O teste de fogo de Rogue One | JUDAO.com.br

O especialista, o profissional e o fã dividem a cena na análise sobre o novo filme da saga espacial que, em resumo, deixa claro que A Força tem um futuro LINDO pela frente

Analisar Rogue One: Uma História de Star Wars não é tarefa simples. “Gostar” ou “não gostar” é pouco. Seria mais fácil tentar puxar as orelhas de um gundark do que separar o profissional do pessoal, o fanboy do avaliador, o choro das torcidas de nariz.

O esforço é válido quando o primeiro longa-metragem não integrante de uma trilogia para o cinema (só para evitar que alguém venha falar que esqueci do Especial de Natal) do universo criado por George Lucas joga um caminhão-tanque de gasolina na já energizada – e ensandecida – base de fãs da Santa Trilogia.

Separar é preciso. Olhar todos os aspectos é uma obrigação. E curtir o momento é um privilégio. Então, vamos nessa e que a Força dos Outros Esteja Sempre Conosco!

PARTE I: A Força dos Outros

[O especialista devoto da Saga há anos toma o púlpito, arruma o cabelo bagunçado – que continua bagunçado mesmo assim – limpa a garganta, dá um sorriso largo e começa a falar]

Em meados de 1977, quando os letreiros iniciais do filme então conhecido como Guerra nas Estrelas despareceram no infinito e abriram espaço para a fuga desesperada da Tantive IV, o universo nerd foi jogado sem aviso no meio de um conflito galáctico, numa guerra civil, na luta do oprimido contra o opressor. Ao mesmo tempo, dezenas de perguntas ficaram sem respostas nas telas e, embora o Universo Expandido tenha feito o possível para preencher as lacunas, a abrangência das respostas ainda era muito pequena por estar confinada a HQs, jogos de videogame/computador, e livros... MUITOS livros.

Com a aposentadoria do UE e o reinício de tudo que acontece fora das telas, as equipes envolvidas com os próximos longas-metragens do universo da Santa Trilogia começam a responder a muitas dessas perguntas. Afinal, se está na tela, é oficial – mesmo que conflitos narrativos ainda existam.

Rogue One: Uma História Star Wars

O início de Rogue One aposta naquela declaração de valores – e premissas – claras dentro do universo da saga. Império, resistência, opressão, fé, luta, sacrifício, rebelião. E trata-se da essência rebelde, não do movimento em si. Rebela-se quem tem muito a perder e, ao mesmo tempo, está disposto a perder tudo na luta. Como entramos na história num ponto acelerado, perdiam-se as razões e os sacrifícios que culminam com a destruição da primeira Estrela da Morte. A Trilogia Infame tentou criar essa sensação, mas o foco nos Jedi, nos poderosos e no militarismo ofuscaram e alienaram as pessoas normais envolvidas na luta. E é aí que Rogue One entra, pois o espectador é logo inserido num mundo vivo, duro e no qual ninguém está a salvo, especialmente quando seu destino não está diretamente ligado à família Skywalker.

Esse conceito é reforçado quando visitamos Jedha (Jedha, Jedi, sacou?), a locação mais relevante dentre as apresentadas nesse novo capítulo. Por estarmos no momento do auge do Império e pós-expurgo dos Jedi, o planeta de origem da ordem era um dos últimos resquícios do que eles representaram, assim como aqueles que neles acreditavam. O cenário é perfeito para corrigir um dos erros mais imperdoáveis de George Lucas, a desmistificação da Força. Enquanto em O Despertar da Força os Jedi são um mito, em Rogue One eles são sinônimo de fé, do desejo de fazer parte de algo maior, algo que está por todos os lados sem precisar manejar um sabre de luz, mover coisas com a mente ou influenciar soldados cabeça oca. Por esse aspecto, a dobradinha oriental Donnie Yen e Wen Jiang, respectivamente Chirrut Imwe (o fiel) e Baze Malbus (o cético), é essencial para toda a história, pois conversa com o ponto de vista de Han Solo em Uma Nova Esperança, justifica a magia de Yoda em O Império Contra-Ataca e, lá na frente, valoriza demais a descoberta de Rey, em O Despertar da Força.

O cenário é perfeito para corrigir um dos erros mais imperdoáveis de George Lucas, a desmistificação da Força

Qual a importância disso tudo? Bem, a esperança é um dos maiores pilares da fé (seja em deuses ou pessoas). E esse é o verdadeiro significado do título do primeiro filme da Saga. Uma Nova Esperança. Por anos, Luke Skywalker carregou sozinho a responsabilidade do título, pois ele era a única esperança de paz, sempre diminuindo todos os personagens secundários. Agora não mais. Agora, o espírito da rebelião manifesto nos personagens de Rogue One dá um chega para lá no fazendeiro de Tatooine e deixa claro: “Estamos aqui! Você é bom, mas nunca vai ganhar sem a gente!”.

Rogue One: Uma História Star Wars

Mas a conexão não para por aí, pois, embora seja considerado um filme anterior ao Episódio IV, na prática e narrativamente, Rogue One não é um filme solo. Embora existam momentos de ousadia dignos de muito respeito no roteiro de Rogue One, o mais notável é a escolha do momento no qual a história termina: minutos antes do início de Uma Nova Esperança. Ou seja, Rogue One faz parte de Uma Nova Esperança e, agora, Uma Nova Esperança faz parte de Rogue One. A Santa Trilogia acabou de sofrer transformações fundamentais e as repercussões são imensas. Mais um ponto positivo para a miscelânea de gêneros de Gareth Edwards.

Sim, miscelânea. Rogue One não é só ficção científica, não é ação, não é só aventura. Ele também é drama, comédia e guerra. Com isso, ele vai além dos demais filmes da Saga, ao forçar mais a mão, especialmente no drama. O arco narrativo da família Erso (a pronúncia parece “Ârso”) é trágico, Jyn (Felicity Jones) carrega o resultado disso nas costas ao longo do filme todo e veste bem o papel de anti-heroína, convertida em força transformadora. Embora as comparações entre ela e Rey devam pipocar por aí, elas têm mais diferenças que similaridades e a maior delas é essencial: Rey vive esperando pelo retorno da família; Jyn não tem para quem, nem onde, voltar; ela quer que o mundo se dane. Essa característica é suficiente para ela se destacar entre a dinastia – e agora dá para usar bem esse título! – de mulheres de Star Wars. Aliás, Rogue One é o filme com maior quantidade de personagens femininas por frame cúbico da História da Saga; ele bate todos os outros filmes, JUNTOS.

De fato, a Força dos Outros estava com o diretor Gareth Edwards e Rogue One conseguiu reunir muita relevância e mérito para fazer parte da Saga de Star Wars sem dever nada a ninguém. Mas mexer com o passado envolve riscos, nem todas as apostas dão resultado e consequências são inevitáveis.

[O especialista percebe que o analista, roteirista e cinéfilo está olhando de cara feia, então, para evitar o cuecão, ele pega as anotações, limpa o púlpito e sai de fininho]

Rogue One: Uma História Star Wars

PARTE II: O Lado Negro

[Ansioso, o profissional ajeita os óculos recém-adquiridos, estica a camiseta de Star Wars para todo mundo ver a estampa cheia de referências, olha para a plateia e pensa “Agora vai”]

Em resumo, Rogue One é um filme de, e sobre, guerra. Bom, é Guerra nas Estrelas, não é? Guerra está implícito? Não necessariamente. Na maioria dos filmes, os conflitos militares servem como pano de fundo tanto para a narrativa sobre autodescoberta e amadurecimento quanto para os ápices em grande escala (vide todas as batalhas de abertura/encerramento dos demais filmes). Agora, porém, a guerra é parte da realidade da vida daqueles personagens.

Os habitantes do mundo de Rogue One, capitaneados por Cassian Andor (Diego Luna), não têm o luxo do idealismo. É ação ou morte, submissão ou escravidão. Vencer ou morrer. Para mostrar isso, Edwards, novamente, visitou as memórias de George Lucas e vemos diversas referências a soldados e agentes em operação da Segunda Guerra Mundial, e um pouco do Vietnã, assim como as diversas revoluções que moldaram o mundo no século XX. Isso ajudou a elevar o drama, dar veracidade e fazer pensar “humm, poderia ter acontecido”. As batalhas soaram muito mais reais e, de quebra, o filme culmina com a melhor cena de combate da Saga até agora. O desfecho da batalha é um show à parte, com direito a um visitante inesperado e destruição para todos os lados.

O filme culmina com a melhor cena de combate da Saga até agora. O desfecho da batalha é um show à parte, com direito a um visitante inesperado e destruição para todos os lados

O ritmo é um dos maiores méritos do diretor, que fez as vezes de um jovem George Lucas com mais pressa e menos história para contar. Há muito movimento em Rogue One, as mudanças de cenário são numerosas e, mesmo nos diálogos mais longos, ele optou por boa movimentação de câmera, variedade de tomadas (apoiadas por um departamento de arte competente e que seguiu a “Escola JJ Abrams” de efeitos práticos) e uma trilha intrometida, presente e cravada de Michael Giacchino (inspirado pelos temas de John Williams, devidamente creditado, aliás). Sem grandes invenções em ângulos ou tomadas impossíveis, ele deixou a história se desenrolar como deveria.

Não é fácil fazer isso e Gareth sabe.

A atuação, infelizmente, é o ponto fraco. Diego Luna demora para embalar, Felicity Jones nunca muda muito de tom (a dobradinha Ridley + Boyega funciona muito melhor) e o poderoso e querido Forest Whitaker desmorona por trás de uma fachada desinteressante, uma voz esquisita e decisões questionáveis, que incluem a tortura de um personagem sem muita necessidade. Ok, torturar é o modo de demonstrar o radicalismo dele; entretanto, a cena não é tão nojenta ou impactante quanto deveria (ou poderia) ser. Quando o roteiro dá o suficiente para começarmos a entender/gostar/odiar/avaliar o personagem, a narrativa muda de foco.

Mads Mikkelsen não decepciona dentro do estilo estoico dele. Coube a Alan Tudyk ganhar as melhores piadas, algumas das melhores cenas e a chance de colocar mais um robô no panteão autômato de Star Wars: K-2SO é irreparável. É como se o homem de lata de Oz tivesse ganhado um coração de irmão, a alma de um comediante e a fúria (junto da pistola) de um guerreiro destemido.

Rogue One: Uma História Star Wars

Tecnicamente, Rogue One está longe de qualquer perfeição; o roteiro perdeu a chance de explorar várias elementos criados por Chris Weitz e Tony Gilroy, a conexão com Uma Nova Esperança não foi tão acertada quanto se esperava e alguns erros de lógica surgiram (por exemplo, um determinado diálogo envolvendo Darth Vader só é aceitável com muita força de vontade), assim como aconteceu com Episódio I. Mexer com o passado é perigoso, ainda mais quando o “passado” está apenas há alguns dias de distância.

A crítica mais fácil a Rogue One é o excesso de fan service. A quantidade é absurda, independente de muitas delas serem justificadas (como os líderes de esquadrão rebeldes de Uma Nova Esperança, por exemplo). É divertido ver uma jarra de leite azul, um capacete conhecido aqui, um veículo acolá e tal, mas até que ponto isso ajuda, pode ser considerado desnecessário ou não fazer a menor diferença para quem não conhece? Infelizmente, não consigo avaliar. Entretanto, também não consigo calar o sentimento de que o filme passou boa parte dos dois primeiros atos querendo me conquistar pelo saudosismo. Queria que ele me convencesse por conta própria, sem apelar tanto.

Porém, Rogue One é o filme mais impactante da Saga, pois ele provoca mais uma transformação de cair o queixo. Durante a composição da Santa Trilogia, sempre vimos o Império como uma alusão ao Eixo, ao totalitarismo, a governos radicais e opressores; logo, a Rebelião lutava pela liberdade, pela causa nobre, pelo que é certo, pelo Lado da Luz em confronto direto com o Lado Negro. Socialmente falando, nos Estados Unidos, Luke era o garoto idealista disposto a tudo para livrar a galáxia do Mal. Era o bom moço e, por tabela, os rebeldes eram os norte-americanos lutando contra a tirania (nazista na Segunda Guerra). Ok, disso todo mundo sabe.

Agora TUDO pode ser visto de outra forma. O mesmo Império que aniquilou os Jedi, matou criancinhas, chacinou alienígenas por preconceito e é comandado por um líder que manipulou o sistema político para assumir o poder em causa própria, a partir de Rogue One, também cometeu atrocidades pré-Alderaan. O Império, aquela entidade maligna e detestável, instaura o medo de tal forma que o outro lado pondera a rendição incondicional. Qual foi a única nação no mundo real que JÁ fez isso?

Rogue One é o filme mais impactante da Saga

Nada de Alemanha Nazista ou Japão Imperial; em Rogue One, a representação do Império são os EUA. E tudo isso num momento de extrema crítica política, de divisão sócio-política intensa e da ascensão de uma figura pouco elogiosa. Se pensarmos por esse lado, a partir de Rogue One, a Rebelião luta contra seus próprios fantasmas e o ideal americano por trás de tudo que George Lucas escreveu agora se torna um chamado de batalha, para uma resistência e, eventualmente, revolução. É uma autocrítica poderosa e, mesmo que seja coincidência, chega em momento oportuno e necessário.

Finalmente, Star Wars entra no debate sem aquela obviedade binária de George Lucas em Episódio III. Só por isso, a jornada já valeu a pena.

[O jornalista é empurrado para o lado por uma estátua em tamanho real de Darth Vader, enquanto um sujeito vestido com roupa de piloto rebelde, capacete cinza e com um chaveiro cheio de personagens em Lego toma o pódio. O fã chegou.]

Rogue One: Uma História Star Wars

PARTE III: Esperança

[O fã mata o copo de Coca-Cola e repete para si mesmo “Sou um com a Força e Força está comigo”, umas três vezes, abre os braços e grita:...]
A Disney pediu, várias vezes, para não bancarmos o Homer Simpson e estragarmos a experiência de quem estava na fila lá fora, nas ruas internas do estúdio em Burbank. Minhas lágrimas serviam com um spoiler bem grandão, mas, fazer o quê? Como segurar? E elas vieram por várias razões.

A primeira foi o arco dramático do filme. O final chega, sobrecarrega o universo com diversos sentimentos (carinho, dor, perda, esperança, saudade, infância, paternidade...) e as primeiras fichas começam a cair. O reencontro com uma sensação quase esquecida, soterrada por tantas histórias adicionais, por tanta overdose de Skywalker. No começo, ninguém torcia para o Luke. A torcida era pela sobrevivência da base em Yavin 4. Eles eram os bonzinhos, eles precisavam escapar. E, uau, eles escapam.

Só que, agora, com Rogue One, estamos diante de um ciclo que justifica sacrifícios até então inimagináveis. Os Jedi foram mortos, a maioria em batalha, lutando pela própria vida. Os soldados clone estavam ali seguindo ordens. Os pilotos rebeldes estavam travando uma guerra civil. Dessa vez, a parada é mais intensa, mais profunda, mais viva. São pessoas fazendo qualquer coisa para evitar que um maníaco tenha a arma mais poderosa da Galáxia. O final é uma porrada forte demais. Talvez tão intensa quanto a morte de Han Solo. Você sabe que vai acontecer, mas se recusa a acreditar até o último instante. E o resultado é devastador.

Rogue One: Uma História Star Wars

Foi bom retornar àquela linha temporal familiar, ver rostos conhecidos. Darth Vader teve dois momentos distintos: o primeiro é frustrante, com direito a trocadalho do carilho; já o segundo é épico. E valeu todo meu esforço para assistir Rogue One SEM spoilers e sem ver nenhum dos trailers. Muito da empolgação, e da emoção que senti, veio das surpresas, das homenagens e das peculiaridades da história. Logo, mesmo com alguns tropeços aqui e ali, o filme se sustenta e merece, dentro do ranking da Saga, bater O Despertar da Força e ficar em 2o Lugar logo atrás de O Império Contra-Ataca.

Devo assumir, não botava fé nenhuma nesta produção. Cheguei a chamá-la de erro. Não acreditava em bons filmes de Star Wars fora do eixo principal. Rogue One destruiu minha teoria, colocou um sorriso no meu rosto e lágrimas nos meus olhos. Não podemos pedir mais nada de um filme de Star Wars.

A Força vive, pulsa e tem um futuro lindo pela frente. Cheio de guerra, heróis e, claro, esperança. A rebeldia de Rogue One é prova IRREFUTÁVEL disso.