O mais roqueiro dos jazzistas ou o mais jazzista dos roqueiros?
Em meados dos anos 1960 existia uma rixa – ainda que indireta – entre o jazz e o rock. Enquanto os músicos de jazz se ressentiam de perder sua estabilidade nas paradas para os novos nomes do rock, como os Beatles e os Stones, os roqueiros se irritavam com o nariz empinado com que os jazzistas se colocavam diante deles, chamando-os de instrumentistas de segunda classe ou, na melhor das hipóteses, músicos inexperientes demais.
Se a partir de 1966/1967 o rock começou a incorporar – ainda que de maneira lenta, é verdade – elementos jazzísticos em sua alquimia, dando o pontapé inicial para o nascimento do que iria ser o rock progressivo, o jazz sofria com uma espécie de bloqueio em incorporar melodias ligadas ao rhythm´n´blues e ao folk, principalmente pelo fato de os artistas mais tradicionais – e parte da crítica especializada no gênero – pensarem que assim estariam dando um atestado público de que o estilo precisava de mudanças. Muitos achavam que essa união seria longa, gradativa e dolorosa.
Porém, coube a Miles Davis, de novo e mais uma vez, o pioneirismo e a ousadia de fazer essa união de forma radical, grandiosa e genial. Davis, cansado da mesmice estética na qual o jazz se encontrava, começou a estudar uma nova abordagem e uma nova forma de se apresentar para o seu público.
Em agosto de 1969, ele reuniu um grupo de talentosíssimos músicos e decidiu unir o jazz a elementos africanos, como o blues, o funk e um certo tempero latino. A partir daí nasceria um dos discos mais influentes, geniais e polêmicos da história da música. Bitches Brew seria responsável pelo nascimento de um novo estilo de jazz, o fusion, que por sua vez se constituiria em uma das principais influências de boa parte do rock progressivo da primeira metade da década de 1970.
Em seus quase 100 minutos, o que vemos é um artista despedaçando e reconstruindo um gênero musical de forma genial e poucas vezes vista. Temos a bombástica Pharaoh’s Dance e a antológica faixa-título, altamente introspectiva e com algumas explosões sonoras.
Vemos Miles utilizar o talento de seus músicos de forma quase obsessiva, seja na empolgante Sanctuary e, mais especificamente, em Miles Runs the Voodoo Dow, que mescla de forma impressionante o blues, o jazz e uma pitada de música africana quatorze minutos de pura magia sonora. Uma dica: fiquem atentos nessa faixa aos solos do sax de Wayne Shorter e do teclado de Chick Corea, absolutamente arrasadores.
O grande prazer de ouvir o álbum é perceber que Miles, além de só chamar instrumentistas de primeira linha, fazia muito bom uso deles, utilizando suas capacidades muitas vezes à exaustão. Dizem que na faixa John McLaughlin o excelente guitarrista cuja canção foi batizada com o seu nome ouvia poucas e boas de Davis por, na opinião do mestre, não estar explorando todo o seu talento.
Ao ser lançado, Bitches Brew causou um estardalhaço, tanto na crítica quanto no público. Ambos ficaram extremamente divididos, classificando o trabalho tanto de inovador e brilhante como de pretensioso e desnecessário. Apesar das controvérsias, ou por causa delas, Bitches Brew alcançou o top 10 norte-americano, vendendo mais de 500 mil cópias, um feito impressionante para um álbum de jazz.
Para o rock progressivo, o impacto não foi menor. Muitos músicos de prog rock (Robert Fripp, Robert Wyatt, John Wetton, Bill Brufford, Phil Collins, entre muitos outros) afirmam que Bitches Brew influenciou, e muito, a direção musical que seguiriam posteriormente.
Além disso, a própria cena progressiva viria a ser muito influenciada pelo fusion, com bandas incorporando elementos daquela nova e inovadora musicalidade em seu DNA. O King Crimson de 1972-74 e o Soft Machine pós-1970 são os exemplos mais evidentes.
Após Bitches Brew, Miles Davis ficaria ainda mais extremo, explorando em sua totalidade as possibilidades do fusion, lançando os excelentes On the Corner (1972) e Get Up With It (1974), além de fazer o caminho inverso e fazer o rock soar como jazz em A Tribute to Jack Johnson, de 1971.
Todos álbuns excelentes, porém sem o mesmo impacto comercial e cultural causado pelo disco de 1969, um verdadeiro divisor de águas em sua carreira.
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