Um novo livro de J. R. R. Tolkien vai sair em 2017 | JUDAO.com.br

Beren and Lúthien, nova obra derivada dos trabalhos do autor de O Senhor dos Anéis, fala sobre o amor entre um humano e uma elfa imortal

A última obra de J. R. R. Tolkien, Ferreiro de Bosque Grande, que não tinha relação com toda aquela mitologia da Terra-Média, foi publicada em 1967, seis anos de sua morte. Mais de 40 anos se passaram e seus rascunhos e textos continuam sendo reunidos e publicados (quase um por ano, na média) e em Maio de 2017 mais um entra pra lista de “obras póstumas de Tolkien”.

A editora HarperCollins vai publicar Beren and Lúthien, uma compilação de todas as versões do amor entre um homem da raça humana e uma elfa. Embora não traga textos inéditos, é a primeira vez que as diferentes interpretações da história serão apresentadas juntas. O próprio autor contou a história pela primeira vez em 1917, 100 anos antes, como Tale of Tinúviel, dentro da obra batizada de The Book of Lost Tales – a primeira edição de The History of Middle-earth, série de doze volumes, publicados entre 1983 a 1996, com material inédito editado por seu filho Christopher Tolkien, de 91 anos.

O que não falta é fã de Tolkien acusando Christopher de ser uma espécie de “aproveitador”, tentando arrancar o máximo de qualquer anotação perdida que encontre nas gavetas de seu pai. Mas é preciso ser justo aqui: desde a infância, quando ouvia o paizão contar as histórias sobre Bilbo Bolseiro que se tornariam O Hobbit, ele sempre foi não apenas um apoiador mas também colaborador da obra do seu PROGENITOR, ajudando a reinterpretar os confusos mapas da Terra-Média pra publicação dentro dos livros e sendo o que alguns estudiosos chamam de principal responsável pela existência do Silmarillion, o prólogo de Senhor dos Anéis (e a primeira das publicações póstumas). Há quem defenda até que, mais do que apenas editar e “costurar” o que existia da obra, ele acabou ajudando a escrevê-la.

tolkien_01Polêmicas à parte, o ponto aqui é que o jovem John Ronald Reuel retornou para casa no final de 1916, depois de servir ao exército inglês na França e sobreviver à chamada Batalha de Somme, na Primeira Guerra Mundial, uma fracassada tentativa anglo-francesa de romper as linhas de defesa alemãs ao longo do Rio Somme e que resultou em cerca de 500 mil combatentes mortos de todos os lados. Foi nesta época que ele começou a escrever The Book of Lost Tales — que, em seu retorno à Oxford, ajudaria a plantar as sementes do Silmarillion. Os moldes da história de Beren e Lúthien surgiriam justamente neste momento.

No entanto, a trama seria revista e “recontada” algumas vezes por ele ao longo dos anos seguintes, em verso e prosa, conforme foi ganhando conexões com a história maior sobre Arda que o escritor criou. Durante os anos 20, Tolkien começou a reescrever tudo e transformou no poema épico The Lay of Leithian. Nunca finalizada, a obra acabou sendo publicada em The Lays of Beleriand (1985), também parte do The History of Middle-earth. A versão mais recente, no entanto, é aquela contada em forma de prosa em O Silmarillion.

“Entre os contos de tristeza e de ruína que vieram até nós da escuridão daqueles dias ainda existem alguns em que mesmo chorando há alegria e, sob a sombra da morte, a luz perdura. E destas histórias, aquela que mais continua soando aos ouvidos dos elfos é o conto de Beren e Lúthien”, anuncia o próprio Tolkien no livro.

A saga depois foi recontada por Aragorn para os hobbits em A Sociedade do Anel, o primeiro volume de Senhor dos Anéis. Afinal, o romance serviu justamente de referência para a relação entre ele e sua amada Arwen, conforme descobrimos mais detalhes no apêndice da trilogia, The Tale of Aragorn and Arwen.

Basicamente, o que rola: o amor que Beren sentia por Lúthien, a mais bela dentre os Filhos de Ilúvatar, não era aprovado pelo pai da dama, um poderoso senhor élfico, que resolveu ordenar ao humano uma tarefa impossível como prova de amor para que ele então pudesse casar com sua filha. Acaba que o casal, junto, embarca na tarefa de roubar uma das ancestrais gemas dos elfos chamadas Silmarils, que está em posse de um de seus maiores inimigos, Melkor (mais tarde chamado Morgoth), aquele que se tornaria o mestre de Sauron.

O pai de Lúthien sabia bem o que estava fazendo: a ideia era usar os muitos perigos da jornada para mostrar que a vida mortal do camarada seria um obstáculo para a felicidade de ambos, já que a jovem de orelhas pontudas viveria para sempre. No fim das contas, Lúthien desiste de sua imortalidade e, quando Beren morre, ela toma uma iniciativa ousada: pede uma audiência com Mandos, um dos Valar (seres que acompanhavam o ser supremo Eru e que decidiram descer à Terra) conhecido como o Senhor dos Mortos, aquele que julga os espíritos dos elfos mortos e decide se eles vão retornar ou não à vida. Eis que ela canta para o guardião que, emocionado, toma uma decisão única em sua existência e permite que o casal retorne para Arda, os dois como mortais.

A união entre eles criaria a raça que todo bom jogador de RPG conhece bem como meio-elfo (Peredhil). Aliás, entrando no detalhe da genealogia tolkieniana, tanto Arwen quanto seu pai, Elrond, são descendentes diretos do casal Beren e Lúthien.

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Beren e Lúthien têm grande importância pessoal na vida de Tolkien, já que os nomes dos dois aparecem na lápide da sepultura que ele partilha com a esposa, Edith. Em uma carta escrita para o filho Christopher, quando entrou em reclusão depois da morte da amada, Tolkien afirmou: “É breve e simples [o epitáfio], a não ser por Lúthien, que tem para mim mais significado do que uma imensidão de palavras, pois ela era (e sabia que era) a minha Lúthien. Nunca chamei Edith de Lúthien – mas obviamente ela foi a minha inspiração para a história”.

Tolkien pai revelou ainda que o momento em que dividiu com Edith em uma pequena clareira na região de East Yorkshire inspirou o encontro entre o casal da Terra-Média nas clareiras ao lado do rio Esgalduin, no reino élfico de Doriath.

O novo livro, o mais recente de uma série de obras “redescobertas” desde a morte do escritor em 1973, abre com a versão mais antiga da história, além de reunir passagens das versões posteriores, com o objetivo de mostrar a evolução da trama e mostrar como ela foi mudando aos poucos. Tudo ricamente ilustrado por Alan Lee, inglês consagrado pelo trabalho com obras relacionadas ao Tolkien.

Beren and Lúthien sai exatos 10 anos depois de The Children of Húrin, o último título de Tolkien a respeito da Terra-Média a ser publicado, baseado em notas do pai de Christopher e que demorou quase 30 anos para ficar pronto. Além disso, chegaram a sair The Story of Kullervo (sua reinterpretação para uma lenda finlandesa), o poema The Fall of Arthur e sua tradução para o poema anglo-saxão Beowulf, aquele mesmo cuja mitologia influenciaria seu próprio trabalho em Senhor dos Anéis.

Tolkien se tornou um monstro, devorado por sua própria popularidade e absorvido pelo absurdo dos tempos nos quais vivemos hoje

Imagino o que você deve estar pensando: Beren and Lúthien tem todo o potencial para ser a próxima adaptação de Tolkien para os cinemas, certo? A história, de fato, caberia como uma luva num filme de fantasia. Mas é melhor não contar muito com isso: Christopher, que controla o legado de seu pai, está longe de ser fã dos filmes de Peter Jackson. Em uma rara entrevista concedida ao Le Monde, ele conta que recusou um convite para conhecer o diretor e reclama de ter visto a obra de seu pai ser diluída, transformada em um “filme de ação para jovens entre 15 e 25 anos”.

“Tolkien se tornou um monstro, devorado por sua própria popularidade e absorvido pelo absurdo dos tempos nos quais vivemos hoje”, afirma ele. “O abismo entre a beleza e seriedade de seu trabalho e aquilo que se tornou simplesmente me esmagou. O senso comercial reduziu a estética e o impacto filosófico da criação à nada. Existe uma única solução para mim: virar o rosto para o outro lado e ignorar”.

Deixo, no entanto, uma pergunta no ar aqui pro Christopher, que é leitor fiel do JUDÃO, inclusive assinante lá no Apoia.se: quando Beren and Lúthien chegar às livrarias, será que grande parte dos milhões de pessoas que foram aos cinemas ver estes “filmes de ação” não vão se interessar pela leitura justamente por já terem experimentado um primeiro contato com a mitologia? Até 2007, os livros de O Senhor dos Anéis já tinha vendido mais de 150 milhões de cópias em todo o mundo desde o seu lançamento oficial, entre os anos de 1954 e 1955. Mas um 1/3 deste número foi adquirido justamente a partir de 2001, quando saiu o primeiro filme baseado na obra...

Portanto, será que o monstro não acaba alimentando a si mesmo? A pensar. ;)