O Universo DC dos cinemas e o nosso Reino do Amanhã | JUDAO.com.br

O que mais assusta em Batman VS. Superman não são todos os seus problemas, mas sim a morte da esperança

“Histórias de super-heróis – seja qual for o veículo delas, quadrinhos ou qualquer outra coisa – são hoje a mais coerente manifestação do inconsciente popular. Não são histórias sobre deuses, mas sobre a forma como os humanos desejam ser; o que procuram, de fato”.

A frase aí em cima é representativa: trata-se de um trecho da introdução da versão encadernada de O Reino do Amanhã, escrito no final de 1997 por Elliot S! Maggin (sim, com uma exclamação), que foi um dos grandes romancistas e roteiristas da DC Comics durante a Era de Bronze. Maggin também é dos grandes conhecedores do Homem de Aço: foi ele que, em 1978, publicou o livro EM PROSA Superman: The Last Son of Krypton, que relata a história de Kal-El desde o nascimento à sua trajetória como Superman, passando pela infância em Smallville e o tempo no qual usou o nome de Superboy.

Porém, o MAGNUM OPUS de Maggin é o segundo livro com o herói, chamado Superman: Miracle Monday. Na história, uma viajante do futuro chamada Kristin Wells vai para 1981 (que era, até então, o presente) procurando descobrir a origem de um feriado misterioso, que ocorre sempre na terceira segunda-feira de Maio. Isso abre a porta para que o vilão C.W. Saturn, vindo diretamente do inferno, se apodere do corpo de Kristin, confrontando o Superman em seguida. No meio da grande luta entre os dois, o Homem de Aço se recusa a matar Kristin, mesmo que isso signifique que eles tenham que brigar pelo resto da vida.

O único sacrifício válido é o próprio sacrifício, nunca o dos outros.

Coincidência ou não, na ÚLTIMA segunda-feira de maio os norte-americanos comemoram o Memorial Day, que é quando eles homenageiam aqueles que morreram servindo as forças armadas do país.

Por tudo isso, Maggin foi escolhido não só para escrever a introdução de O Reino do Amanhã, como também a versão em prosa da HQ. Mais do que ninguém, o autor conhece essa visão clássica dos super-heróis e interpretou perfeitamente a grande alegoria da graphic novel escrita por Mark Waid e desenhada por Alex Ross.

Uma alegoria que, 20 anos depois, se tornou realidade em Batman vs. Superman: A Origem da Justiça.

Kingdom Come

Na história, os super-heróis da nova geração surgem nessa visão trágica do futuro do Universo DC para agir como vigilantes da forma como bem entendem (o que inclui matar). A maioria dos vilões é eventualmente derrotada, mas fica aquele gosto na boca de que os meta-humanos se tornaram um perigo ainda maior do que aqueles seres poderosos que combatiam antes.

A nova geração do UDC simplesmente representa os super-heróis dos anos 90: sombrios, assassinos, que grunhem e usam códigos morais pra lá de duvidosos.

Eis então que vem o Superman, reunindo a antiga Liga da Justiça para tentar mostrar o caminho para os novatinhos. Acontece que esse Azulão é a representação do Superman da Era de Prata: filho de um mundo distante que nos impunha (e ninguém reclamava, na época) sua forma de ver a justiça e o mundo, mesmo quando essa visão era bem diferente daquela dos terráqueos. Ao mesmo tempo, o Batman quer ver o mundo meta-humano arder. “Que se matem”, diz o Homem-Morcego, pensando que assim a Terra sobra novamente para os humanos sem poderes.

Dá merda, claro. Não é uma solução externa, imposta, que resolve um conflito. E são necessárias quatro (grandes) edições para Kal-El perceber isso. A ficha também cai para Bruce Wayne, que finalmente percebe que todas as vidas são iguais, têm o mesmo peso, seja entre um humano e um meta-humano, seja entre um bandido e uma pessoa normal, ou ainda entre um muçulmano e um católico. Pensar e reforçar esse tipo de diferença só vai fazer aquele assassinato no Beco do Crime se repetir por todo o sempre, cada vez com uma criança diferente chorando a morte dos pais.

Batman VS Superman

O mundo apresentado em Batman VS. Superman (e, antes dele, em O Homem de Aço) parece aquele do futuro de O Reino do Amanhã. Só que agora o Superman é o Magog: age por impulso, sem pensar nas consequências, distante dos pobres mortais – tão distante que não se prontifica a salvar ao menos uma das pessoas no Capitólio, mesmo tendo uma supervelocidade que poderia fazê-lo se mover mais rápido do que a explosão. Já o Batman é o Batman do Amanhã: a vida do Superman vale menos que as outras, por conta do risco que traz. Ele deve morrer, então – isso sem pensar em conversar, dialogar, estudar o inimigo, ter um plano de contenção, etc. O único objetivo é matar.

Sim, eu sei: tanto Batman quanto Superman já mataram nos quadrinhos. Na Era de Ouro, em suas primeiras HQs, eles não tinham qualquer remorso. O Homem-Morcego chega a enforcar um gigante, enquanto o Azulão deixa um bandido ser linchado por uma multidão raivosa. Porém, as coisas naquela virada dos anos 1930 para os 1940 ainda eram selvagens, fruto de uma sociedade que tinha perdido tudo com a Grande Depressão e que, em escala global, criou regimes como o Nazismo e o Fascismo italiano.

Quando o Superman e o Batman clássicos se desenvolveram, abraçaram esse conceito citado por Maggin, de serem a representação do que queremos para o nosso mundo. Uma inspiração para as pessoas e a esperança de que podemos ser melhores. Que, no fim das contas, o mundo é um lugar bom.

A HQ Man of Steel, a origem criada nos anos 1980 pelo John Byrne, faz do Azulão uma cria da Terra, com pais tradicionais e uma moral mais próxima da nossa. Já nos anos 2000, O Legado das Estrelas, escrito pelo Mark Waid, chega ao extremo de incorporar um novo poder ao herói: o de enxergar a “aura” de todos os seres vivos. Essa capacidade passa a ter, então, a força inversa: faz Kal-El ver a beleza da vida e o horror da morte – tanto é que essa versão do Superman se converte ao vegetarianismo.

Morte do Zod

Eles voltaram a matar, eventualmente. Você pode citar, por exemplo, o momento no qual o Superman assassina Zod e os fugitivos da Zona Fantasma do Universo Compacto, ainda no final dos anos 80. Só que a grande diferença dos quadrinhos para os novos filmes é que no primeiro caso isso acontece depois de uma reflexão, do estudo de possibilidades, e depois vem sempre o remorso, o peso na consciência. Nos DC Filmes, o Superman mata Zod e em nenhum momento nós o vemos refletir sobre isso. O Batman atira em um tanque de combustível para matar um bandido sem nem ao menos estudar outras possibilidades.

São mortes vazias. Matar por matar.

O que assusta não é o Batman e o Superman matarem, mas ver que essa nova versão deles para as massas — sim, MUITO mais gente assiste aos filmes do que lê os quadrinhos — pode ser a representação do que esperamos do mundo, do inconsciente popular. Uma versão que acredita que, pelo bem da maioria, a minoria deva pagar com a vida. E que a decisão sobre matar ou não fica nas mãos de poucos.

“Até os super-heróis precisam crescer”, disse Maggin. Uma verdade em 1997 e uma triste necessidade em 2016.