A frase do MARAVILHOSO personagem de Delroy Lindo resume bem mais uma obra monstruosa de Spike Lee, na qual o cineasta ensina que até as cicatrizes que a guerra deixa são diferentes dependendo da cor da sua pele
A gente sabe que aqueles que mais lucram com as guerras são os engravatados cheios da grana de sempre. Isso não é novidade. O ponto que quase ninguém lembra, quando se fala de conflitos armados, é que estes velhos senhores milionários são, da mesma forma que na indústria do entretenimento, do cigarro e das bebidas, um bando de milionários brancos.
E se eles já não ligam a mínima para os milhares de buchas de canhão que consomem e vendem seus produtos, o quanto você acredita que eles se importam com soldados negros? Menos ainda.
Destacamento Blood, o novo filme de Spike Lee, é sobre isso. A frase que dá título a este texto, dita por um dos personagens, resume bem a produção que o cineasta fez para a Netflix (e que ficaria ainda mais monumental numa tela grande, mas tudo bem, no contexto ATUAL a gente entende, então fica em casa e tá tudo certo).
O Vietnã foi palco de uma guerra que os EUA já começaram perdendo, mas que NO PAPEL era “pela liberdade de um povo oprimido pelos vietcongues”, contra o bicho papão comunista. Só que... nas ruas dos próprios EUA, caralho, que liberdade aqueles soldados negros tinham? Em sua própria terra natal? Onde eram (e ainda são) taxados automaticamente como criminosos apenas pela cor da pele?
Se ainda tem quem não enxergue a relação direta e reta que isso tem com movimentos como o Black Lives Matter, com os protestos antirracistas que tomaram COM RAZÃO as ruas de parte do mundo, sem sacanagem, tá precisando REALMENTE rever seus conceitos.
Aliás, vamos lá, este título em português, Destacamento Blood, não é lá muito ruim EM TEORIA — mas na prática digamos que também não vende em nada o real espírito do filme. Muito pelo contrário. Porque em nenhum momento eles se descrevem como tal ou mesmo usam esta palavra. Eles não se enxergam como uma unidade militar e sim como uma família, unida pelo sangue. O fato de serem cinco caras quase como que usando o mesmo sobrenome, tipo os Ramones, é significativo e sintomático para os rumos da história. São cinco negros perdidos no meio do Vietnã, diante de inimigos que querem exterminá-los, mas tendo que lutar ao lado dos mesmos brancos que os matariam em casa. Entre a cruz e a espada. Eles só podem confiar uns nos outros. Família, porra.
Décadas depois, a família se reúne novamente no mesmo Vietnã. O pequeno batalhão que sozinho dizimou centenas de soldados do outro lado do campo de batalha. Eles, que enfim foram para casa e tentaram tocar suas vidas, reconstruir suas histórias. Os cinco se reencontram naquele mesmo lugar que marcou suas vidas, para tentar honrar a memória de seu líder, o homem que não só os ajudou a sobreviver como também os ensinou a ter orgulho da cor da suas peles.
Mas eles também foram buscar um tesouro, deixado por esse mesmo líder. Reaver um carregamento de ouro que apenas eles sabem onde está. Que era direito deles. E foda-se quem acha o contrário.
Um dos grandes tesões em Da 5 Bloods (é, vamos usar o título original, não me @) é que os quatro sobreviventes estão longe de ser grandes exemplos de virtude. São soldados, marcados por uma guerra que não era deles, cheios de cicatrizes do passado. Não estamos diante daqueles heróis ILIBADOS de filmes tipo Rambo — que, aliás, vira motivo de piada ao longo da história. Estes senhores, que carregam o peso da idade, não são anjos e nem demônios. São gente como a gente, com defeitos, com ânsias, vontades, ambições e muitos defeitos. E doenças. Como bem fizeram outros grandes cineastas em películas sobre guerras, Lee não se deixa seduzir pela DICOTOMIA de “mocinhos” e “bandidos”.
Em se falando do gênero cinematográfico, aliás, o diretor não faz feio à categoria filmes de guerra. O visual é um desbunde. A fotografia de Newton Thomas Sigel é de cair o queixo, em especial nas cenas de flashback, quando somos apresentados ao que aconteceu DE VERDADE com os Bloods, no meio da guerra. Neste momentos, as sequências mudam de formato e foram todas rodadas em 16mm (exigência do diretor, que teve até que arrumar briga com o Netflix para que fosse do jeito que ele queria MESMO). Não por acaso, fãs de outros filmes do gênero vão encontrar pequenas referências, algumas até bem mais sutis do que aquela mesma Cavalgada das Valquírias de Apocalypse Now.
O visual do Vietnã, caraca, é ao mesmo tempo belo e brutal, uma natureza que encanta e assusta. Dá pra dizer até que a ambientação é quase como um personagem, o antagonista que mexe com a cabeça dos personagens e traz de volta as piores lembranças. Mesmo quando estão na cidade, tudo parece prestes a devorá-los a qualquer instante.
O ritmo de Da 5 Bloods não é, definitivamente, o de um filme de ação tradicional. Você vai conhecendo os personagens aos poucos, devagarinho, os elos entre eles vão se estabelecendo... Quando eles entram DE FATO na floresta, aí a tensão vai aumentando. Mas de um jeito que o espectador mal esperaria acontecer. A sensação de que vai dar uma merda a qualquer momento é gigantesca e constante, mas Lee vai adiando ao máximo, te deixando numa expectativa crescente. O rastro de pólvora tá aceso e vai queimando. Mas quando estoura... UAU.
Temos, então, Delroy Lindo. E sobre ele, gente, precisamos falar DEMAIS. Porque, a não ser que haja alguma mudança muito grande até Abril do ano que vem, é dele o Oscar de melhor ator e ninguém tasca. Enquanto o filme vai crescendo, construindo sua narrativa, o Paul vivido por ele chega até a ser detestável. Conservador, eleitor DAQUELE atual presidente dos EUA, boné vermelho MAGA... Fica aquele ranço toda vez que ele abre a boca. Mas conforme vai se revelando o efeito da guerra sobre ele, os transtornos pós-traumáticos que são mais latentes nele do que em seus camaradas, o sentimento por ele vai ficando agridoce. E quando o barril de pólvora estoura, o Paul, que já era protagonista, domina cada cena.
A cada olhar, cada movimento, cada gesto, Delroy Lindo parece um animal enfim fora da jaula na qual se manteve durante os últimos anos. Seus olhos saltam, ele grita, trinca os dentes, mostra uma violência que assusta. Você sente ódio dele. E no segundo seguinte, sente pena. E na sequência que vem logo depois, fica com medo. Para então, minutos depois, se pegar torcendo por ele. Um cara que consegue fazer isso com o espectador, numa boa, é simplesmente GENIAL.
Se fosse SÓ pela presença gigantesca e magnética de Delroy Lindo, Da 5 Bloods já valeria muito. Mas o filme tem ainda muito mais. Estamos falando de uma espécie de continuação espiritual direta de Infiltrado na Klan, por exemplo. E que, diferente do que parecem sugerir algumas críticas, conversa PRA CARALHO com o restante da carreira do diretor. Nada é acidental, nada está ali por acaso.
E o final... que final, senhoras e senhores. Spike Lee fazendo aquilo que ele sabe fazer de melhor.
Um filme absolutamente necessário. Em qualquer era da humanidade, já seria. Mas hoje, então, Da 5 Bloods é imperdível.