Dono de uma voz única, rouca e poderosa, o inglês Joe Coecker sucumbe a uma batalha contra o câncer aos 70 anos de idade
Um dos três maiores cantores de blues do mundo – ao lado de Aretha Franklin e Marvin Gaye. A honrosa descrição do britânico nascido na região de Sheffield John Robert Cocker, mais conhecido pelo apelido de Joe, foi feita por ninguém menos do que Ray Charles. Justamente a lenda do R&B que foi uma das principais inspirações de Joe Cocker em seu início de carreira, quando o filho de uma família humilde decidiu que a música seria o seu caminho.
A frase dá a verdadeira dimensão da perda que tivemos nesta segunda-feira, dia 22, quando Cocker, atualmente com 70 anos, perdeu uma batalha travada há um bom tempo contra um câncer de pulmão.
Tudo bem, eu sei que muito provavelmente você deve se lembrar dele principalmente pela visceral interpretação de With A Little Help From My Friends, canção originalmente gravada pelos Beatles e cantada por Ringo Starr, que se tornou a inesquecível música de abertura de Anos Incríveis (The Wonder Years). Ah, você não sabia que a música era originalmente dos Beatles? Tudo bem, a gente não te culpa por isso. Cocker colocou tanto coração e alma em sua interpretação que a faixa ganhou vida nova e se tornou mais sua do que do quarteto de Liverpool. Além de atingir o topo das paradas com ela em 1968, foi com With A Little Help From My Friends que fez uma incendiária performance no festival de Woodstock, um ano depois, até hoje considerada histórica.
Em 1970, o sucesso levaria Cocker à sua lendária turnê batizada de Mad Dogs and Englishmen Tour, que reuniu 34 músicos no total, percorrendo nada menos do que 48 cidades nos EUA, um verdadeiro marco que chegou até a virar filme. Mas foi exatamente nesta época em que começaram os excessos, garantindo-lhe uma reputação de abusos no uso de drogas e álcool. Seu comportamento no palco, sempre furioso, incendiário, um cachorro louco cujo corpo parecia tomado por espasmos elétricos e que dominava a plateia como poucos, se tornou errático e dado a situações como vômitos e desmaios. Na década de 1980, o cantor reencontrou o foco e se limpou. “Era isso ou eu ia acabar me matando”, declarou publicamente certa vez.
O vozeirão pulsante, rouco e rasgado ficou conhecido pela alma negra que injetava nas canções – em especial naquelas que não eram originalmente suas. Embora tenha começado sua trajetória como roqueiro, Cocker flertava imensamente com a música negra dos EUA. O blues, o soul, o R&B, uma pitadinha de jazz, todos estavam nitidamente presentes em seu DNA musical, em suas performances repletas de groove e improvisações.
Basta relembrar, por exemplo, seu dueto com a estrela country Jennifer Warnes na canção Up Where We Belong (trilha do filme A Força do Destino, de 1982, com Richard Gere e Debra Winger), agraciada tanto com um Grammy quanto com o Oscar de melhor canção original, em 1983.
Talvez não tenha ficado claro? Que tal então a arrepiante e tocante balada You Are So Beautiful, do cantor e compositor Billy Preston, conhecido pelo lado mais funk – que Cocker não apenas absorveu, mas reinterpretou?
Sua versão para Unchain My Heart, do eterno mestre e referência Ray Charles, é do tipo que deixaria The Genius orgulhoso.
Para completar, não custa relembrar a sensualidade de You Can Leave Your Hat On, composta para ele por Randy Newman e que se tornou, claro, a canção definitiva de strip-tease – ao lado da igualmente provocante Sexual Healing, de Marvin Gaye (Falamos dele lá em cima, né? Não foi à toa...).
Cocker gravou exatos 23 discos de estúdio – e o último deles, Fire It Up, foi lançado em 2012, já mostrando um tanto de sua vulnerabilidade, por conta da idade avançada, na voz outrora potente e imbatível. Atualmente, o músico vivia no Colorado, em território norte-americano. “Talvez um dos maiores cantores de soul que a Inglaterra já produziu”, afirma a Bíblia musical All Music Guide. É uma boa definição, afinal. Porque, além da soul music, a coisa que a música de Cocker mais tinha era alma.
E isso, rapaz, é coisa que faz uma falta tremenda num cenário musical de vozes limpinhas e bonitinhas, todas produzidinhas em estúdio, dominando e encantando os jurados de reality shows mas sem uma pimenta das boas que um cara como Cocker tinha.
Por um mundo de vozes mais graves, roucas, rasgadas e loucas como a de Cocker.