Primeira heroína a se destacar nos quadrinhos, criada por um psicólogo e um dos pilares que ajudaram a construir a DC Comics
Final dos anos 1930. O Superman já era um sucesso, seguido pelo Batman e por outros heróis que iniciaram algo que, depois, seria chamada de Era de Ouro dos Quadrinhos. Um fenômeno entre as crianças, que encontravam naqueles personagens superpoderosos uma atualização dos heróis mitológicos e os ajudavam a enfrentar um momento difícil – agravado a partir de 1939 com o início da Segunda Guerra Mundial. Acompanhando esse movimento, a revista Family Circle publicou em 1940 uma matéria assinada por Olive Richard sobre tudo que estava acontecendo – chamada Don’t Laugh at the Comics, ou, em português, “Não ria dos quadrinhos”.
“A seção de quadrinhos dos jornais de domingo há muito se tornou a bíblia do Sabbath para mais de 100 mil crianças, e agora as revistas em quadrinhos se tornaram seus livros didáticos”, disse um psicólogo ouvido pela publicação naquela matéria. Respeitado no meio acadêmico, o entrevistado havia inventado a chamada Avaliação Disc (que determinava o comportamento das pessoas dentro de certos ambientes) e um teste de pressão do sangue que foi importantíssimo para a criação do polígrafo que, em teoria, detecta mentiras. O nome dele? William Moulton Marston.
Quem leu aquilo e ficou interessado foi Max Gaines, da editora All-American Publications. Percebendo que seria interessante ter alguém que fosse PhD em psicologia e que gostasse da mídia, Gaines contratou Marston para ser seu consultor editorial.
No novo cargo, ele quis dar um passo a mais, que era criar um super-herói. Foi aí que a esposa dele, Elizabeth Marston (que também era psicóloga), deu a ideia: que fosse uma mulher, já que as HQs eram dominadas pelos heróis masculinos e as mulheres eram sempre retratadas como donzelas em perigo. Foi meio que como ligar aquela luzinha na cabeça do marido.
Marston era o que as pessoas chamavam de PRAFRENTEX: era casado, mas vivia um relacionamento à três com uma segunda mulher, Olive Byrne, que foi assistente do psicólogo e, olha só, justamente a responsável pela matéria na Family Circle, assinando com o sobrenome Richard. Uma união na qual as duas mulheres tiveram filhos de Marston – sendo que Elizabeth colocou o nome de Olive Ann na filha. No entanto, para conviverem com o resto da sociedade, contavam que Olive Byrne era uma “irmã viúva” de Elizabeth.
Por isso, Marston queria que a heroína que ele estava criando fosse um modelo para as mulheres, um exemplo de um feminismo que já havia conquistado o direito ao voto para elas. Outra inspiração para o psicólogo-quadrinista foi justamente Olive Byrne, que tinha como uma de suas marcas o uso de braceletes – que foram incorporados à personagem.
Marston, por conta de suas experiências com o telégrafo, acreditava que as mulheres eram geralmente mais honestas que os homens. Dessa forma, a personagem que ele estava criando não só não mentiria, como carregaria um objeto capaz de tirar a verdade das pessoas, o Laço da verdade.
“Nem mesmo as garotas querem ser garotas enquanto o nosso arquétipo feminino não tem força e poder. Ao não querer ser garotas, elas não querem ser ternas, submissas e amantes da paz como as boas mulheres são”, explicou o cara alguns anos depois. “As fortes qualidades das mulheres são desprezadas por causa de sua fraqueza. O remédio óbvio é criar uma personagem feminina que tenha a força do Superman mais o fascínio de uma boa e bela mulher”.
Conhecedor da mitologia grega, foi de lá que Marston tirou o conceito de uma tribo de mulheres guerreiras, que representavam muitos dos ideais que ele queria levar para os quadrinhos. Para os gregos, as amazonas eram filhas de Ares e Harmonia, passando a viver em locais como Líbia, Egito e Síria, fundando diversas cidades e, por fim, elas passaram a viver em Themiscyra, às margens de um rio onde hoje fica a Turquia. Com o passar dos séculos e a chegada da Era Moderna, o termo “amazona” se tornou um adjetivo para qualquer mulher guerreira.
Com tudo isso em mente, Marston imaginou uma heroína que não venceria com os punhos ou armas de fogo, mas sim com seu amor e sabedoria – e apresentou a ideia para Gaines, que gostou e deu o ok para a publicação.
Assim, com arte de Harry G. Peter, que ficou sem crédito, a primeira história da personagem foi criada. Aliás, nem Marston teve o crédito correto: para evitar problemas com a “carreira séria” que tinha, ele assinou como Charles Moulton. Não importa: em All Star Comics #8, publicada em Outubro de 1941, surgiu a Mulher-Maravilha.
Naquela primeira história, Marston soube capturar o espírito da época. Tudo começa quando Steve Trevor, um piloto da inteligência dos EUA, sobrevoa o Atlântico durante uma perseguição a um espião nazista. Porém, sem combustível, ele acaba caindo na Ilha Paraíso. Lá, duas amazonas – Diana e Mala – o encontram e o levam para ser tratado. Pelos dias seguintes, Diana cuida de Steve e, aos poucos, se apaixona por ele. Só que tem um problema: homens não poderiam chegar na Ilha Paraíso, nem ficar por lá. Por isso, rainha AND mãe de Diana, Hipólita, ordena que o visitante volte para os EUA assim que estivesse melhor.
Só que mãe e filha usam uma esfera mágica para vasculhar as memórias de Steve enquanto ele ainda está convalescente, descobrindo não só a verdade sobre a missão dele, mas sobre a Segunda Guerra Mundial. Assim, Hipólita declara que uma agente amazona deve sair da Ilha Paraíso e ajudar os EUA a vencer o conflito, criando um torneio para escolher a melhor guerreira, proibindo a filha de tomar parte dessa disputa.
Obviamente que Diana discorda e disputa os jogos com uma máscara, se saindo a vencedora. Sem muita escolha, Hipólita concorda e elege a filha a agente das amazonas. Nasce a Mulher-Maravilha.
Aquela primeira aparição foi um sucesso, suficiente para a personagem ser a estrela de um novo gibi, chamado Sensation Comics, publicado logo em seguida, ainda em 1941. Nessa segunda aparição, Diana leva Trevor até os EUA, deixando-o em um hospital, indo procurar um emprego e, bom, numa trama típica da Era de Ouro, ela troca de lugar com uma enfermeira que é igualzinha a ela e se chama Diana Prince. ¯\_(ツ)_/¯
Já na segunda edição de Sensation Comics, a Maravilha encontra o seu primeiro grande vilão: o Doutor Veneno, chefe da divisão de... venenos da Alemanha nazista. O grande plano do cara é desenvolver uma droga chamada Reverso, que, CLARO, reverte a personalidade das pessoas. Quem é bom fica ruim e por aí vai. No final da HQ, descobrimos que o vilão é uma vilã – a Princesa Maru, do Japão, que é derrotada.
Um elemento comum deste início era a chamada “Lei de Afrodite”, que era a principal fraqueza da Maravilha: se seus braceletes fossem presos um ao outro, ela perdia seus superpoderes. Marston era ENTUSIASTA do BDSM e, na visão dele, fazer com que a personagem saísse por si própria dessas situações de prisioneira ajudava a acabar com o chavão das donzelas em perigo.
A partir daí, a personagem se consolidou e, em Junho de 1942, ganhou uma revista com seu próprio nome, Wonder Woman. Logo na primeira edição, Marston recontou a origem da personagem, adicionando um detalhe importante: que ela havia sido feita a partir do barro, após sua mãe, Hyppolita, pedir aos deuses uma filha. Nas décadas seguintes, esse seria um ponto importante na origem da personagem.
Marston também era muito apegado à sua criação Mulher-Maravilha, reconhecendo a importância da heroína. Quando a All-American Publications adicionou a personagem ao elenco da Sociedade da Justiça, o criador ficou enfurecido, motivando uma mudança de planos da editora, que acabou colocando a amazona como “secretária” da equipe, numa história que já contamos aqui no JUDÃO.
Um dos investidores da All-American, Harry Donenfeld, já era CEO de outras duas editoras de quadrinhos: a National Allied Publications (dona da revista Action Comics) e da Detective Comics (que publicava o gibi de mesmo nome, com o Batman). Além disso, Jack Liebowitz, editor da DC, era outro investidor. Assim, informalmente, a editora de Gaines, que além da Mulher-Maravilha e da SJA tinha também o Lanterna Verde e o Flash, usava o logo “DC” em suas publicações.
Com o tempo, Max Gaines desistiu do negócio e vendeu a sua parte para Liebowitz, que orquestrou a fusão das três editoras. Assim, em meados de 1945, nascia a National Comics, da qual ele era sócio minoritário, vice-presidente e editor. Depois, unida à distribuidora Independent News, nascia a National Periodical Publications, que é basicamente a DC Comics que conhecemos hoje.
A nova editora, que já nascia gigante, já possuia um panteão de heróis, títulos de sucesso e uma distribuidora própria, o que fez com que a Mulher-Maravilha pudesse sobreviver à recessão dos quadrinhos que veio no final da Segunda Guerra Mundial, podendo ressurgir nos anos 1950 como um dos pilares da chamada Era de Prata. Desde então ela é considerada uma das integrantes da Trindade da DC, que curiosamente representa cada uma das editoras que lhe deu origem.
Pena que William Moulton Marston não pode ver isso. Ele morreu em 2 de Maio de 1947, aos 53 anos, vítima de câncer de pele. A última história que ele escreveu foi publicada em Wonder Woman #28, que saiu no início de 1948.