A piada de Gotham | JUDAO.com.br
18 de fevereiro de 2015
Séries

A piada de Gotham

Era pra ser um episódio sobre a origem dos pais do Robin. Virou a fagulha da gênese do Coringa, numa pressa que não tem cabimento

SPOILER! Quando vi, ainda na San Diego Comic-Con, o episódio piloto de Gotham, percebi de cara que a série tinha um enorme potencial. E ainda tem. Porém, numa produção dessas, existe uma distância muito grande entre o potencial e a execução. Esse é justamente o maior problema da série, mesmo com os roteiristas e produtores tentando ajustar os erros durante o trajeto. Algumas horas eles acertam, em outras a coisa acaba ficando ainda pior.

Pra entender isso, é só pegar o episódio exibido essa semana nos EUA, The Blind Fortune Teller. Basicamente, a história acontece usando dois grandes acertos. O primeiro, que já vem rolando há alguns episódios, é a substituição da importância da Barbara Kean (Erin Richards) pela Dr. Leslie Thompkins (Morena Baccarin). Se antes o relacionamento entre Gordon e Barbara era insosso, temperado por um triangulo que envolvia a Renee Montoya e diálogos fracos, a Leslie traz uma energia que faz finalmente você pensar que “ok, AGORA SIM tá interessante”. Isso sem falar que a personagem acaba sendo a cabeça pensante pra um detetive fraco. Sim, Jimbo, estou olhando pra você.

O outro acerto é com o enredo inicial do episódio em si. Mandar o casal fazer essa visita ao circo e ver o primeiro fiapo da origem do Dick Grayson, o futuro Robin, foi muito interessante – principalmente por ter plantado a semente de uma antiga treta, com uma disputa entre as famílias Grayson e Lloyd no circo por um motivo bizarro, mas que se acirra depois que os patriarcas das famílias se envolvem com a DOMADORA DE COBRAS.

Óun

Só que o episódio joga tudo isso no lixo ao tentar ligar essa história dos Graysons Voadores com a origem do Coringa, colocando-o como um garoto chamado Jerome (interpretado por Cameron Monaghan, o Ian Gallagher de Shameless), filho do vidente cego e da domadora de cobras. Alguém que tem a loucura, o riso e a insanidade. Parece que o Coringa está colocado ali como algo quase pronto, mesmo que seja ainda dentro da mente daquele garoto.

É uma origem bem diferente da clássica, lapidada de forma genial pelo Alan Moore na graphic novel A Piada Mortal, contada sob a ótica do próprio vilão. Naquela história descobrimos que o Coringa foi um homem comum, um comediante de stand up que tinha uma mulher grávida, dívidas, problemas... Alguém que, de certa forma, poderia ser qualquer um de nós. Surge a chance do dinheiro fácil, ele é levado a vestir a máscara do Capuz Vermelho, enfrenta o Batman, cai num tonel de produtos químicos... Surge o Coringa.

O vilão, então, tenta provar um ponto: qualquer um poderia ser como ele, basta apenas um dia ruim. Ele sequestra e tortura o próprio Gordon, além de estuprar e deixar paraplégica a sua filha, Barbara. No final, o plano não dá certo: por mais que tenhamos um dia ruim, ainda temos a nossa sanidade e nosso código moral.

Não estou defendendo que esta tem que ser a origem definitiva do Coringa, muito longe disso. Só que o vilão funciona muito melhor quando lidamos mais com o lado psicológico, com a dúvida, com o mistério, com a possibilidade de ser um mal maior e incontrolável. É, por exemplo, o que é feito em Batman – O Cavaleiro das Trevas, com um Coringa insano, que quer ver o mundo pegar fogo, e se diverte contando diversas versões para a própria origem. Ou mesmo com os gibis atuais, na fase do roteirista Scott Snyder, com um Coringa como um mal antigo e com uma nova origem não tão clara assim.

A série, porém, recorre a um produto quase pronto. “Ok, esse é o Jerome, ele já é maluco e ri, além de ter matado a mãe”. Muito simples, muito entregue, apesar de ser ainda um estágio inicial do personagem. É como se a série estivesse correndo para povoar esse universo de proto-versões dos vilões rapidamente, ao invés de se deliciar com a criação de cada um deles.

Pra piorar, nem dá pra dizer que Jerome seja realmente o futuro Coringa – um pouco porque a série quer manter algum mistério, mas também porque é uma obra aberta e já demonstraram que eles podem mudar os rumos caso o público não goste. “O que eu posso contar é que isso é um plano de jogo longo e uma longa história que estamos contando. O que eu posso prometer é que isso não é uma isca publicitária. Não é alguém que é apenas um personagem que vai desaparecer. É o começo da história de como o Coringa veio a existir, como o Coringa foi criado, de onde ele veio, quem ele é”, contou o showrunner Bruno Heller em entrevista para o E! Online. “Agora, isso não quer dizer necessáriamente que Cameron Monaghan é o Coringa. Ele poderia ser. Mas, como disse, é uma história que começa sete ou outo anos antes do verdadeiro Coringa aparecer em cena na sua persona de pleno direito”.

Gotham

O resultado é que Gotham se perde. O Pinguim (destaque dos primeiros episódios) ficou reduzido a poucas cenas, a Fish Mooney está presa em um subplot bizarro que fica difícil imaginar onde vai parar, o Charada é apenas um (interessante) alívio cômico, Mulher-Gato e Hera Venenosa estão simplesmente vivendo no apartamento da Barbara Kean (que nem se importa com isso, aliás), Renee Montoya e Crispus Allen sumiram, Harvey Dent é o promotor público menos ativo da história... E por aí vai.

Nisso tudo, Gotham fica sem rumo. Ok, estamos vendo literalmente o berço do Batman, de seus principais vilões e elenco de apoio. Isso eu já sei, já sei como vão ficar. Mas e o resto? Para onde a série quer me levar? Qual é o mistério? Qual é o verdadeiro gancho para se voltar no tempo e contar toda essa história?

Que essas respostas venham nos próximos seis episódios, que é quanto Gotham tem até o final dessa primeira temporada. É que, sem isso, fica difícil imaginar um futuro muito longo...