Em entrevista exclusiva, Hique Gomez, conhecido pelo trabalho com o Tangos e Tragédias, retoma o personagem Kraunus Sang e fala sobre o espetáculo A Sbørnia KøntraAtacka, que chega neste final de semana a SP
A Sbørnia era um país com jeitão de Europa Oriental, ligado ao continente por um ISTMO (porção de terra estreita cercada por água em dois lados e que conecta duas grandes extensões de terra). Mas, graças a um monte de mal-sucedidas explosões nucleares, a Sbørnia se soltou e tornou-se uma ilha à deriva, que vive navegando pelos mares do mundo. Com um sistema de governo batizado de anarquismo hiperbólico, a nação é conhecida por abrigar a Grande Lixeira Cultural (Recykla Gran Rechebuchin), responsável por reciclar o lixo cultural de outras nações.
A Sbørnia, claro, é um país fictício. Que tem um bocado de similaridades com países de muitos continentes, mas se tornou famosa graças ao trabalho brilhante de seus dois filhos mais ilustres: Kraunus Sang e Maestro Plestkaya integrantes (e personagens) do projeto Tangos e Tragédias. Fugitivos de seu país para escapar da chegada do rock n’ roll, eles espalhavam a palavra sbørniana com música e altas doses de humor em espetáculos teatrais que, desde 1984, partiam do Rio Grande do Sul para o mundo.
Depois de três décadas de serviços prestados, Plestkaya resolveu retornar para a amada Sbørnia. Foi justamente quando seu intérprete, Nico Nicolaiewsky, nos deixou em 2014, vítima de leucemia. Seu parceiro, Hique Gomez, deixou o Kraunus um pouco de lado e saiu por aí com seu espetáculo solo, o Tãn Tãngo, no qual une o tradicional ritmo argentino à boa e velha música brasileira. Só que o chamado da Sbørnia ecoaria mais uma vez. Neste final de semana, dias 6 e 7 de Agosto, ele traz para a cidade de São Paulo A Sbørnia KøntraAtacka, que vai rolar no Auditório Ibirapuera. Ainda com aqueles característicos olhos esbugalhados e os cabelos desgrenhados, Kraunus agora será acompanhado da Grande Orquestra da Sbørnia.
“É a Saga Sbørniana que continua”, diz Hique, em entrevista exclusiva ao JUDÃO. “Somos uma banda roots de folclore sbørnianø, de Polkas Ciganas, dixieland e jazz tradicional, com algumas surpresas que equilibram o repertório”.
De acordo com ele, o espirito do chamado Teatro Hiperbólico, a corrente artística sbørniana, está mantido no espetáculo. “Tivemos o cuidado de preservar alguns pilares do Tangos e Tragédias e uma estrutura muito similar”. Sua grande parceira nesta nova empreitada é Simone Rasslan, pianista e maestrina que dividia os palcos com a amiga Adriana Marques no igualmente divertido Rádio Esmeralda, show que retratava um dia dentro da programação de uma rádio AM. Infelizmente, Simone também perdeu Adriana. A tristeza, no entanto, não se vê refletida nesta nova orquestra – que, aliás, traz justamente duas canções do repertório de Rádio Esmeralda como homenagem. “É o Brasil disfarçado de Sbørnia”, brinca Hique.
Foto: Nilton Santolin
Além de clássicos como Aquarela da Sbørnia e Eu Quero Voltar pra Sbørnia, que ele e Nico tocaram juntos apenas duas vezes nos últimos shows que fizeram, o universo da pátria flutuante de Kraunus é ampliado com o Hino do MachadoBoll, o esporte oficial do país, composto junto com o Professor Kanflutz, responsável pela Universidade de Ciências Fictícias da Sbørnia (e interpretado por Cláudio Levitan, que também participa da apresentação). “Também cantamos a sua From the Other Side, falando sobre os invasores da Sbørnia, enquanto mostramos na tela as manifestações de rua na Sbørnia”. E pra completar, aproveitando o clima, que tal uma nova canção chamada Coxinha e Petralha? “É muito romântica”, revela o autor.
Mas apesar de ser o retorno de Kraunus, a volta da Sbørnia e do Copérnico, aquela dança em que você não pode bater com as mãos e não pode mexer com os pés, o artista diz que não tem qualquer intenção de repetir a dinâmica que tinha com Nico. “Tudo entre nós foi baseado na espontaneidade. Ou seja, pode e deve ser diferente com outros artistas, menos na espontaneidade, é um valor que o público percebe desde o primeiro momento em que se pisa no palco”. Hique se rende em elogios ao Maestro Plestkaya. “Ele foi um dos artistas mais incríveis que conheci. Sabia mesclar naturalmente uma expressão muito popular com um toque muito refinado. Coisa de quem estudou música e tinha conhecimento de causa e um talento único para comunicação. Uma presença de espirito absoluta e uma espontaneidade ímpar. Foram muitas lições de vida e de arte”.
Hique diz que não sabe por quanto tempo A Sbørnia KøntraAtacka vai durar, se será uma turnê de celebração curta ou uma atividade de longa duração, que vai rodar o Brasil. Mas ele faz questão de lembrar que este tipo de decisão também nunca fez parte da realidade do Tangos e Tragédias, desde as primeiras apresentações lá no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. “Nunca soubemos de um ano para o outro se continuaríamos ou não. Em 30 anos nunca fizemos planejamentos de longo prazo. Tenho a impressão que um trabalho que tem alma própria se rege por si. Existe uma sincronia entre demanda do mercado de shows, o reconhecimento do público e a vontade dos artistas em continuarem a fazer enquanto estão curtindo o que fazem”.
O próprio músico, no entanto, enxerga a força do universo sbørniano, da mitologia que ele e Nico criaram, e seu potencial para fora dos palcos. Uma das primeiras iniciativas neste sentido foi o longa-metragem de animação Até que a Sbørnia nos Separe (2014), de Otto Guerra, premiado como “melhor filme” pelo júri popular no 42º Festival de Cinema de Gramado e cujos trechos serão inclusive exibidos ao longo do show deste final de semana. “Quando um parceiro de outra área se aproxima do universo criativo que estabelecemos como foi com o Otto Guerra, a interação se dá automaticamente”, afirma Hique. Mas ele acha que o universo sbørniano é imenso, muito consistente e de fácil adesão. “Um filme é o que mais me atrai. Uma série também. Temos muito conteúdo”. Talvez apostar nas plataformas digitais, para tentar atingir uma nova fatia de público? “Nunca será mirando numa fatia de publico. Será mirando numa obra de arte comunicativa”. Falou, tá falado.
Pra finalizar, não dá pra deixar de perguntar sobre um certo presidente interino, cuja pose de vampiro lembra muito o visual tipicamente sbørniano. A comparação incomoda? Hique diz que não. “Na Sbørnia, o governo é sempre provisório. Mal o interino assume e já surgem as apostas sobre quanto tempo vai durar. O povo da Sbørnia aguarda ansioso o dia da chegada do presidente interino na Recykla Gran Rechebuchyn, a grande lixeira cultural. Está prevista a chegada, junto com ele, do Wesley Safadão. Vai ter um Unplugged Safadão”.