Netflix está perdendo inúmeros filmes, tanto no Brasil quanto nos EUA, mas está se voltando pra produção de conteúdo exclusivo. E, cara, esse é o caminho.
É fácil encontrar na internet comentários como “cadê o filme ‘X’ no Netflix?” ou “quando estreia tal temporada, Netflix?” ou ainda campanhas “assuma a série recém-cancelada”. Trata-se de um comportamento que se tornou comum a partir do momento que a maioria dos usuários passou a ver o serviço de streaming como a grande (e obrigatória) biblioteca universal de filmes, séries e shows.
Só que aí, nas últimas semanas, o desespero veio. Uma lista de filmes que serão retirados do catálogo brasileiro surgiu, causando um verdadeiro FRISSON nas internets. Depois, o soco no queixo: a notícia do fim do acordo entre o Netflix e a Epix, a join-venture responsável por negociar os direitos dos filmes de Paramount, Lionsgate e MGM. Blockbusters desses estúdios, incluindo títulos como Jogos Vorazes: Em Chamas e Além da Escuridão – Star Trek, estão deixando o serviço de streaming nos EUA agora em setembro.
Já tem gente pregando o fim do mundo. Não é. Primeiro porque os contratos no Brasil e nos EUA são diferentes — algo que a empresa está tentando mudar, diga-se. Segundo, porque tudo isso é o reflexo de uma nova fase do mundo criado pelo próprio advento do Netflix.
Como já falamos algumas vezes aqui no JUDÃO, a indústria do cinema vive um novo momento. A importância do “eu tenho” é cada vez menor. O que as pessoas querem é opção de escolha, assistindo ao que querem e como querem. Enquanto isso, as grandes produtoras e distribuidoras ainda se pegam no velho esquema de janelas, aquelas que ditam quando um filme é pra ser visto só nos cinemas, no Blu-ray, nos canais pagos premium e por aí vai.
O Netflix surgiu justamente de um sistema de aluguel de DVDs pelo correio (que ainda existe) e, já como serviço online, foi a responsável por colocar o último prego no caixão das locadoras — que, convenhamos, já exibia seu paletó de madeira por aí antes. Por isso, muita gente passou a supor que o video on demand é a locadora 2.0. Não é bem assim.
O video on demand é o canal 2.0.
Vamos dizer que, inicialmente, o Netflix tentou justificar essa coisa de “locadora”. A empresa passou a ser mais agressiva nos contratos de aquisição, fechando acordos como esse com a Epix e convenceu distribuidores avessos ao digital à participarem da brincadeira. Por outro lado, eles não fizeram loucuras. Não compactuaram com o sistema de janelas das grandes distribuidoras se fosse necessário pagar caminhões de dinheiro pra ter um longa-metragem logo depois de sair do cinema, sabendo que meses depois ele valeria bem menos. Tudo pela própria saúde financeira do serviço.
Só que o sucesso do Netflix atraiu outros concorrentes. Hulu, Amazon Instant Video e até o YouTube lançaram serviços de VOD por assinatura — depois das empresas de tecnologia, foram os próprios players habituais do entretenimento que começaram a perceber que tinham tudo na mão e que poderiam criar seus próprios “Go”, “Now”, “On” e “Play”, ainda que atrelados aos pacotes de TV paga, como HBO Go, Telecine On, Fox Play — concorrência que vai atrás dos mesmos conteúdos, inflacionando o mercado. A Epix é um exemplo. O acordo original entre eles e o Netflix aconteceu em 2010, e previa exclusividade. Só que, em 2012, um acordo entre a Epix e a Amazon tornou os mesmos filmes disponíveis no serviço da empresa de Jeff Bezos. Agora, com o fim do contrato assinado há cinco anos, a Epix passa a ter acordos simultâneos com a Amazon e, agora, com o Hulu.
Não se engane, a Epix queria renovar o acordo que tinha. Só que, de acordo com a Variety, a grande questão é que o Netflix quer agora conteúdos exclusivos, que não estejam disponíveis em nenhum outro serviço. É como uma Rede Globo, um SBT: os grandes filmes de uma emissora não podem ser vistos na outra. Simples assim. E se for muito caro pra ter a exclusividade (o acordo de 2010 com a Epix seria de US$ 200 milhões por ano), melhor usar essa grana pra bancar a produção de produtos próprios.
Aliás, é bom ressaltar que toda as aquisições de filmes e séries de terceiros não são pra sempre, tem data exata pra terminar. São contratos de um, dois, três, cinco anos... No final, há uma renegociação. O contrato pode ser ampliado, o filme retornar depois de algum tempo sob um novo acordo ou sair para nunca mais voltar. Tudo depende da boa vontade do distribuidor e, claro, do Netflix achar justo pagar o que estão pedindo — uma conta que eles fazem levando em consideração o quanto os assinantes estão vendo aquele conteúdo. E você deve imaginar que eles sabem exatamente quem e quantos somos. :)
Por tudo isso, o fim do acordo era previsto com bastante antecedência. No comunicado sobre o fim, feito por Ted Sarandos, Chief Content Office do Netflix, são informados os lançamentos de novos filmes originais, começando agora em outubro com Beasts of No Nation, enquanto em dezembro chegam A Very Murray Christmas (da Sofia Coppola e com o Bill Murray) e The Ridiculous Six (de Adam Sandler, que ainda tem um acordo para lançar outros três filmes pelo serviço).
Ok, como diz um dos comentários no post do próprio Sarandos, “’OH BOY, ADAM SANDLER!!!’, said no one never”. A questão é que, por mais que ninguém diga que goste, muita gente assiste a filmes assim. A ideia deles é fornecer o mais amplo leque de opções para o assinante, do ótimo ao ruim que muita gente gosta, tornando-os cada vez mais independentes da vontade do resto (e de acordos) do mercado. Os produtos de terceiros vão continuar lá, claro, mas com cada vez menos importância — e, provavelmente, exclusivos.
“Tem duas coisas que estão funcionando pra nós. Uma, estamos lançando novas séries que se tornaram grandes marcas por si só. Mas esses programas estão crescendo para as suas segundas, terceiras e quartas temporadas, então estão se tornando mais atrativos por conta própria”, disse Sarandos na entrevista coletiva após a divulgação do último balanço da empresa. “Essas séries estão se tornando ainda maiores, grandes marcas por si só, que vão se tornando eventos para atrair novos assinantes”.
Pra você ter uma ideia, o calendário oficial de estreias do serviço tem mais de 70 produções originais para 2015. A maior parte da lista é formada por séries e animações, mas os filmes já aparecem e a tendência é que a participação deles aumente a partir do próximo ano, tudo pra compensar essa necessidade criada a partir do fim do acordo com a Epix – e de outros acordos que vão acabar no futuro. “Estamos lançando conteúdos para diversos perfis demográficos e todos os gêneros”, também disse o executivo, que exemplificou: “Nós estamos fazendo programas que são comédias bem mainstream, enquanto fazemos comédias mais elevadas para outras pessoas”.
É bom dizer que essa estratégia não é única da empresa de Los Gatos, não. A Amazon tem, com menos intensidade, investido em conteúdo próprio, enquanto a Variety informa que a Apple está entrando na jogada, conversando com executivos de Hollywood para também ter produções originais próprias, exclusivas.
Pode ser que demore, mas o futuro da TV já está se desenhando. A tendência é que esses canais 2.0 ganhem cada vez mais força frente à TV linear, aquela tradicional.
É provável que, daqui alguns anos, você assine Netflix por causa das séries originais, o HBO Now por causa dos filmes e de Game of Thrones e o Hulu por conta dos longas-metragens da Epix, por exemplo – e ainda algum serviço de streaming esportivo. Tudo via internet.
Isso vai gerar alguns fenômenos interessantes. O primeiro é que, cada vez mais, o entretenimento e a tecnologia vão convergir, já que estas empresas vão ter que continuar investindo em sistemas inteligentes, robustos e fáceis pros usuários, sem deixar a peteca do conteúdo cair. Um cenário que o Netflix sai na frente pelos anos e anos de experiência nessa convergência, mas os concorrentes estão correndo atrás.
O segundo fenômeno e que vão acabar os intermediários, que são as operadoras de TV paga. Adeus NET, Sky, Claro TV – serão peças de museu ao lado da máquina de escrever. Você assina os canais que quer, como quer, e cancela facilmente. Sem decodificadores, cabos, antenas, nada disso. Basta apenas a conexão de banda larga (que, aliás, já eliminou a necessidade de um provedor de acesso, também).
É por isso que as operadoras no Brasil começaram a chiar – afinal, estão vendo surgir no horizonte algo que pode tornar parte do que elas oferecem algo obsoleto, além de congestionar bastante o outro serviço deles, que é a banda larga. De acordo com a última carta aos acionistas do Netflix, cerca de 36% do consumo de internet nos EUA é focado no serviço. Já é uma fatia maior até do que a usada pra ver os vídeos do YouTube.
Não à toa, as operadoras brasileiras passaram a acusar o Netflix de não pagar impostos, o que foi prontamente negado pela empresa uma nota oficial. Claro, o video on demand é novo e precisa de regulamentação, da mesma forma que a própria TV paga foi regulamentada no País. Só que é algo que precisa ser feito com cuidado e sem exageros dos poderosos da mídia brasileira, sob risco de vermos os dinossauros proibindo a chegada do meteoro que abriu caminho pro surgimento da raça humana na Terra.
E não, qualquer semelhança com ideias de proibição do WhatsApp e Uber não são mera coincidência.
Também é por isso que o Netflix, de acordo com alguns relatos, já fatura mais dinheiro no Brasil do que redes abertas como Band e Rede TV!. É simplesmente a mídia tradicional, linear, passando pelo mesmo processo que passou a Olivetti quando viu o surgimento do computador pessoal. Eles podem reclamar e continuar fabricando máquinas de escrever, esperando que daqui 10, 20 ou 30 anos as pessoas continuem comprando isso. Ou...
O fato é que tem muita coisa pra acontecer e se consolidar. Nesse admirável mundo novo, o Netflix não quer ser a locadora, nem a TNT. Quer ser a nova HBO, mas sem ter que fazer ninguém assinar caríssimos pacotes de TV.
Aceitem isso.