Piloto da nova série do canal CW prova que não apenas ela tem vida própria e personalidade de sobra pra se sustentar sozinha como também tem elementos que, de alguma forma, fariam MUITO bem aos seus irmãos de canal
Depois de assistir ao episódio INAUGURAL de Black Lightning, a adaptação para as telinhas do super-herói Raio Negro, dá pra entender COMPLETAMENTE a insistência dos produtores e executivos do canal CW em reafirmar que esta série não faz parte do chamado Arrowverse. E é impossível não concordar. Tipo assim, MUITO — e isso vindo de um cara que assiste — e, na maior parte dos casos, até gosta bastante — às quatro séries produzidas por Greg Berlanti e seu time.
Black Lightning é realmente algo muito diferente. Não apenas o tom é outro, passando muito longe, para o bem e para o mal, da caixinha redutora de “série de super-herói” (e isso não é julgamento de valor algum, bom deixar claro); mas também tem uma série de questões que o próprio Arrowverse poderia e DEVERIA adotar para dar um salto ainda maior de qualidade.
Veja, Arrow, The Flash, Supergirl e Legends of Tomorrow têm elencos bastante diversos, formados não apenas por negros, mas também por latinos, gays e um monte de mulheres em papéis de destaque. Isso é absolutamente louvável, ainda mais quando, num momento como este em que vivemos, o crossover do ano entre eles deixa alienígenas de lado e bota todo mundo pra socar um bando de nazistas. Só que, apesar de abordar eventualmente questões como preconceito, é tudo bem mais leve, sutil, delicado, nas entrelinhas. É um jeito de encarar as coisas.
Mas Black Lightning chega pegando BEM mais forte e, nos minutos iniciais, já esfrega racismo e intolerância na sua cara, mostrando sem frescuras e rodeios que foi um episódio de violência policial causado apenas e tão somente pela cor de sua pele que faz Jefferson Pierce, um diretor de escola há muitos anos afastado da “carreira” de vigilante, acordar o Raio Negro dentro dele mais uma vez. Tudo ao som de um rap pesado e sem papas na língua.
Tem ação, tem drama, tem superação, tem até mesmo espaço para um pouquinho de humor, na medida certa; mas tem, principalmente, uma cota considerável de banho de realidade.
Jefferson não é o jovem de 20 e poucos anos descolado e moderninho que a gente vê na lista de protagonistas habituais do CW. Tamos falando de um cara passando dos quarenta, cuja atuação impensada como super-herói causou o seu divórcio — de uma mulher que ainda ama de todo o coração.
Diretor de uma escola que tenta a todo custo manter longe da criminalidade, da corrupção e do clima de tensão racial que toma conta das ruas (basicamente, dá pra dizer que sua cidade-natal, Freedland, é uma espécie de Ferguson dominada por uma gangue chamada The 100), ele quer manter os detectores de metal fora dos portões e longe de seus alunos (“Você sabe quantas destas crianças têm pais que foram para a prisão, tios, tias, primos? Isso não pode virar uma outra prisão para eles!”, defende ele). Ao mesmo tempo, Jeff tenta manter o bom relacionamento com as duas filhas, a engajada Anissa, que cobra que o pai esteja mais próximo de seu próprio povo; e a jovem Jennifer, viciada em redes sociais e em busca de ser apenas e tão somente uma garota comum em seu grupo de amigos.
Este núcleo, familiar, no fim, talvez seja outro dos grandes trunfos do que a série apresentou assim, de imediato. Diferente do menino William, filho de Oliver Queen em Arrow, as meninas não são meras coadjuvantes, aqueles NPCs que servem de reféns pro grande vilão da semana. São duas personagens importantíssimas não apenas por conta de sua própria personalidade, mas também porque impactam diretamente nas escolhas de Jefferson, em especial naquela de voltar a vestir o diacho do uniforme mais uma vez, ainda que a contragosto.
Porque ser “pai”, aqui, é tão fundamental pro Raio Negro quanto ser “super-herói” ou “um homem de cor”. São estes três pilares, tão fundamentais, que formam o protagonista de Black Lightning e o desenham como algo que, se existisse no Arrowverse, o tornaria ainda mais rico e mais diverso.
Se a gente for mal comparar Black Lightning com Arrow, a mais urbana das quatro séries cunhadas por Berlanti, Freedland é um mundo muito mais cinza do que Star City e, justamente por isso, muito mais verdadeira, muito mais próxima de cada um de nós. Assim como Jefferson, o sujeito carismático e cheio de camadas o suficiente pra você decidir que quer ser o melhor amigo dele cinco minutos depois que a série começa. É quase como se fosse um Arrow rolando basicamente nos Glades e com o detetive Quentin Lance com superpoderes como personagem principal. Meio isso. Só que misturado com uma versão ainda mais pessoal e intimista do Black Lives Matter.
Tem trovões e relâmpagos, raios disparados pelas mãos, olhos brilhando, luzes piscando, uniforme praticamente em neon? Claro que tem. Mas as manchetes que os apresentadores televisivos de Black Lightning mostram poderiam estar tranquilamente na SUA televisão neste exato momento.
“Eu desenhei a série pra refletir um pouco da minha vida”, afirmou o criador Salim Akil, durante a edição 2018 do evento da Television Critics Association. “Jefferson já é um super-herói para aquela comunidade. Ele é o diretor da escola, ele é pai. Isso me deu uma oportunidade de falar sobre coisas muito próximos para mim. Cresci em um lugar como Freeland, cercado por coisas que se vê lá, em Chicago e em Oakland. Veio naturalmente. Isso é o que conheço e isso é o que eu quero fazer se tornar real. Vamos fazer ser autêntico”.
E fizeram. MUITO.
Num mundo que terá em breve nos cinemas o filme do Pantera Negra, primeiro herói negro a atingir o universo mainstream dos gibis americanos, faz sentido que a série do Raio Negro, primeiro herói negro da DC Comics, chegue causando este tipo de impacto.
Com ou sem crossover previsto no futuro (a julgar por este episódio, tudo que penso é “não, gente, não precisa, vai”), fica a lição para os colegas de Star City, Central City, National City e demais cidades ficcionais do Arrowverse: o mundo real, aqui, no lado de fora, é um lugar tenso pra se viver.