artistas e parceiros a dizer NÃO
Você lembra de Minority Report? Pois é, tanto faz se você tem na cabeça o conto de Philip K. Dick ou o filme do Steven Spielberg. O ponto é que, muitos anos antes disso se tornar a realidade que é hoje, eles já estavam lá, discutindo os limites da tecnologia de vigilância. “Devemos impedir crimes antes que sejam cometidos?”, era a pergunta.
A tecnologia está aí, à disposição, essencialmente através do reconhecimento facial. Mas quem garante que ela é à prova de falhas? A resposta já vem: NINGUÉM. Basta um único inocente sendo considerado culpado — e ele já existe. E se a justiça, tanto lá quanto cá, já comete um sem número de barbaridades apenas guiada pela cor da pele de quem está sendo acusado, imagina o que pode acontecer quando estiver ancorada em bits e bytes para se justificar?
Como diz essa reportagem da Vice, “o fato dos algoritmos não reconhecerem traços negros e asiáticos não é acidente” e, agora em agosto, o grupo American Civil Liberties Union of Northern California, um dos primeiros grupos de defesa dos direitos civis dos EUA, fez um teste do Rekognition, o software do gênero lançado pela Amazon, e constatou que ele errou 1 entre 5 vezes ao rodar sua análise numa base de 25.000 retratos e apontar quem tinha antecedentes criminais e quem não tinha.
A busca por “erro” e “reconhecimento facial” no Google também retorna uma enoooorme quantidade de resultados.
Da mesma forma que acontece com Minority Report, além da probabilidade de erro existe também uma questão ética: o quão invasivo é usar uma tecnologia de reconhecimento facial à distância, sem que a pessoa saiba que está sendo estudada e tenha minimamente o direito de se defender como a lei exige? E o quão enviesada é a análise de quem faz as leituras dos resultados? Justamente pensando nisso é que começou a rolar uma movimentação contra a Ticketmaster, uma das maiores empresas de comercialização de ingressos do planeta, assim que ela anunciou, no ano passado, um investimento na Blink Identity, que trabalha com uma tecnologia similar.
“Vamos continuar investindo em novas tecnologias para diferenciar a Ticketmaster das outras empresas do setor”, afirmou a Live Nation, gigante do entretenimento ao vivo e dona da companhia de ingressos, numa declaração oficial enviada aos seus investidores como parte de sua obrigatória declaração de resultados anuais. “A tecnologia da Blink permite que você associe o seu ingresso digital com a sua imagem, e então simplesmente possa entrar no show”.
Ou seja, compra o ingresso, conecta com o seu rosto, aí vai pro local da apresentação do seu artista favorito, se posiciona na frente de uma câmera que lê seus traços de um banco de dados e, bingo, é só entrar — tipo o que acontece em alguns aeroportos, inclusive o Internacional de Guarulhos, em São Paulo. Legal, né? Pura comodidade e conforto. Mas será que você não parou pra pensar, assim, nem por um minuto, que esta é mais uma da imensa lista de informações pessoais que as grandes corporações colecionam a seu respeito?
Então. Mas a ONG Fight For The Future, com foco na luta e educação pelos direitos civis nos ambientes digitais, quer que você saque que pode ter muita coisa ainda por trás deste papo de reconhecimento facial sendo usado em shows ao vivo.
“A tecnologia de reconhecimento facial é especialmente perigosa”, afirmou Evan Greer, diretor da Fight For The Future, em entrevista pra Vice. “Não é algo que mantém artistas ou público seguros, mas só os submete a um monitoramento invasivo e racialmente enviesado que inevitavelmente vai levar fãs a serem ameaçados, falsamente acusados e presos, deportados ou ainda pior”.
Para mobilizar o público a respeito da importância de se discutir o assunto, eles então criaram a campanha Ban Facial Recognition at Live Shows, cuja ideia é se posicionar não só contra a utilização e cruzamento ilegal de seus dados sem que você saiba, mas também evitar que o cara que tava ali, numa boa, seja encontrado por uma câmera de segurança. Se a imagem dele der match, correto ou não, com algum deslize no passado que esteja em sua ficha criminal, lascou-se. E se a pessoa não for branca, aí a probabilidade de ser detida e ser metida em cana ou, talvez, algo ainda pior, é IMENSA.
Grupos tradicionalmente marginalizados, portanto, vão continuar se fodendo em primeiro lugar simplesmente porque, justamente por serem marginalizados, são absoluta minoria entre quem cria as tecnologias e, bem... Você já viu alguma pessoa branca tentando fazer algo de pessoas não-brancas e dando certo?
“Estamos chamando todos os artistas para que se posicionem em defesa dos direitos básicos e da segurança de seus fãs contra o uso deste Big Brother em shows ao vivo”, diz Greer. O chamado já está sendo atendido, a começar, claro, por ninguém menos do que o sempre politizado guitarrista Tom Morello, do Rage Against The Machine / Audioslave e atualmente na formação do Prophets of Rage.
Além dele, a cantora Amanda Palmer fez questão de deixar claro no seu Twitter que as pessoas deveriam se sentir seguras e respeitadas nos shows — e não submetidas a ameaças. Também foi o caso de nomes como o rapper e ativista B.Dolan, as bandas punk Anti-Flag e Downtown Boys, os eletrônicos do The Glitch Mob e do Thievery Corporation e até o festival musical Summer Meltdown.
Vale lembrar ainda que, no final do ano passado, a Rolling Stone publicou uma matéria na qual revelava que, numa apresentação da cantora Taylor Swift em Maio de 2018 no Rose Bowl, em Pasadena, essa tecnologia já havia sido usada sem que as pessoas soubessem. Num insuspeito quiosque no qual os fãs deliravam com vídeos raros de ensaios de Taylor, seus rostos eram fotografados ~secretamente. O objetivo? Ajudar a identificar alguns dos ameaçadores stalkers que a andavam perseguindo. Dá pra entender o motivo. Mas... E SE?
O JUDAO.com.br procurou as assessorias de imprensa de festivais de grande porte como o Lollapalooza e o Rock in Rio (que, aliás, tem justamente a Live Nation, dona da Ticketmaster, como sócia majoritária de suas atividades) para saber se existia algum tipo de plano similar em atividade, mas não obtivemos resposta. Caso ela venha em algum momento, nos comprometemos a atualizar esta matéria e informar a todos nas nossas redes sociais.
De qualquer maneira... Fiquemos espertos. :)
ATUALIZAÇÃO 24/09/2019
A assessoria do Rock in Rio procurou a gente depois da publicação e disse com todas as letras: “O Rock in Rio não fará uso de nenhuma tecnologia de reconhecimento facial”.