Pai e filha unidos graças à paixão pelos gibis | JUDAO.com.br

Mas não, não estamos falando da Mônica e do Mauricio — e sim do Marcel e da Marcelli Ibaldo, cujas histórias de uma dinossaurinha fanática por leitura ganharam a internet e agora querem chegar na versão impressa

Este que vos escreve está experimentando a sensação neste exato momento: com uma casa cheia de filmes, gibis e toda a sorte de cultura pop por todos os lados, o interesse do meu filhote de 7 anos de idade pelos heróis da Marvel e da DC abriu os olhos dele pro mundo de coisas que ele já tinha ao seu redor e para o conhecimento do paizão, aproximando ainda mais a gente com nossos interesses em comum.

Foi mais ou menos o que rolou na casa da família gaúcha Ibaldo: o pai, Marcel, fanático por HQs, quadrinista de longa data, já tinha trabalhado com cinema em em curta-metragens trash e publicado seu trampo em jornais, livros, revistas e sites — em 2017, chegou a vencer o Troféu HQMIX com The Hype, parceria com Max Andrade.

Cercada de quadrinhos e livros em casa, a filha de Marcel, Marcelli, ficava folheando sem entender nada — até que ficou curiosa com uma palavra que aparecia no final de várias histórias. “Perguntei pro meu pai e aos quatro anos aprendi a ler a primeira palavra que era FIM”, explicou ela, em entrevista exclusiva pro JUDAO.com.br, junto com o paizão. A partir disso, foi alfabetizada com a ajuda das HQs e não parou mais de ler. Começou a desenhar inspirada por influências diversas como Quadrinhos A2, Valente, Calvin e Haroldo, Garoto Vivo na Vila Cemitério, Armandinho, Garfield, Snoopy...

O que não faltava era referência pra que a persistente menina desenhasse, ainda com cinco anos de idade, seus primeiros roteiros. “Geralmente histórias de só uma página e que ficavam bem ruins”, diz ela. Aos sete anos, a garota escreveu o roteiro de uma história chamada Closed Window pra um concurso de quadrinhos, mas acabou perdendo. “Só que isso não me desanimou nada”.

Mais ou menos nessa época, Marcelli ganhou um concurso de desenho regional e participou como desenhista em fanzines como Estojo Vazio e Palavra Faceira: Poesia em Tiras. Aos oito anos, então, Marcel sacou que esta dinâmica absolutamente natural podia render uma coisa diferente. “A gente tem uma quase-banda descompromissada pra descontrair tocando rock e folk, em que eu toco violão e teclado, e a Marcelli toca bateria e teclado, e além disso passamos muito tempo assistindo filmes, seriados e recomendando livros e quadrinhos um pro outro”, explica o pai. “Resumindo, a gente é muito amigo e temos muitos interesses nerds em comum”.

Foi então que Marcel aproveitou o interesse da menina pelos dinossauros e a convidou para começar uma série escrita por ele e desenhada por ela — na verdade, além de desenhar, Marcelli também arte-finaliza a nanquim e faz as cores na aquarela. Nascia aí a Tê Rex, a mais longa série de tiras da carreira de Marcel Ibaldo. “E um um dos projetos mais pessoais em que já trabalhei”.

A própria Marcelli, hoje com 10 anos, explica do que se trata: Teresa Rex, ou Tê pra facilitar, é uma série sobre uma tiranossaura nerd “que a gente criou inspirados no que vivemos no nosso dia a dia e no fato de que eu gosto muito de estudar dinossauros”.  Nela, eles falam sobre cultura geek, mas também sobre preconceito, bullying e afins. “Sem deixar o humor de lado, mas tentando de algum modo inspirar pessoas a lidar com esses tipos de problemas”. A tira foi parar na internet, em um site próprio.

“É raro a gente estar em casa e não estarmos ambos no estúdio conversando e criando algum projeto em comum, ou assistindo e lendo algo. Então acaba rolando que as ideias pras tiras são algo que surgem com facilidade”, explica Marcel. “A gente está sempre junto trocando ideias e geralmente daí surgem as tiras. Por isso tem muita coisa influenciada pelas nossas vidas na série”, completa a filha. Assim que rola a ideia, ele escreve o roteiro em forma de storyboard e passa pra Marcelli — que geralmente tá na cadeira ao lado e já começa a desenhar. “Começo a desenhar a lápis um esboço até chegar na arte que vai ser arte-finalizada incluindo mais detalhes. Por último eu faço as cores em aquarela e passo pra ele adicionar o texto e balões”.

Pai e filha fazem questão de destacar, no entanto, que mesmo sendo algo que ambos encaram de forma muito profissional, a coisa toda não parece “trabalho”, este treco chato que toma OITO horas do seu dia, de maneira alguma. “São só mais umas horas muito legais de descontração em família que resultam em algo que a gente publica e comunica algo pra outras pessoas”, afirma Marcel.

Quando a nova dupla criativa estava com as primeiras tiras produzidas, Marcel recebeu um convite da Gibiteria Diagonal, loja de quadrinhos em Porto Alegre, pra lançar tiras em formato marca-páginas. “Na hora pensei em utilizar a Tê Rex, até mesmo pelo contexto da série ter tudo a ver com o público-alvo da Gibiteria. Então, os marca-páginas foram lançados na Comic Con RS 2017 e agendamos o começo da publicação no blog pra mesma época”. Passado um ano, eles já estão com mais de 60 tiras publicadas, obtendo ótimas reações do público. “Pessoas que eu não conheço enviam mensagens comentando do quanto se identificam com uma personagem que é a rainha dos répteis pré-históricos nerds! Tem sido massa demais!”.

Mas, vamos lá, qual é a reação das pessoas quando elas descobrem a idade da artista? “Costuma ser engraçada, mas é sempre positiva”, diz o paizão, bastante orgulhoso. “Principalmente no stories do Instagram publicamos constantemente vídeos da Marcelli desenhando, arte-finalizando ou colorindo as tiras, então imagino que pra algumas pessoas já não cause tanto estranhamento”. Mas ele acredita, no entanto, que pra quem acaba de conhecer a série, sempre é um espanto inicial bem parecido com o que ele mesmo acha que teria. “Isso sem contar que é perceptível a evolução da arte dela, que é algo que tem me surpreendido também, e que vai ficar mais evidente ainda no livro impresso”.

Ah, é, tem isso aí, né.

Agora, pai e filha iniciaram uma campanha de financiamento coletivo no Catarse pra viabilização do primeiro livro compilando a série de tiras, além de material extra exclusivo para a edição. A Marcelli diz que, desde que eles começaram a série, já pensavam nesta versão em papel. “E daí, com os comentários positivos, até mesmo perguntando quando a gente iria lançar um livro da Tê Rex, nos deu mais certeza ainda que devíamos lançar nesse formato. Desde pequena eu sempre sonhei em lançar um livro impresso, não exatamente da Tê Rex porque na época eu nem pensava em criar a série, mas agora que nós temos uma série que gostamos tanto, acho que é o momento certo”.

Descrevendo a si mesmo como fanzineiro desde antes de se conhecer por gente, Marcel acredita que o principal atrativo de um livro impresso é a possibilidade de ler e reler em sequência algo que é publicado em uma periodicidade mais espaçada digitalmente. “Então, quem acompanha nossas tiras semanais vai ter uma percepção bem mais clara do contexto que vai sendo construído ao longo da série, página a página”. Mas também há outras novidades, com destaque pra galeria de convidados, além de uma tira exclusiva pra quem escolher uma recompensa específica do Catarse em que a Marcelli desenha a tira e arte-finaliza a mão no livro da pessoa, sendo que essa tira não vai ser publicada em nenhum outro lugar. “Curto ler quadrinhos digitais, mas ter o livro impresso é uma satisfação insuperável pra mim, enquanto leitor de HQs”.

É, Marcel, a gente ouve BASTANTE isso por aqui. :)

A gente não podia, obviamente, deixar de perguntar pro Marcel, que não é apenas leitor e fazedor de quadrinhos mas também PAI de uma garota consumidora de gibis, sobre este fenômeno do mundinho nerd que tem seu lado bastante tóxico — em especial para as meninas. “Desde a pré-escola, a Marcelli tem ouvido comentários sugerindo o quanto ela é ~esquisita por gostar de ler — tanto quadrinhos quanto livros em geral, inclusive material teórico sobre biologia, dinossauros, etc, que ela curte — então já é algo recorrente nas nossas conversas e venho aprendendo cada vez mais a lidar com esse tipo de questionamento”, conta ele.

Além disso, pra complicar o meio de campo, a Marcelli é baterista e, nesses dois anos em que se dedica mais à música, tem ouvido muita besteira sobre a tal da barreira do que as minas podem ou não curtir ler, estudar, ENFIM. “Felizmente ela é bastante madura quanto a isso e posso ser bastante franco nas respostas, ao mesmo tempo buscando ajudar ela a compreender que em geral as pessoas estabelecem esse tipo de restrição preconceituosa em virtude de um contexto social que replica conceitos arraigados”. Especialmente, claro, porque a maioria das pessoas que implicam com ela são crianças como ela. “Então a reação ideal não pode ser nenhuma forma de agressão, mas obviamente não pode ser se esconder calada”.

Ibaldo acredita que justamente o fato de eles terem a série de tiras serve muito bem pra construir uma percepção saudável sobre o tema, porque permite abordar isso através do humor, o que vence vários muros no diálogo. “A própria Marcelli já me disse que a forma de reagir que a Teresa apresenta na história, sem ceder ao medo ou se resignar em silêncio frente à ofensa, tem inspirado ela a encontrar um posicionamento mais corajoso diante do que antes a fazia voltar triste pra casa”.

Para o pai-artista, esse efeito que a série que produzem juntos (e, bom, a arte em geral, vamos lá) pode produzir é algo que faz acreditar que ela pode inspirar outras pessoas nesse sentido. “Isso me ensina a cada novo roteiro a ser melhor pai e enxergar fagulhas de esperança de que o diálogo possa sim quebrar esse tipo de visão estereotipada e nociva da arte”.

No fim das contas, o que os dois têm aprendido com a Tê Rex é que a pequena filhote de tiranossauro simplesmente busca apreciar a arte que gosta sem ninguém estragar o barato dela. E, bom, se isso já acontecia na pré-história, quem somos nós para renegar os aprendizados dos antigos moradores do nosso planetinha, não é mesmo? ;)