Uma das grandes inspirações do Cavaleiro das Trevas, dentro e fora da história do gibi, a icônica criação de capa e espada vinda da literatura pulp completa UMA CENTENA DE ANOS em atividade como um ícone da cultura pop tão importante quanto Tarzan ou Superman
Embora as versões mais antigas da origem do Batman deixassem claro que o jovem Bruce Wayne estava saindo com os pais Thomas e MARTHA! do cinema, quando aconteceu o crime que marcou a vida do garoto para sempre, foi só na seminal série O Cavaleiro das Trevas que alguém tornou cânone o filme que os Wayne tinham ido ver: A Marca do Zorro. No fim, tanto poderia ter sido a versão muda de 1920 com Douglas Fairbanks no papel principal quanto a de 1940, na qual Tyrone Power usa a máscara. O que importa é o impacto que o personagem causou.
Não apenas na cabeça de um jovem Bruce, dentro da história contada nos gibis, que anos mais tarde também assumiria a sua versão muito particular de uma máscara e uma capa para combater a injustiça –, mas também na cabeça de um certo cartunista de nome Bob Kane. O próprio co-criador do Batman (junto com Bill Finger, sejamos totalmente justos aqui) já tinha dito claramente que suas três inspirações para o Homem-Morcego tinham sido o Zorro, o diagrama de Leonardo da Vinci para a máquina voadora conhecida como ornitóptero e o filme The Bat Whispers, thriller de 1930.
E se este é o ano em que se comemoram os 80 anos do Morcegão, que daria as caras inicialmente em 1939, é importante lembrar que DUAS DÉCADAS antes fazia sua estreia nas páginas dos livros o alter-ego de Don Diego de la Vega. Pois é: agora em agosto, o Zorro completa nada menos do que 100 anos desde que seu criador, o escritor americano Johnston McCulley, publicou na revista All-Story Weekly a primeira parte de uma história seriada chamada The Curse of Capistrano. Nascia ali, em 1919, um personagem que se tornaria tão icônico para a cultura pop quanto o Superman, Tarzan, Robin Hood ou Rei Arthur.
McCulley não tinha lá muita intenção de dar continuidade às histórias do vigilante mascarado não, sabe? Mas quando Hollywood foi lá e resolveu, um ano depois, adaptar a trama como veículo para o galã Fairbanks, a parada deu tão certo que o autor sacou o potencial e alimentou o público ávido das publicações pulp (as revistas de entretenimento “barato” de ficção/fantasia/terror publicadas desde a virada dos anos 1900 até pelo menos o final de década de 1950) por quatro décadas, com cinco histórias seriadas, em vários capítulos, e nada menos do que 57 histórias curtas — sendo que a última saiu em 1959, o ano depois de sua morte aos 75 anos.
Embora muitos estudiosos afirmem que McCulley se inspirou na vida de Joaquin Murieta, criminoso mexicano da vida real que se vingava contra os abusos que os ricos impunham aos seus conterrâneos numa Califórnia do século 19, em plena Corrida do Ouro, é inevitável fazer comparações com um personagem surgido nos livros mais de uma década antes, em 1905, o chamado Pimpinela Escarlate (Scarlet Pimpernel).
Criação da baronesa húngara Emma Orczy, o Pimpinela era a identidade secreta de Sir Percy Blakeney, um ricaço inglês que, embora se parecesse apenas com um bon-vivant, era na verdade um ginasta excepcional e um espadachim formidável que libertava os aristocratas franceses antes que fossem enviados para a guilhotina, deixando para trás o seu símbolo, uma flor, a tal pimpinela escarlate que lhe dava nome.
Sacou a semelhança? ;)
McCulley, no entanto, preferiu trazer esta ~inspiração mas acrescentando um tanto mais da figura “exótica” dos caballeros hispânicos, com um código de honra inabalável. Então ele acrescentou o cavalo preto Tornado e colocou o nobre Diego para lutar não pelos ricos aristocratas como ele, mas sim pelos pobres mexicanos oprimidos e igualmente pela população indígena, ambos sofrendo nas mãos de homens poderosos e tirânicos interessados apenas e tão somente no ouro.
A história-padrão ao redor do Zorro conta que ele é filho de um dos maiores e mais ABONADOS donos de terras da Califórnia, Don Alejandro de la Vega, que vive no vilarejo outrora conhecido como Pueblo de Los Ángeles, aquele que se tornaria a cidade que conhecemos como Los Angeles. Embora tenha passado grande parte de sua juventude na Espanha, estudando e aprendendo a nobre arte da espada, Diego (cuja mãe é falecida) acaba sendo convocado pelo pai para retornar à sua cidade natal, hoje nas mãos de um ditador opressivo e seu exército violento. Ágil, bem-humorado, especialista em diversas armas e formas de luta, o jovem resolve que é hora de fazer algo pela população e se torna um herói mascarado, usando como codinome a expressão em espanhol para a palavra “raposa” e tornando-se um dos foras da lei mais procurados da região — em especial pelo total desrespeito que tem pelas autoridades, tratando de humilhá-las publicamente em suas aventuras.
Contando com o segredo de Alejandro e também de Bernardo, seu criado mudo (...), ele usa uma série de passagens secretas e túneis subterrâneos para esconder o quartel-general do herói em uma caverna (ah, veja você) na enorme fazenda em que vivem. E assim como Bruce Wayne, Don Diego finge ser apenas um playboy frívolo, bobalhão e até meio covarde. Mas, diferente do sisudo Batman, o Zorro não se leva muito a sério, tira onda de tudo e todos e, claro, incentiva a criação desta persona sensual e provocativa, levando as mulheres da cidade à loucura.
“O Zorro pode ser qualquer pessoa”, diz, em entrevista ao jornal Los Angeles Times, Sandra Curtis, representante da Zorro Productions — uma empresa criada pelos filhos de Mitchell Gertz, que teria recebido os direitos de McCulley em 1949, e que agora que detém os direitos do personagem. “Ele não tem poderes especiais. Ele é atlético, brilhante e carismático, mas não tem superpoderes. Ele tem esta qualidade de ser gente como a gente”.
Talvez, no entanto, nem toooodo mundo concorde com esta última afirmação. Alguns estudiosos da cultura latina, por exemplo, são bastante críticos aos estereótipos que o herói (criado, afinal de contas, por um americano) carrega em sua essência, como ser um típico latin lover europeu lutando contra um bando de soldados mexicanos meio apatetados. “A imagem do herói espanhol moreno e misterioso cria uma imagem romantizada das tais proezas latinas”, explica o professor da UCLA, Rafael Perez-Torres. “O Zorro é um branco nascido no Novo Mundo, de sangue puramente espanhol. O comediante e roteirista latino Herbert Siguenza, integrante da trupe performática Culture Clash, especializada em atuações políticas e responsável por uma nova versão teatral do herói, concorda: “Ele fica menos ameaçador desta forma. Mas a Califórnia tinha os bandidos reais defendendo os nativos, caras como Joaquin Murieta. Eles eram os Zorros para nós, latinos. (...) Ele acaba sendo a visão eurocêntrica de um herói”.
Ambos, no entanto, admitem que o apelo do personagem acaba transcendendo os estereótipos. “Ele é alguém que luta pelos direitos dos oprimidos, na mesma filosofia de Zapata e Che Guevara. Este é um espírito que apoiamos”, afirma Siguenza. “O clichê é inseparável do apelo do personagem. Isso também é verdadeiro à medida que ele tem uma imagem positiva de um personagem aristocrático e nobre que luta contra a injustiça, que luta contra vilões impiedosos. A história do Zorro acaba misturando os lados bons e ruins do estereótipo latino”.
Mas gozado que, ainda assim, demorou UM BOCADO até que um espanhol de verdade interpretasse o Zorro numa telona ou telinha da grande mídia. E, pô, estamos falando de um personagem que virou uma dezena de adaptações pra TV e pro cinema. Popularizado principalmente por uma série da Disney exibida entre o final da década de 1950 e o começo dos 1960, com o ítalo-americano Guy Williams no papel principal, mesmo na série de TV dos anos 1990, totalmente gravada na Espanha, o Zorro era vivido por Duncan Regehr, um canadense.
À exceção de produções menores e ~não-oficiais no México e na Europa, a mudança de fato, global, se daria mesmo quando Hollywood resolveu fazer um filme no qual um Don Diego (no caso, Anthony Hopkins) já em vias de se aposentar resolve passar o seu manto para um outro sujeito (no caso, Alejandro Murieta, em tese irmão do Joaquin histórico original). Nascia aí o filme A Máscara do Zorro, sucesso de bilheteria de 1998 no qual Antonio Banderas assume a identidade do herói.
“Lá estava eu, no set, com a capa e a máscara, olhando para o vilão, o Capitão Love”, relembrou o ator, em 2018, ao celebrar os 20 anos do lançamento do filme numa entrevista pro Yahoo. “O vilão era loiro, de olhos azuis e falava um inglês perfeito. Logo pensei: hummm, tem algo mudando aqui”. Banderas, que no início da carreira tinha sido advertido que provavelmente viveria muitos vilões no cinemão americano já que latinos e negros eram sempre escolhidos como antagonistas, estava do outro lado do espectro. E ele defende que foi muito importante que estivesse ali, naquele momento, para que diversas crianças que falavam espanhol ao redor do mundo pudessem ver. “É uma fantasia, mas tem informação que entra na cabeça daquelas crianças. Elas vão guardar aquilo”.
Justamente para trabalhar um OUTRO recorte do herói, inclusive, mais moderno e contemporâneo, é que a Zorro Productions procurou, em 2003, ninguém menos do que a prestigiada escritora chilena Isabel Allende, do clássico A Casa dos Espíritos. A ideia seria fazer um livro que tivesse uma outra abordagem para a sua mitologia... mas digamos que a autora não estava lá muito interessada. “Eu sou uma escritora séria”, teria dito ela. Quando mandaram pra ela uma caixinha com antigos filmes, séries e gibis do Zorro, bem... “Eu me apaixonei de novo por ele”, explicou Isabel. “Porque eu o adorava quando era criança. Eu queria ser como ele. Ele é romântico, atlético, luta pela justiça”.
“Eles acharam que eu faria um bom trabalho porque já tinha escrito aventuras históricas. Além disso, eu conheço a cultura hispânica muito bem”, afirmou ela, em entrevista para a Folha de S.Paulo. A intenção de Zorro: Começa a Lenda era justamente criar um contexto historicamente mais realista. “Johnston McCulley era um americano que não era historiador”, complementa Curtis. “Queríamos criar uma origem que incluísse a jornada do herói junto de uma rica profundidade para a sua ambientação”.
Narrado a partir do ponto de vista de uma mulher, Isabel de Romeu, o livro mostra Don Diego como uma mistura de heranças espanhola e indígena — enquanto Bernardo era um índio e, sim, também irmão de leite de Diego. “Nas outras adaptações, Bernardo era apenas o servente. Era tratado de forma muito racista. Por isso, decidi lhe dar orgulho e dignidade”, conta Isabel.
Depois dos dois filmes com Antonio Banderas, Zorro acabou sendo meio ignorado por Hollywood, embora exista um interessante plano em andamento sendo ventilado nos bastidores há alguns anos. Outrora batizado de Zorro Reborn, o filme que agora é conhecido apenas como Z vem se desenvolvendo vem devagarinho pelo menos desde 2012. A ideia seria não se focar no passado, mas sim num futuro pós-apocalíptico bem próximo da gente, numa pegada de justiça social inspirada no mundinho distópico que se desdobra ao nosso redor.
A direção ficaria a cargo de alguém que originalmente tem mais experiência como roteirista — no caso, Jonás Cuarón, filho do premiado Alfonso Cuarón. Depois de dirigir Gael García Bernal no recente Desierto, um thriller tenso sobre imigração, o cineasta trouxe o ator para o projeto. Mas recentemente, no entanto, a produção conjunta da Sobini Films e da Lantica Media convocou a atriz Kiersey Clemons para o elenco. Par romântico do herói? Olha, parece que não é isso não, viu? ;)
O pessoal do That Hashtag Show, por exemplo, tem informações que invertem esta dinâmica. Bernal seria um personagem chamado Emiliano Garza, alguém que já foi o Zorro, uma espécie de legado passado de geração para geração, tipo o título do Fantasma ou do Pantera Negra. E ele seria mentor da personagem de Clemons, uma jovem de origem haitiana chamada Zee — justamente uma homenagem ao herói que ela cresceu tendo como ídolo. A ideia é que ela assuma a identidade e lute contra a opressora corporação chamada M-Corp. Nada de muito novo? Nada de muito novo. Porém... tornar o Zorro uma mulher só reforça a coisa de “pode ser qualquer por baixo da máscara”, o que é um conceito MUITO legal.
Mas, por enquanto, o Zorro permanece vivo é mesmo nas HQs. Depois de passar por editoras como a Topps Comics e a Dynamite Entertainment (onde foi publicado o crossover com Django Livre, escrito pelo próprio Quentin Tarantino e que inclusive vem sendo prometido como adaptação para as telonas em algum momento do futuro), o personagem agora está nas mãos da American Mythology — que não vem poupando esforços para torná-lo ainda mais moderno para as audiências contemporâneas.
Quer um exemplo? No título Zorro: Swords of Hell, o roteirista David Avallone inaugura toda uma linha de HQs de western horror e coloca o personagem para enfrentar demônios, vampiros e demais criaturas sobrenaturais. Ao encarar um grupo de cavaleiros monstruosos que querem transformar a região num inferno, o espadachim encarna a sua melhor versão Van Helsing. Já Zorro: Sacrilege, sob a batuta do editor-chefe da American Mythology, Mike Wolfer, tem uma pegada mais crítica, ao mostrar uma ameaça vinda da religião — lembremos que, no século 19, tivemos uma série de assentamentos religiosos na região para tentar “converter” a população local. Junte a isso uma pegada de filme de terror mais Dario Argento e, bingo, tá aí a ideia.
“Um dos nossos objetivos aqui é introduzir o Zorro a uma nova geração de leitores mas, para seguir em frente, primeiro temos que olhar pro passado”, explica Wolfer ao Newsarama. “Estamos falando de um dos primeiros heróis literários americanos, criados durante uma época na qual os faroestes eram muito populares. Mas estamos à décadas distantes destes temas, por mais que a mística do ‘oeste selvagem’ ainda viva na memória de muitos leitores. Um século depois, basicamente, estamos querendo mesclar nossas histórias com este tom de horror, falando com gostos mais modernos. Isso dá uma abordagem mais ousada e nova para o Zorro, ainda que sem deixar de ser nostálgico”.
Ah, sim: importante lembrar que, para os brasileiros, principalmente os mais velhos, Zorro é sinônimo não apenas de um, mas também de DOIS personagens, graças a um equívoco histórico.
Sabe o Cavaleiro Solitário (Lone Ranger), o caubói criado por George W. Trendle e Fran Striker na década de 1930, aquele mascarado que andava ao lado do parceiro indígena Tonto e que cavalgava um cavalo (branco, é bom lembrar) que incitava dizendo AI-Ô SILVER? Então. Ele não chama Diego, mas sim John Reid. Ele não usa espada, mas sim um revólver. Tampouco tem qualquer origem hispânica ou sai marcando a bandidagem com um Z por aí. Mas ele TAMBÉM era chamado de Zorro por aqui, pelo menos durante um tempo.
Basta buscar a tradução para o português do nome da série do Lone Ranger dos anos 1940, aquela clássica com Clayton Moore: As Aventuras do Zorro, o Cavaleiro Solitário. Pois é... Por que esta decisão? Pouco se sabe-se a respeito, na verdade. Talvez uma confusão pela ambientação meio western + cavalo + máscara preta? Ou talvez tenha sido algo PROPOSITAL para tentar surfar na onda de sucesso de seu predecessor? Sabe-se lá.
Mas que a culpa vai ser sempre do pobre sujeito que traduz os títulos em inglês dos filmes/séries pra português, ah, isso vai... ;)