Dá pra enxergar direitinho o Brasil a partir do ponto cego do Dead Fish | JUDAO.com.br

Urgente, certeiro e necessário, novo disco da banda capixaba chega quatro anos se posicionando, tomando partido e fazendo o que se esperava de uma boa banda de punk rock, afinal de contas

Falando sério, acho que já perdi a conta da quantidade de vezes que a gente disse por aqui que é pra pessoas largarem mão DE VEZ deste negócio de que cultura pop — música, cinema, quadrinhos — não se misturam com política. Mas quer saber? Chega a ser vergonhoso quando a gente escuta alguém cravando e cagando esta regra quando o assunto é um gênero musical tão intrinsecamente político, desde SEMPRE, quanto o punk rock.

Claro que quando surgiu AQUELE pôster pra anunciar a turnê nacional dos veteranos ianques do Dead Kennedys, a galera que sabe o tipo de DNA que o punk tem, que DEVERIA convergir com o rap, música de protesto, música de contestação, que olha de baixo pra cima, que dá porrada no opressor, música que não se cala diante da injustiça, música que vem da rua, da classe operária, dos becos, do trabalhador, das minorias, que dá voadora em nazista, não se surpreendeu. Mas quem tem fascistinhas como políticos de estimação, ah, este se doeu. E também quem simplesmente parece não entender muito bem sobre o que canta a banda — incluindo A PRÓPRIA BANDA. Ou pelo menos esta encarnação dela, né.

“Nós tememos pela situação dos brasileiros. Tememos pela Amazônia. Tememos pelas tribos indígenas que poderão ser massacradas”, bradou, ao saber da polêmica, ninguém menos do que Jello Biafra, o vocalista original do DK e compositor de alguns de seus maiores clássicos. “Nós não queremos que mais nenhum inocente morra como aconteceu com a Marielle Franco. Sim, a notícia de seu assassinato chegou até os noticiários americanos”, afirmou o cantor, atualmente à frente da banda The Guantanamo School of Medicine, fazendo questão de dizer que respeita quem se posiciona contra o atual governo brasileiro e seus “apoiadores fascistas metidos a valentões”.

Portanto, dá pra somar 2 + 2 e dizer que tenho absoluta certeza de que Biafra adoraria ouvir Ponto Cego, o mais novo disco de estúdio da banda capixaba Dead Fish. Afinal, este nono (ou oitavo, caso você NÃO considere Metrofire, de 2001, lançado sob o nome de Projeto Peixe Morto) exemplar da discografia da banda liderada por Rodrigo Lima não tem medo de se expor. De assumir um lado — no caso, um lado que diz que foi golpe SIM, que foi um grande acordo nacional com o Supremo e com tudo, com a cumplicidade das panelas. Afinal, como continua dizendo a letra da primeira canção de trabalho, “o lado certo da história não tem sangue nas mãos”.

Ponto Cego, disco que transforma a expressão que o batiza em parte da letra de 13 das 14 faixas aqui presentes, é quase um álbum conceitual. É uma obra nervosa, crítica, que fala aos berros, de fúria e de socorro, de angústia e indignação, sobre o Brasil de hoje, um Brasil de manchetes cada vez mais assustadoras, do qual saíram dos esgotos diretamente para as posições de liderança um bando de velhos homens brancos vestidos de seus preconceitos — e, tal qual aquela pequena área da retina em que não existem receptores de luz, nos querem colocar num ponto cego, no qual a gente simplesmente não consegue ver. Mas estamos vendo. Ou lutando pra ver.

Quem já é fã de longa data do Dead Fish, aliás, talvez se surpreenda com a crueza das letras, que falam de uma maneira bem direta, ou mesmo com a gana do vocalista Rodrigo Lima na hora de colocar tudo pra fora. Ele tá cantando com o estômago, com o modo full pistola ligado. Pobres Cachorros, por exemplo, é menos aquele rolê de HC ao qual estamos acostumados e mais uma porradaria que chega a flertar com um crossover thrash, enquanto ele berra sobre as coleiras com as quais o cidadão de bem desfila com os seus cachorros “de marca”, um fetiche autoritário sobre ter as coisas na “rédea curta”. Sacou o lance?

O baixo cavalgado e a guitarra violenta e pesada que introduzem A Inevitável Mudança, aliás, já deveriam dar a dica ao abrir o disco em alta velocidade, ao falar sobre a narrativa vinda do colonizador que tingiu de branco nossa história mas lembrando que “do ponto cego da história brotam vozes de resistência e de luta / quando o oprimido finalmente se expressa, o resto cala e escuta”. No fim, apesar dos pesares, é um disco que tem uma mensagem de esperança — ou, pelo menos, a esperança de que a gente não vai se calar.

Destaque para dois grandes momentos do disco: em Sombras da Caverna, eles retomam a alegoria da caverna de Plantão, sobre os homens presos na ignorância e no conformismo, que entendem as sombras como o seu mundo real e evitam buscar a verdade (a não ser que ela venham pelo WhatsApp, claro). “Só existe o que vê / E o que vê é só o que há”, diz a letra, que mais à frente completa: “o medo e a ambição / buscam um aliado / pra manter tudo igual / enfrenta fantasmas com munição”. Sabemos bem que fantasmas, de lençol VERMELHO, a galera presa na caverna acha que está enfrentando...

Ainda menos sutil, a faixa dedicada explicitamente ao nosso dignatário, Messias, é aquela que abre com “bom dia grupo!” e fala sobre um sacramentado salvador que na verdade é um “demagogo, há trinta anos nesse jogo e que agora é a salvação”, atuando “sem diálogo, nem projetos, dando graças ao ódio e ao medo”. Olha, se esta letra não é a definição perfeita da BALBÚRDIA que se desenha ao nosso redor, juro que nem sei dizer.

Sei lá se você gosta do Dead Fish. Isso, na real, pouco deveria importar num disco como esse, quase necessário nos dias sufocantes de hoje. É um álbum catártico, forte, sem rodeios, pra ouvir, pra berrar junto a plenos pulmões. Num momento tão esquisito, no qual vemos roqueiros DAZANTIGA mostrando uma bizarra face conservadora que em nada combina com o estilo musical que eles tocam, “ai, o politicamente correto, o mundo tá chato”, no qual certos punks ficam com medo de se posicionar e sobem no muro (ou, pior, pulam para O OUTRO LADO, o que faz menos sentido ainda), chega a ser uma benção que Ponto Cego exista e de alguma forma saia do underground e chegue ao mainstream, pra espalhar a mensagem e incomodar quem precisa.

Por favor, que não seja o único. Por favor, que tenhamos mais discos como este — coisa que o rap, insisto, NUNCA deixou de fazer. Discos de punk, de ska, de HC, de metal. Já passou da hora de colocar o protesto no volume 11. Porque o 10 não é mais o bastante.