Que bom que alguém teve a coragem de aprovar uma série como Legion | JUDAO.com.br

Que pena que vai acabar. E que bom que vai acabar.

SPOILER! A segunda temporada de Legion se encerrou não apenas com o protagonista David Haller se sentindo traído por todos que ama ao se descobrir as monstruosidades das quais é capaz e, portanto, assumindo uma postura mais “vilanesca”, mais próxima de sua contraparte nos gibis (inclusive FISICAMENTE, dado o penteado exótico) e que o coloca exatamente no papel de responsável pela destruição no futuro sombrio que se avizinha. E quem leu um tanto das HQs dos X-Men sabe que misturar o Legião com viagem no tempo pode dar ruim, né?

Com este cenário em mente e considerando que finalmente teremos a aparição do pai de David, o Professor Charles Xavier, nesta terceira e última temporada da série, dá pra imaginar que o primeiro episódio já seria um desbunde total e completamente inspirado nos gibis, certo? David putaço, lutando contra as múltiplas personalidades que enfim começam a surgir de maneira mais visceral, virando a mente de todo mundo do avesso, uma explosão de imagens aterradoras? Errado. E ainda bem.

Na verdade, a gente que conhece um pouco dos meandros desta indústria do entretenimento sabe o quanto é difícil que roteiristas e produtores tenham real liberdade, quando trabalham para grandes conglomerados, de pisar verdadeira fora daqueles limites do ~aceitável. E nas raras vezes em que isso acontece, estamos falando de um passo milimetricamente testado e aprovado por todas as instâncias legais. Justamente por isso, nesta época em que adaptações de gibis pros cinemas e pra TV são produtos que valem ouro, é surpreendente que exista algo como Legion.

Este primeiro capítulo da jornada é RIGOROSAMENTE o que se espera da série: nada. Mas não entenda isso como uma coisa ruim, bem pelo contrário. Eu não fico esperando nada de Legion. E nem você deveria.

Eu quero que tudo continue estranho, esquisito, insondável e imprevisível. E a trama começa com viagem no tempo? Claro que sim. Com superpoderes? Também, vejam só, e com direito a umas sequências até bem das interessantes. Mas o clima não poderia continuar sendo mais distante do que qualquer coisa que se tenha visto dos mutantes fora dos gibis até hoje.

Se fosse comparar com algo, taaaaaaaaaaaaaaaaalvez pudesse ser com a lisergia de X-Statix, a loucura multicolorida de Peter Milligan e Mike Allred. E ainda assim, com ressalvas.

A gente tá falando de um episódio com um objetivo claro: mostrar que David sumiu e está sendo caçado por seus antigos parceiros, que pra piorar tudo estão contando com a ajuda da entidade milenar que atende pelo nome de Rei das Sombras. Mas o telepata superpoderoso tem um plano — e sua busca via meios “alternativos” por alguém que viaje no tempo já dá uma vaga ideia de que planejamento seria este.

Também estamos falando de um episódio que dedica um bom tempo a apresentar, em seus próprios termos obviamente, uma nova personagem chamada Switch, com um visual pop que lembra bastante a Jubileu. Seria ela uma mutante ou não? Um estudante oriental nos EUA que escuta fitas K-7 para ajudá-la em seu treinamento sobre viagens no tempo, alguém que escuta o chamado de David nas ondas de um rádio antigo, que  “desenha” portas no ar para então poder caminhar num corredor aterrador e assombrado mas que permite que ela acesse “portas” rumo ao passado.

Tudo isso é Legion. Assim como também é Legion um episódio nada linear que dedica quase 20 minutos a mostrar a verdadeira piração psicodélica que é o mundo fora do mundo que David criou para se esconder, uma mistura de culto com comunidade hippie setentista, colorido, hipnótico, chapado e cheio de fumaça azul. Tudo apresentado na maior vibe de videoclipe ao som de Something For Your M.I.N.D., do grupo indie pop Superorganism — cujos integrantes, aliás, participam do episódio cantando a música. Logo depois, a trilha já te engata 2000 Light Years From Home, dos Rolling Stones, que só ajuda a reforçar a ideia de que este homem construiu quase como uma realidade paralela para abrigar sua comunidade de devotos, todos conectados dentro da sua mente.

“Confiança? Ah, já experimentei isso e não deu certo. Agora prefiro ler as mentes das pessoas mesmo”, diz ele em sua primeira conversa com Switch. Os demônios em sua mente parecem tê-lo mesmo convencido de que seus poderes fazem dele um Deus, que não precisa se desculpar com ninguém, cuja mente fraturada não precisa de ajuda, que tá realmente tudo bem manipular as pessoas e usá-las como bem entender. Inclusive a mulher que ele dizia que amava.

David está longe de ser aquele SUPERVILÃO de gibis, bwahahahahahaha. E é isso que o torna mais único, humano, perigoso, assustador. Sua vulnerabilidade por trás de todos os poderes quase divinos. Seu desespero. É isso que o torna um antagonista muito mais letal do que um Magneto da vida. Porque ele foi total e completamente subvertido. E não sabe bem como lidar com isso. E nem a gente.

Como eu disse no meu texto sobre o final da temporada anterior, o showrunner Noah Hawley sacou aqui é que não precisa te dar todas as respostas de uma vez e, se bobear, nem precisa te dar TODAS as respostas. O que importa é a jornada. A experiência. A exploração dos sentidos. E fazendo isso, claro, usando um visual cada vez mais lindo e uma linguagem narrativa poética que nem sempre é fácil. Que por vezes é dolorida. Cansa, até.

Legion vai acabar. E isso é triste. Mas este primeiro episódio é o prenúncio de que ainda bem que Legion vai acabar. Porque vai contar a sua história do jeito certo, como deve ser, começo-meio-fim, sem exageros, sem esticar, sem forçar a barra, sem a necessidade de penduricalhos e acessórios. E que bom que existe alguém no mundo que aprovou a existência desta série. Tomara que sua caneta esteja disposta a aprovar muitas outras com este tipo de pegada. De atitude. De essência.

Por enquanto, no entanto, vamos ver pra onde David (ou Noah) vai nos levar.