Sobre Pitty, Anitta e como a gente não enxerga além da casca | JUDAO.com.br

Como os comentaristas profissionais da internet se profissionalizaram na fina arte de estereotipar

Quando a gente diz que a cantora Pitty usou o seu blog, batizado de “O Buteco”, para falar sobre a cantora Anitta – mais especificamente, a respeito dos covers da baiana que a funkeira pop faz em seus shows – apostamos que uma imagem pré-concebida já se monta na sua cabeça. A roqueira, toda tatuada, fica puta da vida ao descobrir que uma representante do funk, este gênero tão popularesco e sem qualidade, anda tocando suas músicas, sensualizando com seu discurso brega e idiotizante enquanto usa indevidamente o que deveriam ser mensagens de protesto. Certo?

Errado, senhores jurados da internet. Muito errado. Vocês entenderam tudo errado – porque aquele tal de Shakespeare estava certo ao dizer que existem mais coisas entre o céu e a Terra do que sonha a nossa vã filosofia. A íntegra do post de Pitty segue abaixo, mas a gente já adianta pra você que 1) ela defende a Anitta; 2) ela passa um pito de leve na ala mais xiita de seus próprios fãs; 3) ela exerce um bem-vindo feminismo em plena semana do dia OITO de Março; e 4) encerra o texto mandando um beijo para a Anitta. Se virmos, em breve, um dueto das garotas, é melhor não fingirmos surpresa. E, vamos ser honestos: seria divertido pacas.

“Começou assim: alguém me avisou que Anitta tinha postado um trecho de uma música minha numa rede social. Depois me mandaram um link dela cantando ‘Máscara’ ao vivo num show. Depois outro dela cantando ‘Na Sua Estante’. E eu achei divertidíssimo que alguém de um universo tão diferente estivesse ligada no meu som e reinterpretando-o a sua maneira. Isso já faz um tempo, e tudo o que eu sabia até então é que eu a tinha visto num clipe com uma fotografia massa. ‘Ah, é aquela menina do clipe bonito’, pensei. E o tempo foi passando, e as reações de algumas pessoas em comentários quando me mandavam os links começaram a me deixar intrigada-barra-preocupada. Geralmente meninas, e novas, com um discurso de ‘credo, essa menina cantando sua música, ela fica aí mostrando o corpo, sendo vulgar’ etc, etc. Coisas desse tipo. Percebi que o que incomodava não era necessariamente o estilo, ninguém falava sobre mérito musical, cantou bem ou cantou mal, mas sim MOSTROU O CORPO. E até hoje, volta e meia alguém me escreve com esse papo. Sempre fui uma pessoa discreta, não curto expôr vida pessoal e nem sou afeita a ensaios sensuais; não por pudor, mas por sentir que a máquina patriarcal que opera esses mecanismos acaba sempre nos colocando como bibelôs à disposição- mesmo quando tenta nos convencer de que isso é exercer liberdade. Quando o fiz, procurei que fosse em um veículo no qual eu sentia que realmente esse exercício de liberdade estaria em primeiro plano. Enfim.

O que me deixou aflita e o que eu queria dizer para aquelas meninas que mandaram as mensagens é: NOSSO CORPO É NOSSO. Não deixe ninguém te dizer o contrário. Desfrute dele, assuma-o com a forma e tamanho que ele tiver, vivencie seu corpo- assumindo a responsabilidade que isso traz. Esse empoderamento é importante pra todas nós. Nós podemos usar a roupa que quisermos, podemos dizer o que quisermos, podemos ficar com quem quisermos, a hora que quisermos. Somos donas do nosso destino e estamos aqui para sermos felizes e nos sentirmos bem. O resto, meus amores, é só opressão.

Pra mim isso tudo é clichê de tão óbvio, mas achei que devia dizer. Um abraço carinhoso pra todas, suas lindas. E em tempo: um beijo, Anitta!”

Calma, calma, ainda não acabou. A agora loiríssima Anitta fez um show em Florianópolis e achou por bem agradecer o apoio da Pitty. “Fiquei muito feliz. Canto sempre porque amo as músicas dela. Pouca gente sabe, mas já fui roqueira. Já tive minha fase”, contou ela num papo com o portal Clic RBS. E ainda completou, falando sobre o lance do figurino mais ousado: “Acho que tem que acabar este preconceito. Não sou só eu que uso roupa curta. Tem espaço pra todo mundo”.

Anitta

Então, o que aprendemos com isso, crianças?

Muita coisa, meninos e meninas, muita coisa. Vamos começar pela questão das trincheiras que, por algum motivo, as pessoas gostam de criar entre gêneros musicais e que, por algum motivo, passam a fantasiar que também representam as posturas de seus ídolos, esquecendo claramente que ídolos musicais são seres humanos – e que seres humanos são criaturas multifacetadas. Porque foi isso que atraiu a imprensa nesta pauta, em primeiríssimo lugar. E foi assim que vi revestidas algumas mensagens indignadas nas redes sociais.

Automaticamente, a cabeça do fã de rock cria a ilusão de que a Pitty roqueira precisa necessariamente odiar a Anitta funkeira só porque ela toca funk. Vamos entender aqui uma coisa: em nenhum momento a Pitty disse que ama o som da Anitta – a Anitta, isso sim, disse que gosta da Pitty, que já foi roqueira. Desta última declaração, eu não duvido nada. Afinal, sons como Pitty, NX Zero, Fresno e afins são recorrentes nas rádios pop – goste você ou não. E fazem parte do imaginário pop do jovem brasileiro dos anos 2000. Faz sentido. Mas, enfim: não creio, até pelas oportunidades que tive de entrevistá-la e nas quais falamos longamente sobre influências musicais, que a Pitty seja fã do funk-pop da Anitta. Mas existe um detalhe importante chamado “respeito”. Agora, sei lá: vai que, de repente, a Pitty até gosta do “Show das Poderosas”. Não temos como saber. E aí? A Pitty ouvir Anitta faz dela menos rock? A Anitta tocar Pitty vai torná-la mais rock – ou, no caso, enfraquecer o rock da Pitty?

Sério mesmo que a gente ainda precisa conversar sobre isso em 2014?

Artistas são mais do que gêneros. Eles não podem e nem devem ser definidos pelos limites de um arquétipo babaca que ainda faz questão de sobreviver na cabeça de um ou outro neanderthal musical. Já passamos desta fase.

Alice Cooper já disse, podem ficar chocados, que gosta da Lady Gaga. Aliás, ele até já tocou “Born This Way” em seus shows. Gene Simmons, do Kiss, chegou a defender a irmãzinha linguaruda Miley Cyrus, disse que ela é divertida, tem talento e não merece ser perseguida pela imprensa deste jeito. E lembrem-se que o Rei do Pop, Michael Jackson, contou com a participação mais do que especial do mestre das seis cordas Eddie Van Halen na fodástica “Beat It”. O pop e o rock se cruzaram e continuarão se cruzando, sem quaisquer problemas, inúmeras vezes.

Quando os nova-iorquinos do Anthrax surpreenderam e mostraram seu apreço e seu respeito pelo rap ao juntarem forças com o Public Enemy para a clássica “Bring The Noize”, choveram críticas de ambos os lados, roqueiros e rappers, acusando ambas as bandas de serem traidoras. Elas se importaram? Nem um pouco. E abriram espaço para o que seriam uma tendência no futuro, leia-se por exemplo Linkin Park e Jay-Z, aplaudida pela outrora reticente crítica e pelos outrora enfurecidos fãs. O mesmo a gente viu acontecer mais perto, aqui no Brasil, quando Marcelo D2, mais conhecido pelo rock, prestou reverência em dose dupla, ao rap e ao samba, gerando olhares de desconfiança dos dois lados. Mas aquilo era a raiz do cara. Era verdadeiro, por mais que os haters clamassem aos quatro ventos que ele deveria ir se meter com as guitarras, que ali não era o lugar dele. D2 cagou, andou e brilhou.

Certa vez, escrevi uma matéria (da qual me orgulho muito, aliás) para o portal Whiplash.Net, especializado em rock, na qual conversei com diversos figurões do heavy metal e pedi que eles me respondessem uma única pergunta: quem ouve heavy metal ouve apenas heavy metal? O resultado foi esclarecedor. Airton Diniz, editor da Roadie Crew, uma das principais publicações de rock nas nossas bancas, confessou que ouve Lenine e Zeca Baleiro. Vitão Bonesso, lendário locutor da Rádio Backstage, curte Bee Gees. André Matos, a voz do Angra e do Shaman, gosta de A-Ha. Tim “Ripper” Owens, que já foi vocalista do Judas Priest e do Iced Earth, disse que ouve Celine Dion. O que isso diz sobre eles? Aliás, isso deve dizer alguma coisa sobre eles, pra começo de conversa?

Entenderam ou querem que eu desenhe? Nossos artistas têm muito menos preconceito do que nós mesmos. Porque, eis que seja feita a revelação sagrada, artistas não podem ter preconceitos.

Para encerrar esta parte do papo, deixo com vocês este vídeo da banda Rock Sugar. Espero que fique claro.

Mas existe ainda outra questão, querido leitor. Aliás, querida leitora. Porque é com você que vou falar.

Quando a Pitty diz para as meninas, em letras garrafais, “NOSSO CORPO É NOSSO”, e completa com “desfrute dele, assuma-o com a forma e tamanho que ele tiver, vivencie seu corpo- assumindo a responsabilidade que isso traz”, ela está só reforçando a impressão que me deixou quando batemos um bom papo ainda na finada AOL Brasil, aos risos.

Bastante atualizada e intelectualizada, desde sempre ela faz questão de deixar um exemplo positivo para as gerações de jovens meninas que acompanham o seu trabalho. Uma das perguntas que fiz, nesta conversa, foi sobre como ela se sentia estando sob os olhares atentos de admiração de toda uma geração de pré-adolescentes leitoras fiéis da revista Capricho, ainda em formação de suas personalidades. Ela se mostrou bastante preocupada e disse que toda vez que recebe, em seu camarim, uma menininha vestida como ela, bate um sentimento estranho. Ao mesmo tempo em que se sente lisonjeada, ela diz que sempre faz questão de deixar claro para a pequena: “você está linda. Mas você é linda. E eu quero que você seja você mesma. E tenha orgulho do que você quiser ser”.

A própria Pitty, aliás, já sensualizou na revista Inked e em vários outros ensaios de pin-up

A própria Pitty, aliás, já sensualizou na revista Inked e em vários outros ensaios de pin-up

Esta questão do julgamento sobre usar ou não roupas curtas, decotadas, reveladoras, nos leva a um outro ponto, aquele argumento bastante em voga nos furiosos e curiosos fóruns de julgamento das redes sociais. “Ah, mas ela estava usando uma saia curtinha. Ela merecia levar uma passada de mão” – com um final variante que pode ir de “ela merecia levar uma encoxada” até “ela merecia ser estuprada”, sempre com o arremate brilhante do “ela praticamente estava pedindo por isso”. Idiotas serão sempre idiotas.

Espero que fique claro de uma vez por todas que, assim como eu tenho direito de usar a roupa que quero (no caso, variações tediosas da combinação bermuda + camiseta de super-herói e/ou camiseta de uma das minhas bandas favoritas), qualquer mulher do mundo tem total direito de usar a roupa que bem entende. Eu posso achar bonito. Posso achar feio. Posso achar sexy. Posso achar vulgar. Foda-se o que eu acho. Porque quem tem que achar é ELA. Se eu sou um sujeito barbado, de 35 anos na cara, e estou pouco me lixando pro que você acha de mim porque estou com uma camiseta do Homem-Aranha, nenhuma mulher deveria se importar com o que diabos qualquer imbecil, de qualquer orientação sexual, de qualquer religião, de qualquer idade, deveria pensar sobre a altura da sua saia.

Se uma mulher quer sair de saia curta porque quer mostrar as pernocas, ela que saia. “Assumindo a responsabilidade que isso traz”, como disse perfeitamente a Pitty. Se a garota é gorda, gostosona ou magrela, mas está orgulhosa do corpo e quer mostrá-lo, pois que mostre. Uma roupa curta não é um sinal de “por favor, me coma”. Nem quer dizer “por favor, estou disponível, me passe uma cantada agora”. Um decote não é um sinal verde. Uma roupa pode ser um manifesto de quem você é, do que você pensa. Pode, é claro, ser uma arma de sedução, em determinadas situações e com alvos específicos. Mas pode também ser só uma roupa, aquela que você escolheu porque te faz sentir melhor. Pra mim, é uma camiseta velha do Edguy. Para uma menina, pode ser aquele shortinho. Pode até ser a camiseta dos Ramones. Tá tudo bem.

Anitta

Sou pai. De uma menina. Que, por enquanto, tem apenas 10 anos de idade. Mas que vai crescer. E vou ter que lidar com isso. Paciência. Pra mim. Não sei se vou lidar da maneira certa. Quero pensar que vou. Mas juro que vou tentar. Porque ela merece. E eu criei ela para isso. Para ter orgulho de ser quem ela é. Para ela poder escolher ser quem ela quiser. “Nós podemos usar a roupa que quisermos, podemos dizer o que quisermos, podemos ficar com quem quisermos, a hora que quisermos”, reforça a Pitty. Concordo. E quero que a minha menina viva num mundo assim.

Quer saber o mais impressionante desta história toda? Não gosto da música da Pitty. E não gosto da música da Anitta. Coisa de gosto musical mesmo, enfim. Mas, todavia, entretanto, contudo, sempre simpatizei com a pessoa física de ambas. Acho as duas divertidas, carismáticas, inteligentes, com personalidade, do tipo de pessoa, de mulher, que sabe o que quer. Já as tinha em bom conceito, de verdade. Agora, com esta história toda, ambas subiram ainda mais na minha escala. Isso é possível. Claro que é. Sempre é.

E em tempo: um beijo, Anitta!, e outro beijo, Pitty!

Pitty