Além de adquirir os direitos de adaptação para os cinemas da cultuada HQ britânica independente, a PRODUTORA Margot Robbie já selecionou o diretor pro projeto e existem chances de que ela mesma viva a protagonista
Desde os primórdios até hoje em dia, Hollywood ainda faz o que George Melies fazia e adapta coisas. Eram livros, contos, peças de teatro e musicais, vieram as séries de TV, os brinquedos, os joguinhos e, nas últimas décadas, não sei se você conseguiu perceber e tal, mas foi a vez dos quadrinhos. Tá dando dinheiro? Coloca na linha de produção e segue o jogo, enquanto não tiver uma outra fonte de inspiração (Dead David deve estrear entre as threads de twitter).
Mas, se engana quem tá pensando que adaptação de “histórias em quadrinhos” se resumem a Marvel e DC, com a palavra “super-herói” estampada no meio da cara. É preciso lembrar que gibi não é apenas e tão somente sinônimo de justiceiros de collant colorido cruzando os céus — e que justamente a diversidade de narrativas que temos nos quadrinhos dos mais diferentes gêneros pode de alguma forma ajudar a dar um sabor diferente no quesito ORIGINALIDADE às próximas produções das telonas.
Justamente por isso, é de se celebrar a notícia de Margot Robbie, definitivamente a mais nova workaholic do mercado cinematográfico americano, adquiriu da MGM, via sua produtora LuckyChap Entertainment, os direitos para fazer uma nova versão cinematográfica de Tank Girl. A obra inglesa, criada pela dupla Jamie Hewlett e Alan Martin no final dos anos 1980 e totalmente inspirada na estética do punk rock, é uma deliciosa loucura caótica, anárquica, absurda, com pouco ou nenhum respeito por narrativas tradicionais, misturando diferentes recursos visuais.
Tamos falando de uma história ambientada numa Austrália distópica, estrelada por uma caçadora de recompensas bissexual mal-educada e violenta, tatuada e de cabeça raspada, que odeia seguir regras, que fuma, que tem uma vida sexual bastante ativa — e que enche a cara enquanto dirige o seu tanque de guerra ou distribui porrada por aí com seu indefectível taco de beisebol. Uma garota que virou símbolo de rebeldia e do estilo de vida “foda-se”, que se tornou ícone dos gibis feitos de maneira total e completamente na raça, dona de uma atitude que encorajou muitas lésbicas e mulheres bi a saírem do armário.
Ah, é, e ela também tinha um caso com um canguru mutante.
Se você leu esta descrição e não entendeu porque diabos este é um gibi que a gente REALMENTE anda precisando ver ser adaptado pros cinemas HOJE, olha, dá pra se dizer que você ainda não sacou qual é o mundo no qual tamos vivendo agora. Tá bom, é Hollywood, a gente sabe. Mas digamos que este é o tipo de diversão subversiva que anda nos fazendo falta numa realidade cada vez mais ~conservadora.
Embora não tenha falado com Hewlett ou Martin (“Não fomos contactados ainda por nenhuma das partes envolvidas com o projeto, incluindo a MGM, então não temos muita certeza se vai rolar alguma colaboração dos criadores originais”, afirmou Martin, em seu Twitter), no entanto, parece que a incansável Margot já começou a formar um time bastante interessante ao seu redor. Enquanto o roteiro deve ficar nas mãos de Mallory Westfall, que faz parte da equipe de roteiristas de Fear the Walking Dead e também escreveu alguns roteiros de Channel Zero (aquela mesma que o nosso Marcos Brolia chamou de “melhor série de terror da atualidade“), a direção, segundo informação do Collider, ficará nas mãos de Miles Joris-Peyrafitte.
O diretor e Margot, na real, já são conhecidos de longa data — sendo que ele a dirigiu no recente Dreamland, elogiado combo de drama e thriller com Garrett Hedlund no qual a atriz vive uma ladra de banco. Mas se já dá pra imaginar automaticamente Margot no papel da própria Tank Girl, isso ainda não é certeza. Segundo consta, ela quer primeiro ver uma versão do roteiro antes de se comprometer com o papel.
Fontes ouvidas pelo Collider afirmam que a sinopse básica, até o momento, mostra Tank Girl e sua amiga Jet Girl, ao lado de um grupo de rebeldes, numa luta para destruir um governo tirânico que tomou o controle do cada vez mais escasso suprimento de água local — o que lembra, a princípio, a história do primeiro filme inspirado na personagem, que se passa numa Austrália, distópica... A gente vai chegar lá.
Martin e Hewlett se conheceram na metade dos anos 1980, na cidade inglesa de Worthing, enquanto estudavam no West Sussex College of Art and Design. Na época, o primeiro fazia parte de uma banda, The University Smalls, ao lado de outro maluco por quadrinhos: Phillip Bond (desenhista da Vertigo e marido da ex-editora do selo, Shelley Bond). E uma de suas músicas se chamava Rocket Girl — inspirada numa garota por quem Bond tinha uma queda e que se parecia demais com uma personagem de Love and Rockets. Gibis e rock sempre foram a deles.
Depois do lançamento do filme da Supergirl, em 1984, o fato é que isso virou uma espécie de piada interna e eles passaram a adicionar o sufixo “girl” a qualquer coisa que desenhavam, ainda que fossem só pin-ups sem qualquer contexto. Na época, os três faziam juntos um fanzine chamado Atomtan, e foi quando Jamie desenhou uma garota já bem parecida com a Tank Girl, empunhando uma arma impossivelmente gigante. Pois quando eles visitaram o estúdio de um de seus amigos, que estava trabalhando no design de fones de ouvido customizados inspirados naqueles usados pelos motoristas de tanques da Segunda Guerra, Alan pegou uma das fotos de referência dos veículos e Jamie a aplicou como imagem de fundo da garota que tinha desenhado.
Bastou acrescentar um logo que dizia TANK GIRL para que a primeira versão da personagem nascesse, assim, despretensiosa como tinha que ser.
Inicialmente, o destino da jovem garota era ser apenas uma ilustração comum nas páginas do Atomtan, imitando uma propaganda. Isso, claro, até nascer uma revista chamada Deadline, publicada entre 1988 e 1995, uma maluquice desenvolvida por Brett Ewins e Steve Dillon — é, ele mesmo, o cara que criou Preacher com o Garth Ennis. A ideia da publicação era basicamente dar espaço para jovens autores contestadores, misturando tiras e artigos, todos com conteúdo bem mais adulto, político, sem filtros. Ali então a dupla encontrou a chance de fazer algo com a tal Garota Tanque que tinham gostado tanto.
“Tínhamos cerca de um mês para criar cada capítulo, então é claro que sempre deixamos tudo até termos apenas cinco dias antes do prazo final, fazendo a gente virar a noite”, conta Martin, numa entrevista para o site Sci-Fi Online, ao descrever como era o processo criativo de ambos. “Eu ia preenchendo os quadros de diálogos à medida que o Jamie ia finalizando os desenhos. Muitas vezes eu nem sabia como a história ia terminar até que o Jamie terminasse o último painel. Tinha um monte de erros de concordância, se alguém quiser saber”, brinca.
Mas mesmo trabalhando deste jeito maluco, totalmente punk rock, quatro acordes, a Tank Girl virou um sucesso. “Todos os nossos amigos gostavam e era isso que importava pra gente naquele momento. Se ninguém mais curtisse, tudo bem, não dávamos a mínima”, explica o autor. Pois é, mas digamos que as aventuras pós-apocalípticas dela foram bem além do círculo de amigos dos dois criadores — e, à medida que publicações como a Deadline se tornavam um espaço para que quadrinistas independentes mostrassem seu trabalho, também viravam porto seguro para quem queria ir além do que se via nas publicações americanas tradicionais. Rapidamente, a Tank Girl passou a representar não apenas o crescente empoderamento das mulheres no cenário punk, mas também uma espécie de resistência à chamada Cláusula 28 da legislação da primeira-ministra Margaret Thatcher.
“As autoridades locais não podem intencionalmente promover a homossexualidade ou publicar materiais com a intenção de promover a homossexualidade”, dizia o texto da lei, que ainda complementava dizendo que também era proibido “promover, em qualquer escola pública, o ensino da aceitabilidade da homossexualidade como um pretenso relacionamento familiar”. Dá pra sacar, portanto, o impacto que uma personagem como a Tank Girl teve neste contexto? “Os caras amavam ela, as minas amavam ela. Em Londres, existiam até encontros de lésbicas que eram batizados de Noites da Tank Girl“, contou Tom Astor, publisher da Deadline.
Conforme o interesse crescia, a Penguin, uma das maiores editoras do Reino Unido, comprou os direitos para lançar as tiras em formato livro. E foi aí que a Tank Girl se espalhou pelo mundo: enquanto nos EUA ela passou pela Dark Horse Comics, aqui no Brasil fez parte da antológica e histórica revista Animal, uma espécie de versão tupiniquim da antiga Heavy Metal. Mês passado, no entanto, a editora Alto Astral, via selo Astral Cultural, publicou no mercado nacional Tank Girl: Um, o primeiro volume de uma potencial reorganização cronológica de todas as histórias da anti-heroína, tudo em preto e branco.
Conhecida como Rebecca Buck, embora tenha nascido realmente sob o nome de Fonzie Rebecca Buckler, obviamente a jovem raramente é chamada de outra coisa diferente de Tank Girl. Também, pudera: tamos falando de alguém que não apenas anda pra todo lado a bordo de um tanque de guerra, mas também MORA dentro dele. Depois de atirar em um oficial altamente condecorado do governo ao confundi-lo com o próprio pai (!!!), acidentalmente ela se tornou uma caçadora de recompensas cheia de reputação. E depois de fracassar na entrega de bolsas de colostomia para o Presidente Hogan, líder de estado na Austrália, envergonhando o político num gigantesco evento internacional, ela se tornou TAMBÉM uma fora da lei procurada e com uma recompensa milionária por sua cabeça. No fim, por ela, tudo bem.
Pois é, então. Lá em 1995, a diretora Rachel Talalay, conhecida na época por produzir os filmes de um alucinado John Waters, topou o desafio de levar a personagem pros cinemas, num momento em que não existia nada nem perto de poder ser chamado de “febre” de adaptações de gibis. Era um mundo ainda sem as redes sociais de hoje em dia, então ela criou um e-mail TankGirl1@aol.com para receber o calor dos fãs a respeito do que deveria e, mais do que isso, do que NÃO deveria ser a produção.
O maior medo de seus leitores fiéis? Justamente a “hollywoodização” da personagem.
Na época, a própria cineasta afirmou que rolou um conflito de interesses com os engravatados da indústria. “Algumas vezes os caras parecem se sentir ameaçados pelo roteiro, geralmente os mais velhos”, afirmou ela, pra revista Wired. “Eles se perguntavam: por que os únicos mocinhos da história são cangurus mutantes? E eu dizia: não é legal?”. O relacionamento da Tank Girl com Booga, aliás, foi um dos principais problemas pra ela. “Estamos tentando manter isso: mas não significa que planejamos sexo hardcore com cangurus”, brincou a diretora.
No fim, o filme realmente saiu, com homens maquiados como cangurus, e não foi EXATAMENTE um sucesso de bilheteria. Com Lori Petty (a Lolly Whitehill de Orange is the New Black) no papel principal e uma iniciante Naomi Watts como a Jet Girl, a produção tinha ainda as participações especiais de nomes como Ice-T, Iggy Pop e o eterno laranja mecânica Malcolm McDowell. Bom, tamos falando de um filme de ação protagonizado por uma mulher e dirigido por outra, lá em 1995, o que não era exatamente a coisa mais comum do mundo (Embora hoje ainda não seja lá tão frequente). Isso é bem legal. Uma pena é que o resultado final não seja dos melhores.
“O filme é um capítulo meio amargo pra gente porque nós nunca gostamos realmente dele”, confessa Martin, em meio às gargalhadas. Segundo o autor, nenhum deles foi sequer envolvido até os 45 minutos do segundo tempo, quando a produção os procurou pedindo ajuda com artes conceituais para tornar o visual mais próximo das HQs. “Foi quando eles perceberam que não se parecia em nada com os gibis e aí Jamie e Philip fizeram alguns painéis. Até aquele momento, a gente só estava esperando que eles soubessem o que tavam fazendo. Eles fizeram muito barulho, então achamos que estavam no caminho certo, mas quando nos procuraram às pressas, aí sacamos que não era o caso”.
Ele conta que, pra ser honesto, tanto ele quanto Jamie toparam vender os direitos de adaptação porque, naquele ponto, a Tank Girl ainda era nada mais do que cult. A Deadline vendia lá coisa de 20.000 exemplares por mês na Inglaterra, o que lhes rendia muito pouco dinheiro proporcionalmente. Além disso, a personagem era pouquíssimo conhecida na América. Terem sido encontrados foi um milagre. Então, eles nem sequer tinham esperanças de ser convocados para escrever o roteiro, até porque não tinham qualquer experiência do gênero pra indústria audiovisual antes. A tarefa ficou a cargo de Tedi Sarafian (de O Exterminador do Futuro 3: A Rebelião das Máquinas).
“Vendemos os direitos achando que o pior que podia acontecer era que eles fizessem uma adaptação pra TV tipo os seriados do Hulk ou da Mulher-Maravilha. E a gente não ia se importar se fosse isso. Achamos que pudesse ser irônico, ter algum humor ali e todos gostariam de alguma forma”, relembra ele. Mas não foi o aconteceu. “Infelizmente, eles tentaram fazer com aquilo soasse LEGAL”, explica Martin, conectando imediatamente com os embates de Talalay e os homens brancos engravatados. “Quando vocês vai até Hollywood e vê um bando de homens de negócios discutindo o que é ou não LEGAL, você simplesmente pensa: não, cara. Tudo que você está fazendo aí tá errado. Este tipo de discussão arrancou o coração do filme e terminou não se parecendo com nada, na verdade”.
Bom, agora o mundo mudou. Temos uma Margot Robbie que aparentemente sabe BEM o que quer (basta ver o tom do filme das Aves de Rapina x o tom do filme do Esquadrão Suicida, pra entender exatamente do que estou falando). Dá pra ousar, experimentar, brincar mais com narrativa, com linguagem. E dá pra ter coragem e sim, entrar de cabeça em toda a violência e porralouquice do gibi original. Junte a isso o fato de que Hewlett agora tem uma SENHORA experiência audiovisual, já que ele é, ao lado de Damon Albarn, criador dos Gorillaz, e a mistura tem tudo pra funcionar.
Talvez até dê pra colocar um pouco de sexo de canguru no tempero. É só querer.