Baseado na obra de Joe Hill (o filho de Stephen King), Amaldiçoado finalmente estreia no Brasil e traz um Daniel Radcliffe chifrudo sendo surpreendentemente MALVADO!
Deve ser dureza você ser filho de um cara que é considerado o melhor naquilo que faz (e não, não estou falando do Wolverine, viu Daken?). Você, para todo sempre, será comparado com seu pai – ainda mais se escolher seguir exatamente a carreira do seu progenitor. Quando você fala de Joe Hill, logo completa a frase com “o filho do Stephen King” (como eu também fiz, me julguem), afinal o cara só é tratado como “O” mestre do terror e um dos escritores mais populares do mundo.
E isso porque Joe ainda fez questão de esconder, durante algum tempo, que era filho do homem – evitando até utilizar o seu sobrenome ou qualquer coisa assim.
Na real, a única forma de você se desprender desse estigma é fazer um trabalho REALMENTE bom – ou, caso contrário, sempre vai ficar aquela impressão de que as coisas para “o filho do Stephen King” sempre serão mais fáceis. Honestamente, acredito que é o caso do livro O Pacto (Horns), cuja adaptação chega a alguns cinemas brasileiros com o título de Amaldiçoado (que, aliás, agora batiza também as novas edições do livro).
Bom, se King sofreu nesses últimos quarenta anos com um infindável número de adaptações pavorosas de suas obras para as telonas, o primeiro filme baseado no texto de seu filho ter ficado redondo é um alívio. A história é interessantíssima, os protagonistas são dois jovens atores — Daniel Radcliffe (sim, o Harry Potter!!!) e Juno Temple — e o diretor é Alexandre Aja, o mesmo de Alta Tensão, o filme que deu o pontapé inicial na nova safra do ótimo cinema gore francês.
Radcliffe dá vida a Ignacius “Ig” Perrish, um jovem DJ de uma cidadezinha vindo de uma família rica (o pai tocava trompete com John Williams e já foi até capa da Billboard), que namora a ruivinha boa moça Merrin Williams (Temple) desde o colegial, quando a conhecera em uma missa dominical.
Acontece que sua vida vira um inferno (literalmente) quando a garota é encontrada morta, após ser estuprada, e todos os indícios recaem sobre Ig, uma vez que eles discutiram feio na noite do crime e o sujeito não se lembra do que fez por conta de um porre homérico. Toda a cidade vai ficar contra o camarada, que conta apenas com a ajuda de seu amigo de infância, Lee Tourneau (Max Minghella), que será seu advogado de defesa, e seu irmão, o também músico de sucesso Terry (Joe Anderson).
Perseguido nas ruas, execrado, deprimido, remelento, estronchado, entregue às bebida e sem rumo após a morte de seu amor, durante uma fatídica noite Ig resolve blasfemar contra Deus em um altar construído para Merrin no local de sua morte. Ele dispara um caminhão de heresias e ainda dá uma bela duma mijada na imagem de Virgem Maria.
Na manhã seguinte, eis que ele acorda com duas saliências nascendo de sua testa e essas protuberâncias irão originar um comportamento peculiar em todos aqueles que falam com ele: a irresistível vontade de lhe contar todos seus segredos e desejos mais proibidos e doentios. Tipo o laço da verdade da Mulher-Maravilha versão UNCUT. E, além disso, misteriosamente todos que o fazem, se esquecem de ter se encontrado ou falado com Ig no momento seguinte que tiram os olhos de seus chifres.
Isso vale para a garota com quem ele transara na noite anterior (que pergunta se pode comer todas as rosquinhas da caixa e virar uma balofa, assim ele teria repulsa dela), a recepcionista do consultório médico (que fala poucas e boas para uma mãe que não consegue controlar sua filha histérica na sala de espera), o médico (que não quer lhe atender, pois prefere ficar louco de medicação e se masturbar pensando na amiga da filha de 16 anos) e até seus pais (que acreditam que ele é culpado, o odeiam e o desprezam pelo que fez com a garota, vivendo em um espiral de infelicidade até então, desejando que ele apenas sumisse).
O que seria uma verdadeira maldição, uma vez que todos começam a cuspir na sua cara todas as coisas horríveis que sentem sobre a vida, torna-se de grande utilidade quando, por meio de seus poderes, ele descobre que de alguma forma o seu próprio irmão pode estar envolvido no assassinato de Merrin e, a partir dali, passa a se beneficiar de seu altíssimo dom de persuasão e capacidade de incitar a maldade para tentar descobrir o que de fato acontecera na noite em que Merrin foi morta e quem é o verdadeiro assassino.
Aí entramos na dicotomia interessante em Amaldiçoado, que é abordada de forma até mais contundente no livro, que é literalmente você seguir aquele famoso provérbio popular: “tá no inferno, abrace o capeta”. Quando se passa a ser odiado por todos e sua vida está à beira do abismo, e certamente Deus te deu um chute nos fundilhos, ser o Diabo é mó da hora! :D
É o que sobrou para hoje, e você precisa abraçar essa essência, mesmo que suas intenções sejam das mais nobres. De repente, você se vê conseguindo extrair as piores fantasias e as maiores baixarias da alma humana, consegue usar seus poderes para manipular os outros a seu bel prazer, incitar a violência mesmo sendo um coroinha e vai alimentando um desejo efervescente de vingança. E ainda passa a ser seguido por um séquito de cobras peçonhentas, fica invulnerável ao fogo e descola UM TRIDENTE! Claro que você vai tocar o terror!
A alta dose de humor negro a partir do momento em que Ig abraça sua escuridão e começa a dar suas “dicas” e “conselhos” é deliciosamente divertida. Pelo menos o filme não tem medo de ser provocador e se você for um cristão hardcore, certeza que ficará chocado. Mas sempre haverá aquela dose habitual de maniqueísmo, que crava que você precisa encontrar a redenção e fazer o bem no final das contas, afinal, mesmo você sendo o Capiroto, ainda tem muito ser humano pior por aí, capaz de assassinar, estuprar e acabar com a vida de famílias inteiras.
A trilha sonora é esperta, indo de David Bowie a Pixies, com destaque para a excelente cena em que Ig incita um bando de repórteres a se degladiarem quando promete a exclusiva para o vencedor e, enquanto eles se arrebentam, de fundo ouvimos a versão de Personal Jesus de Marilyn Manson. Clichê, mas cai como uma luva.
Aliás, a sequência é toda incrível, em especial quando ele entra no bar e recebe as mais bizarras confissões e perversões de um bando de pinguços e do dono do estabelecimento que quer meter fogo na bagaça toda para ficar com o dinheiro do seguro e se mandar.
Claro que Amaldiçoado tem seus tropeços — como uma sequência final com um CGI tosco de baixo orçamento que dá toda aquela aura característica de filme B. Para quem não leu o livro, as reviravoltas na trama prometem ser chocantes e fazem você querer seguir em frente até seu desfecho, mesmo com toda a liberdade poética com relação ao texto de Hill, que farão os fãs do impresso torcerem bem o nariz, mas isso não atrapalha o resultado e o entretenimento em si. Haters gonna hate.
Mas talvez a grande contribuição de Amaldiçado seja a derrubada de dois “preconceitos”: descolar Hill do pejorativo subtítulo “filho de Stephen King” e descolar Radcliffe da imagem do “bruxinho de Hogwarts”, uma vez que você se regozija com a maldade de Ig Perrish. O sr. Radcliffe poderia muito bem ser mais um daqueles galãzinhos de Hollywood, colhendo os louros da cinessérie e partir para aqueles filmes adolescentes e comédias românticas, ou se tornar figurinha carimbada nos elencos dos blockbusters, mas não. Ele realmente é engajado no cinema de horror, estrelou recentemente o gótico e atmosférico A Mulher de Preto da lendária Hammer Films e será o ajudante corcunda e feioso do Dr. Frankenstein, Igor, em Victor Frankenstein, nova incursão nas telas do livro de Mary Shelley, previsto para este ano.
É a segunda vez que Aja pega um ator famoso por um personagem “mela cueca” e o subverte, mostrando a sua faceta de malvado. O eterno hobbit Elijah Wood, com aquela cara de meigo boboca, estrela o EXCELENTE (em letras garrafais mesmo) Maníaco, refilmagem de 2012 de um slasher série B dos anos 80, fazendo o papel de um psicopata assassino de mulheres e fetichista por manequins, cujo roteiro é assinado pelo seu fiel comparsa Grégory Levaasseur.
Então, fica aí a dica: se uma noite você dormir e acordar na manhã seguinte com um par de chifres na sua cabeça — e não, não estiver dentro de uma HQ de Mike Mignola — use-os com sabedoria, mas também apronte um pouco, porque como dizem por aí, o inferno está cheio de boas intenções.
E que deve ser divertido pacas ser o Coisa-Ruim nem que seja por um curto período de tempo, ah, isso deve.