Com um elenco maravilhoso, segunda temporada extrapola tudo que a primeira já tinha mostrado de bom, em um verdadeiro espetáculo profano que faz jus à obra original
SPOILER! “Quanto tempo vai demorar até que uns malucos como os da Westboro Baptist Church ou uma organização tipo One Million Moms vejam o episódio e resolvam fazer manifestação na frente da sede da AMC?”, disse ninguém menos do que eu mesmo, no texto sobre o season finale da primeira temporada de Preacher. Bom, vamos combinar que até que demorou — porque o tal One Million Moms só foi se dar conta da existência da série depois do SENSACIONAL episódio Dirty Little Secret, já na segunda temporada, que é quando descobrimos o momento em que Jesus perde sua virgindade e como ele deu origem à linhagem protegida desde então pela organização conhecida como The Grail.
Isso e o Humperdoo. ;)
Blasfêmia, heresia, absurdo. Os ativistas em defesa da moral e dos bons costumes, exigindo retratação do canal AMC, demandaram que Preacher fosse cancelada, brigando para que seus anunciantes pulassem fora o quanto antes ou seriam boicotados. Então... sim, a gente concorda com vocês em UMA coisa, One Million Moms: Preacher é uma série absurda, blasfema e herética. Mas é justamente isso que a transforma em um dos pontos altos da TV americana atualmente. Então, caso não tenha ficado claro, AINDA BEM que Preacher elevou consideravelmente seus graus de blasfêmia e heresia ao longo desta segunda temporada.
Obrigado, Seth Rogen e Evan Goldberg.
Se a temporada 1 foi uma espécie de “prólogo” do que acontece nos gibis, uma preparação para a busca de Jesse Custer por um Deus que abandonou os Céus e a humanidade de uma vez, este ano 2 que se encerrou nesta segunda-feira (11), é efetivamente a cristalização do trio caindo na estrada pra tentar descobrir onde diabos o Criador foi parar — e eis que eles acabam em Nova Orleans, seguindo a pista de que o pai de Jesus curte um bom jazz. E, além de encontrar palco para virar aspectos religiosos de pernas para o ar, a série também cometeu OUTRO tipo de heresia terrível, esta contra os fãs dos quadrinhos originais.
“Todos os personagens mudaram de maneira inesperada”, chegou a explicar Seth Rogen ao The Beat. “Não tem um único episódio que reflita 100% de uma história dos quadrinhos. Mas isso é o mais próximo que chegamos das HQs até agora”. É, gente. Preacher continua com todo o espírito dos gibis originais, não dá pra negar que isso é Preacher pra caralho, mas sendo corajoso o bastante para tomar as próprias escolhas, quase como uma versão do diretor, cheia de cenas deletadas, que tornam o material mais denso, amplo e rico.
É, sim, isso mesmo, cheguei onde vocês estavam imaginando e vou eu cometer a minha própria heresia particular: em MUITOS aspectos, a série consegue ser AINDA MELHOR do que os quadrinhos. Tenho certeza de que o próprio Garth Ennis concordaria comigo.
Em muitos aspectos, Preacher, a série, consegue ser AINDA MELHOR do que os quadrinhos
Se o Jesse Custer de Dominic Cooper é quase como 100% sua contraparte impressa, cada vez mais cínico e em negação de seu estranho papel como Messias nesta história toda, tanto a Tulip quanto o Cassidy foram suficientemente modificados, tornando-se versões turbinadas de si mesmos. Assim como rolou no ano 1, Ruth Negga rouba a cena, com parte do passado revelado para mostrar que, UFA, ela tá longe de ser apenas o interesse romântico de Jesse. Seu momento “quase morri, preciso entender o que caralhos aconteceu da minha vida” pós-Santo dos Assassinos, viciada em tomar tiros com um colete à prova de balas, é ao mesmo tempo esquisito, sensível e poderoso.
Já o Cassidy de Joseph Gilgun não é aquele vampiro canalha que todos amam odiar, mas sim um sanguessuga também tentando encontrar seu lugar no mundo, lutando contra seus instintos mais primais, numa busca própria dentro da jornada principal de Jesse. A relação com o despudorado filho Denis (Ronald Guttman), que exigiu ser transformado em vampiro para fugir da morte, ofereceu um charme próprio na trama, tornando Cassidy numa metralhadora de referências pop com um enorme coração, dando ainda mais camadas ao personagem.
No entanto, o grande segredo desta segunda temporada de Preacher esteve mesmo na seleção brilhante de coadjuvantes orbitando ao redor do trio. Dá pra começar falando, claro, da Lara Featherstone (Julie Ann Emery), agente disfarçada de doce e frágil vizinha abusada pelo namorado e que criou uma inesperada amizade com a Tulip — mas que, ainda assim, também construiu momentos de muita tensão entre as duas. A cada olhar trocado entre elas, mesmo no meio da cumplicidade de uma partida de videogame, você ficava esperando que acontecesse alguma coisa como o que enfim se completou no último episódio.
Tivemos a tão aguardada aparição do Santo dos Assassinos (Graham McTavish), a máquina de matar suprema. Ele é badass até a tampa? Conseguiu apavorar mais da metade do elenco? SIM. Mas o mais legal foi ver também o seu lado mais vulnerável, frágil até, mergulhando de cabeça numa backstory envolvente sobre sua família, explorando seus motivos e fazendo até o ultimate cowboy se ajoelhar diante do pastor. Assim como rolou com o Cassidy, é uma desconstrução bem da interessante, dando não só mais diálogos mas também mais personalidade. E, vamos lá, tornando-o ainda mais vingativo e ameaçador.
Tivemos até espaço para uma subtrama completamente nova do Cara de Cu preso no Inferno e tentando encontrar seu caminho de volta, convivendo com um bando de adoráveis (?) canalhas ali aprisionados e provando que esta versão é mais do que um fã babaca do Kurt Cobain que tentou dar um tiro na boca. É uma construção interessante esta da paixonite aguda em torno de um carinha que, a bem da verdade, era destinado a ser só o moleque de rosto deformado que pode gerar um monte de piadinhas de duplo sentido. Cê começa de verdade a se importar com ele, muito mais do que “nossa, olha só que bizarra a cara deste mano”.
E em pleno covil de Satã, aí veio a novidade: a presença de ninguém menos do que Adolf Hitler (Noah Taylor). Uma das muitas escolhas que inexistem nos gibis mas que, porra, Ennis poderia CLARAMENTE ter escrito, tanto quanto toda aquela história do mercado negro de porções de alma. Dá pra imaginar você chegando a ter um mínimo de pena da porra do Hitler? Dá pra pensar que você chega a torcer por sua redenção, pro cara enfim fazer algo de bom na vida (ou, bom, pós-vida), só pra depois ver que ele tava planejando alguma merda e pensar “putz, a gente precisa MESMO socar nazista e foda-se qualquer outra coisa”?
Pra completar, a cereja no bolo foi Pip Torrens como Herr Starr, no comando do Grail. Que personagem magnífico, igualmente escroto e divino. Sério. O jeito de olhar, o sotaque forçado, a postura de “não me abalo e não tô nem aí pro mundo”... Se a gente tentasse descrever o tipo de humor que uma série como Preacher tem, e putz tem muito, dava pra usar Herr Starr como exemplo. É um humor involuntário, do absurdo, do surreal. É um humor que não tem riso na tela. É o sujeito tendo a sua maior epifania justamente ao participar de uma simulação de estupro que termina com ele mesmo sendo estuprado, virando totalmente o jogo. É a sua frieza ao decidir como lidar com Custer depois que o cara usa a voz divina para mandar Starr enfiar as fitas com todas as suas orações no rabo. LITERALMENTE.
Quando o último episódio desta temporada chegou ao fim, deixou aberto um verdadeiro mar de possibilidades para o tal terceiro ano que ainda não foi confirmado oficialmente. Tem o papo do Santo dos Assassinos com Lúcifer em pessoa, tem o Hitler à solta pelo mundo de novo (poderia ele se tornar o anticristo que vai fazer Jesse repensar seu papel como Messias?), tem Herr Starr de posse daquele 1% da alma do pastor, o Genesis falhando e deixando Jesse na mão, a sua identidade exposta ao mundo, como uma espécie de super-herói pela redenção do COMBALIDO cristianismo, a descoberta de Deus como o tarado com roupa de cachorro (QUE MARAVILHOSO) e claro, tem a Tulip morta, né. Que é algo que a gente sabe que não vai durar, tudo bem, mas que vai nos levar enfim direto pra Angelville, pra lidar com a cruel avó de Jesse, Marie L’Angell, que aqui parece ter algum tipo profundo de envolvimento com magia negra, ao invés de ser apenas a tradicionalíssima e sádica matriarca de uma família de pastores tementes a Deus.
Dá pros caras ousarem muito ainda — e quando uma série consegue te fazer pensar “mano do céu, pra onde eles vão agora?”, é sinal de que tão acertando na mosca.
Tomara que a One Million Moms continue fazendo campanha contra. Tomara que o EmeBêÉle faça passeatas e queime os gibis originais. Porque aí é sinal de que um dos principais objetivos da arte e da cultura, que C E R T A S pessoas parecem ter convenientemente esquecido nas notícias dos últimos dias, terá sido plenamente atingido: INCOMODAR.
Que Preacher continue incomodando DEMAIS.