Os dois lançamentos mais recentes do quarteto britânico expõem lados distintos do grupo, igualmente interessantes mas para públicos BEM diferentes
São poucas as bandas de rock que conseguem a proeza de transitar tão bem pelo cenário da música pop, cair no gosto da galera mais mainstream que nem de rock gosta originalmente e, ao mesmo tempo, continuar sendo queridas pelos roqueiros mais cabeça-fechada. Uma destas honrosas exceções é justamente o Queen, que colocou no mercado mais dois álbuns póstumos bem interessantes – embora com objetivos e públicos-alvo bem distintos.
A coletânea dupla Queen Forever, que não tem exatamente o selo de aprovação dos integrantes remanescentes Roger Taylor, o baterista, e Brian May, o guitarrista (sempre lembrando que o baixista John Deacon está há anos afastado do mundo da música e dos negócios do grupo), não pode ganhar um adjetivo que não seja “fofa”. São basicamente 36 baladas. Isso mesmo. Músicas lentas, graciosas, versando essencialmente sobre “amor” (entenda isso, obviamente, das maneiras mais abrangentes que puder). Tem pelo menos nove faixas com “love” no título, aliás. E se a gente extrapolar isso e tentar contar quantas mencionam “love” na letra, putz, aí a marca atinge quase 100% de aproveitamento.
Para os colecionadores mais hardcore, o disco já valeria por trazer pela primeira vez o dueto perdido de Freddie Mercury e Michael Jackson em There Must Be More To Life Than This e a versão com a banda completa para Love Kills – aquela gravada originalmente apenas por Mercury para a trilha da versão sonorizada de 1984 do clássico do cinema Metropolis. Só que não se deixe enganar por esta faceta mais calma, mais pop e “domada” do Queen. O álbum é repleto de música pop de qualidade insuperável. Difícil ver, nos dias de hoje, alguém que consiga cantar uma balada com o coração mais rasgado e aberto do que Mercury fazia.
Quer uma boa balada, peça para o Queen.
Estão lá as óbvias Who Wants to Live Forever e Love of My Life (claro!), passando ainda pelo doce sabor country de ’39, pelo piano tristonho de Is This The World We Created...?, pela alegrinha You’re My Best Friend, pela agitada e irresistível Crazy Little Thing Called Love e pela sofrida Made in Heaven (que potência ganha a interpretação do vocalista nesta faixa). Destaque também para Too Much Love Will Kill You, talvez uma das letras mais tristes da carreira da banda, cantada de tal forma que revira a alma de qualquer ouvinte com um mínimo de sentimento.
Queen Forever não é lá celeiro de grandes novidades para quem tem outros discos dos caras, mas pode ser bom ponto de partida para iniciar quem se lembra dos caras apenas por We Are The Champions e está disposto a experimentar um pouco mais. Em suma, é a trilha ideal para deixar rolando naquela festa de família, com os seus tiozinhos chatos que dizem que rock é coisa do demônio. Se eles não entenderem inglês, tá tudo bem, vai rolar numa boa e ninguém vai reclamar.
Aí, corta pra 1974. É a mesma banda. Mas aqui o bicho pega. Estamos falando de Queen: Live At The Rainbow ’74, raro registro ao vivo de duas apresentações com ingressos esgotados que Mercury, May, Deacon e Taylor fizeram na casa de shows londrina Rainbow Theatre. O primeiro foi a coroação da turnê de seu segundo disco, Queen II, no mês de março. Já o segundo rolou em novembro, como parte da série de shows de lançamento do histórico Sheer Heart Attack.
Este é o Queen rumo ao seu auge, com sangue nos olhos, querendo mostrar a que veio, buscando solidificar um espaço ganho a duras penas nos anos anteriores. Ainda não vieram os anos 1980 e 1990, nos quais a formação encaixou uma dezena de hits fáceis nas paradas. Justamente por isso, talvez Live At The Rainbow ’74 fale mais aos ouvidos de seus fãs mais fiéis e/ou dos roqueiros mais old school do que efetivamente ao paladar de quem espera We Will Rock You ou Bohemian Rhapsody – que, vejam, são ótimas músicas. Mas caminham para um lado diferente, mais produzido, mais cristalino. Não é o caso desta versão setentista do Queen.
Aqui o lance é mais ganchudo, mais sujo, mais hard rock, mais guitarra. Por sinal, as guitarras de Brian May são de longe as protagonistas do disco – o solo que o sujeito faz no meio de Son and Daughter é lindo, para se ouvir ajoelhado e louvando. Em Flick of The Wrist, então, putz, ele faz a festa e comanda a performance dos outros três. Claro que o Queen não é o AC/DC e tampouco o Motörhead, não vamos exagerar. Ainda é o Queen e sim, a sua assinatura sonora pode facilmente ser ouvida ao longo de toda a audição. Mas é muito diferente escutar a límpida A Kind of Magic, por exemplo, e uma piração sonora como Ogre Battle, repleta de quebradeiras, com um gostinho progressivo e fartas doses de improviso. Não dá pra comparar. É outro Queen.
Recomenda-se fortemente aumentar ainda mais o volume na versão cheia de energia de Keep Yourself Alive (com direito até a um solo de bateria de Taylor, normalmente discreto em seu kit, no meio da canção), que no show da Sheer Heart Attack Tour ainda emenda de maneira imbatível com Seven Seas of Rhye e Stone Cold Crazy (porra, esta trinca tinha que ter sido obrigatória até o fim da vida do Freddie, na real).
Por falar nele, menos agudo e mais rasgado, mais agressivo até, Mercury também brilha neste ao vivo, já que era no palco que ele se agigantava ainda mais. No controle da plateia, carismático e bem-humorado, cheio daquela ácida e saudável ironia inglesa, é no disco 2 que se escuta in loco o cantor soltando a clássica frase “gostaram desta luva? Foi um presente do diabo em pessoa”, ao exibir um acessório cravejado de diamentes. Mercury sendo Mercury. <3
Talvez o cramulhão tenha algo a ver com a história mesmo, aliás. Porque se Queen Forever é o retrato do lado mais angelical destes quatro sujeitos, em Live At The Rainbow ’74 eles provam que estão com o diabo no corpo. Ainda bem, vamos combinar. O Queen é uma banda tão boa que consegue ser múltipla e ainda sobrar qualidade pra todos os gostos.
Porque todo mundo tem seu dia de anjo e seu dia de demônio, não é?