Mais do que mostrar a força de sua nova formação, novo álbum do combo brasileiro é uma espécie de carta de intenções, que mostra que seu passado foi integrado como múltiplas facetas de uma única banda
A decisão do Angra de abrir os trabalhos de seu nono disco de estúdio, Ømni, com a faixa Light of Transcendence talvez não ajude a dar a dimensão do que este álbum representa pra história recente da banda. Porque tamos falando de um power metal bem do tradicional, lindamente executado, na melhor tradição do DNA dos caras, mas que é apenas e tão somente... um power metal bem do tradicional. Que poderia ter sido lindamente executado por qualquer outra boa banda. Bonito, porém genérico.
Hey, nem tô falando que a música deveria ter sido sacada do disco, longe disso. Mas nem as referências sutis a Nova Era (no começo) e Rebirth (lá pelo meio) justificariam a escolha. Coloca ela lá pelo meio do CD e deixa Travelers of Time ter a honra de apresentar o que vem pela frente. Bom metal com sabor power, mas que sabe incorporar a batida tribal / étnica que sempre caracterizou o trampo dos caras, menos tecnicamente impecável e mais “sacana”, digamos assim. É uma faceta do Angra que, com certeza você já ouviu antes e que faz uma baita falta sempre. Além de ser apenas uma de muitas que você vai reconhecer ao longo de Ømni.
Vamos considerar assim: se Secret Garden, o disco anterior e o primeiro com esta terceira formação de sua carreira, era o Angra claramente gritando pro mundo que ainda estava vivo, este aqui é um Angra depois de algumas sessões de terapia, aprendendo a conviver com os muitos Angra que vimos nascer e renascer ao longo dos anos.
Não por acaso, o atual capitão da trupe, o guitarrista e co-frontman Rafael Bittencourt, resolveu batizar a parada com uma palavra que, na verdade, é um elemento formativo de outras palavras, carregando o sentido de “todo” e/ou “inteiro”. É uma banda que já tinha mostrado que tava prontíssima pro futuro enfim se mostrando em paz com o próprio passado.
“Se depois de Angels Cry veio Holy Land e depois de Rebirth veio Temple of Shadows;, confesso que estou ansioso para saber o que vem depois de Secret Garden“, disse eu, lá atrás. A espera valeu demais a pena. Ømni é um álbum maduro, equilibrado, bem dosado, diverso, intenso. E que segue longe de ficar tentando recorrer a caminhos fáceis, óbvios, como bem que poderia ao ter optado por um cara como o italiano Fabio Lione para o papel de vocalista.
Álbum conceitual, como boa parte dos discos que o Angra lançou recentemente, Ømni é uma coleção de pequenas histórias de ficção científica, conectadas por uma ideia central de que, em 2046, seria criado um sistema de Inteligência Artificial que mudaria a percepção e cognição humana, permitindo a comunicação entre humanos do passado e do futuro. Justamente por isso que personagens como viajantes do tempo, guerreiros bárbaros e homens da caverna convivem bem ao longo das onze faixas — que, de maneira bem sacada, também pretendem integrar os conceitos de Holy Land, Rebirth e Temple of Shadows, num esquema absolutamente Marvel de colocar tudo como parte de um único universo integrado.
Ou seja: “tudo o que aconteceu antes foi uma evolução natural para o que a banda é hoje”, conforme o próprio material de divulgação faz questão de frisar. Faz bastante sentido.
Tem espaço para a dramática Insania, na qual Lione se solta mais, vibrando e brilhando com a limpeza de uma voz cristalina que definitivamente encontrou seu espaço na banda sem precisar emular cantores passados. Mas também tem espaço para o Rafael mostrar sua cada vez mais interessante faceta vocalista, assumindo de forma rasgada a power ballad The Bottom of My Soul, um dos melhores momentos do álbum, com uma vibe meio hard rock, entre o brega e o farofa — mas que funciona que é uma beleza.
War Horns, com solo do fundador Kiko Loureiro pra coroar, é uma cacetada, faixa direta e reta que mostra que o Angra também pode ser uma banda daquele metal pesado, cheio de pegada, pra bater cabeça, com Bruno Valverde castigando as peles da bateria pra mostrar que ninguém tá aqui pra brincadeira MESMO. E enquanto Caveman é aquele Angra cheio de referências tipicamente brasileiras, misturando frases em português (“olha o macaco na árvore!”) com uma percussão monstruosa que parece emprestada diretamente da Timbalada, Magic Mirror e principalmente Ømni – Silence Inside são o lado mais progressivo, lisérgico, viajandão até, aquele que mais tinha ficado evidente nos últimos anos, com os músicos fazendo seus solos, explorando firulas, com momentos que até parecem jams improvisadas em pleno palco.
Misture a isso um momento “fofo” como a linda Always More, talvez uma herdeira direta de Bleeding Heart, e ainda coloque no tempero um encerramento instrumental pomposo que representa o lado mais música clássica, fazendo referência a cada uma das canções do disco, e tá feito: tem Angra em Ømni pra todos os gostos.
Ah, é, claro. E tem a Sandy, né? Não dava pra deixar de falar dela. Vamos deixar aí de lado a coisa de “ah, cantora pop num disco de metal, como assim?”, uma baita reação desproporcional vinda de quem nunca ouviu os batuques do Angra desde SEMPRE ou sequer sacou que eles tão há dois anos seguidos desfilando no Carnaval de Salvador com o Carlinhos Brown. E quem já escutou Sharon den Adel, do Within Temptation, sabe bem que ouvir a irmã do Junior numa canção metálica não é coisa tão fora do comum assim — a participação da Sharon em Farewell, do Avantasia, tem um timbre que é praticamente IDÊNTICO ao da Sandy (lembro que, na época que a música saiu, teve gente no Brasil jurando que era ela, aliás).
A participação da cantora em Black Widow’s Web, canção bem boa mas longe de ser a melhor coisa do disco, infelizmente dura pouco, só na abertura e no encerramento. Queria, de verdade, tê-la ouvido mesclada ao metal-galã Lione e ao gutural feroz de Alissa White-Gluz (Arch Enemy), em múltiplas camadas, durante a música toda, na mesma pegada da inesquecível Late Redemption, com Milton Nascimento. Fica aí a porta aberta para novas oportunidades. Para a Sandy. E para a Anitta (é sério, Rafael chama a Anitta. Ia ser foda DEMAIS).
Depois de insistentes (e insuportáveis) idas e vindas nos últimos anos, com trocas de farpas entre ex-integrantes na imprensa especializada e a porra toda, que este disco não dê apenas ao Angra apenas a unidade que eles precisam, mas também o FOCO.
Esquece este papo insistente de “turnê de reunião da formação clássica”, deixa as perguntas sobre o André Matos de lado, na real nem precisa ficar convidando o Edu Falaschi pra tudo que é show especial. Ømni prova que vocês ainda têm lenha pra queimar usando o passado como combustível mas sem precisar que ele seja MULETA.