O mercenário Anrath, saído dos contos do gaúcho Cesar Alcázar, é uma mistura de celta e viking que acaba de se tornar história em quadrinhos
É muito comum a gente ver um grande interesse do público consumidor de cultura pop nas mitologias celta e viking – do Thor ao Slaine, passando pelo mito do Rei Arthur, pelo Beowulf, pelo Anel de Nibelungo e por uma porrada de bandas de heavy metal, que simplesmente amam as duas temáticas (não à toa, existem subgêneros batizados de “celtic metal” e “viking metal”). Exemplos é o que não faltam.
“São duas culturas ricas e fascinantes, e a trajetória desses povos é recheada de batalhas, invasões e aventuras. Isso ofereceu um material faro para os contadores de histórias, seja na literatura, no cinema ou nos quadrinhos”, explica o gaúcho Cesar Alcázar, que na HQ O Coração do Cão Negro (AVEC Editora) faz um combo das duas culturas em uma única história.
O Coração do Cão Negro é, como descreve o autor que também é tradutor e editor na Argonautas Editora, uma aventura de “Espada e Feitiçaria”. Ela se passa na Irlanda medieval, durante a Era Viking. O protagonista, um mercenário chamado Anrath, o Cão Negro de Clontarf, nasceu irlandês (gaélico), mas foi criado entre os nórdicos. Para o azar dele, os dois povos o consideram um traidor. “É uma história de ação, magia, tragédia e violência”.
Após romper com o bando com o qual vagava, Anrath percorre a Irlanda como mercenário, sempre perseguido pelo passado. Isso até ser contratado por um misterioso inglês para encontrar o medalhão chamado de Coração de Tadg. A jornada o levará direto para as mãos de Ild Vuur, o Viking, e o fará confrontar “horrores além do espaço e do tempo”.
A ideia de criar o Cão Negro de Clontarf surgiu no ano de 2009, quando Cesar leu o Ciclo Celta de Robert E. Howard (The Grey God Passes e The Dark Man, entre outras histórias) – escritor conhecido por ser o criador de ninguém menos do que Conan, o Bárbaro. “Na mesma época, li o conto O Espelho e a Máscara, de Jorge Luis Borges. Fiquei fascinado pela história da Batalha de Clontarf, narrada por esses autores tão diferentes um do outro. Assim, decidi inventar meu próprio mercenário medieval irlandês”, explica.
A Batalha de Clontarf foi um dos episódios mais sangrentos da história da Irlanda, ocorrido no dia 23 de abril de 1014, uma Sexta-Feira Santa. Máel Mórda, rei do reino de Leinster, era um dos últimos opositores de Brian Boru, rei de Munster e que tinha conseguido unificar a maior parte dos reinos irlandeses sob seu comando. Máel então aproveitou as tentativas vikings de invasão, se uniu aos nórdicos e partiu pra cima de Brian e suas tropas. Depois de milhares de mortes, a Irlanda venceu os invasores, mas Brian Boru foi decapitado em combate, deixando o país sendo controlado por um sucessor que nunca mais conseguir unir os reinos outra vez...
A primeira história do Cão Negro a ser publicada, ainda em formato conto, foi Lágrimas do Anjo da Morte, presente na antologia Sagas Vol. 1 – Espada e Magia (Argonautas), de 2010. Depois vieram mais contos nos livros Bazar Pulp (Argonautas), Mundos Distantes (9Bravos) e Mundo de Fantas (Estronho). Por fim, foi lançada a novela A Fúria do Cão Negro (Arte & Letra). Dois contos do Anrath ainda saíram em inglês, nas revistas Heroic Fantasy Quarterly e Swords and Sorcery Magazine.
Narrativamente, ele diz que a sua principal referência para a história de Anrath foi mesmo Howard (embora não os contos do Conan, e sim de personagens como Bran Mak Morn e Turlogh Dubh O’Brien). “Outro autor que aprecio muito é Karl Edward Wagner (Kane, the Mystic Swordsman). Alguns filmes de Akira Kurosawa também ajudaram na composição do personagem”, explica. “Para os quadrinhos, tive em mente obras como Slaine, criação de Pat Mills (e que me introduziu à mitologia irlandesa), e Thorgal, de Van Hamme e Rosiński”.
Cesar revela que sempre gostou de quadrinhos – e, desde que começou a escrever ficção, teve vontade de adaptar alguma de suas obras, os contos do Cão Negro em especial. “Meu primeiro trabalho no formato foi uma HQ de Horror chamada A Música do Quarto ao Lado, que teve arte de Eduardo Monteiro e foi lançada pela Editora Estronho em abril de 2014”. Então, no final daquele mesmo ano, ele iniciou os trabalhos para O Coração do Cão Negro, que é uma adaptação do conto original (que está no livro Bazar Pulp). Foi aí que o desenhista, Fred Rubim, começou os primeiros esboços. Os dois já se conheciam de outros projetos, quando o artista desenhou a capa de um livro da Argonautas.
“Adaptei o texto original, transformando-o em roteiro de HQ, mas dei toda liberdade ao Fred para criar e mudar o que achasse necessário. Afinal, o Fred é um artista gráfico, ele sabe melhor do que eu o que fica bem na página final”, revela o escritor, sobre o processo de criação entre eles. A maior dificuldade, segundo ele, foi transformar a obra original literária em uma narrativa visual que não tivesse uma narração em 3ª pessoa. “Eu queria que as imagens exprimissem sensações, pensamentos e lembranças. Em outras palavras, queria um modo de apresentar o que se passa na cabeça dos personagens sem precisar de balões de pensamento ou recordatórios”.
Quando Cesar começou a escrever os contos do Cão Negro, há cerca de seis anos, duas músicas do Uriah Heep o inspiraram bastante: Lady in Black e Rainbow Demon. Mas não demorou até que O Coração do Cão Negro ganhasse sua música-tema, uma canção inspirada em Anrath, composta pela grupo musical Bando Celta, de Porto Alegre. “Eu tive uma participação na criação da letra e o vídeo foi realizado com as artes da HQ”, diz ele.
Pela temática, é impossível não questionar se existe chance de que a HQ se desdobre de alguma forma. Cesar confirma. “Algumas pessoas já se ofereceram para criar aventuras de RPG. E uma adaptação audiovisual é um sonho antigo, tanto como animação quanto como Live Action. Vamos ver o que o futuro traz”, afirma, esperançoso.