Um dos filmes brasileiros mais importantes dos últimos tempos, este microcosmo do Sertão nordestino que representa todo um país chega no momento em que mais se precisa dele, com muitas camadas gritando para serem ouvidas
Se tem uma coisa que fatalmente você vai ler em praticamente todos os textos a respeito de Bacurau, aguardadíssimo e premiadíssimo filme brasileiro que chega aos cinemas esta semana, é que ele é uma obra de muitas camadas. Tamos falando de uma trama que vai mudando ao longo da narrativa, que te pega de surpresa e vira tudo quando se menos espera — eu fiz, por exemplo, o exercício de assistir ao filme SEM VER o trailer que, dizem, é bem ruim, e foi maravilhoso de tudo. Mais do que dizer que se trata de um filme de gênero, porque isso ele é claramente em alguns momentos, a gente pode dizer que é um filme de GÊNEROS, assim mesmo, no plural.
“Isso é proposital e foi muito estudado dentro da estrutura do roteiro. Ele inclusive começa como algumas pessoas esperam que um filme brasileiro de ambientação rural comece. Acredito eu que já existem vários elementos de estranheza ali”, explicou pro JUDAO.com.br o diretor Kleber Mendonça Filho. O outro cineasta que assina a película, Juliano Dornelles, completa que esta sempre foi a vontade dos dois, desde o início. “Sair do filme pensando no filme e querendo voltar pro filme, é algo que a gente quer fazer, porque é deste tipo de filme que a gente lembra”.
Os dois me contaram que um empolgadíssimo Alejandro González Iñárritu chegou pra eles, gesticulando e berrando, chamando Bacurau de “guacamole de gêneros”, talvez uma das mais maravilhosas definições que eu já ouvi pra um filme, sem sacanagem. Pensa no tanto de coisas que dá pra se misturar com guacamole, tanto na hora de fazer quanto na hora de comer? Agora acrescenta coentro e talvez uma bela duma dose de pimenta. Tá feito. Toma aí Bacurau, pra saborear sem moderação nenhuma.
Em teoria, Bacurau se passa em uma distopia, mas você já percebeu como todas as nossas referências, hoje em dia, vêm de distopias? Rola também uma pitadinha até de ficção científica se você prestar bastante atenção, é um faroeste cheio de sotaque e de personagens intensos, ambientado numa pequena cidade fictícia no Sertão pernambucano, longe de tudo e de todos, que sofre com seus dramas internos mas principalmente com a falta d’água e com os maus tratos de um prefeito que mal sabe que pessoas vivem ali. É uma cidade que se ajuda, que se vira com o que tem, com o que consegue. É uma população que entende as suas raízes, que as respeita, que as vive a cada dia e que jamais aceitaria que gringo nenhum, seja ele de fora do Brasil ou mesmo do Sul/Sudeste, venha dizer como viver ou lidar usando de seus imensos privilégios.
E é neste último ponto, cara, que Bacurau acerta na mosca. Um filme mutante que, em suas muitas viradas, em suas diversas transformações, acaba falando sempre sobre resistência. Bacurau não é apenas uma Canudos-pós-moderna que toma a pólvora em mãos e faz as pazes com a lembrança dos cangaceiros pra garantir sua segurança. Mas também é um pequeno retrato de um Brasil interiorano, simples, longe das grandes capitais, que ergue a cabeça e resiste à barbárie que lhe é invariavelmente destinada. É, aquela mesma, que você anda vendo todos os dias nas manchetes. Não é apenas um filme sobre tiros e sangue. Mas sobre a cultura que corre nas nossas veias e como é ela que nos fortalece.
Bacurau é resistência e sobre como não apenas a arte pode ser usada para resistir, mas também sobre como resistir, isso sim, também é uma forma de arte.
Em determinado momento do filme surgem os americanos, todos brancos, na história. Eles falam inglês e causam uma disrupção completamente maluca na trama e em como você a percebe até aquele momento — e não demora nem cinco minutos pra que você perceba o quanto aquela gente é escrota e você quer que eles se fodam. Assim, muito, de verdade. Com força.
De maneira inteligente, os diretores se dedicaram na metade anterior da história a te mostrar o povo de Bacurau. Te fizeram conhecer o professor que leva a criançada descalça pra ver o avião cruzando o céu e transforma isso numa aula. Te mostraram sua filha, a enfermeira que traz remédios de fora pra distribuir pra população, e o sujeito que leva bala mas continua dirigindo o caminhão-pipa que traz água pra galera. E te fizeram sorrir com o doce senhorzinho que faz a melodia de tudo com seu violão meio blues, meio baião.
Aí, quando você percebe já está apaixonado por aquele povoado, já se identificou com aquele lugar, com a sua gente, não importa qual seja a sua origem. Quando você percebe, já se sente parte de Bacurau e quer lutar por ela também, torce por aquela galera toda, um elenco enxuto e magnífico, um grupo verdadeiro, natural, que não tem diálogos ensaiados, do tipo jogralzinho, que nosso cinema mais ~comercial parece adorar. Você logo já tá amando eles e querendo mandar os gringos todos tomarem bem no olho dos seus cus.
Bacurau é uma pobre cidade de nordestinos, negros, mulheres, gays, prostitutas, assassinos. Todos ali, misturados, sem julgamentos. É um microcosmo de minorias tratado como nada, que pode tranquila e literalmente ser varrido do mapa e que ninguém vai sentir falta. Bacurau é o Sertão do Nordeste mas podia ser qualquer periferia do país, podia ser Capão Redondo ou Cidade de Deus.
A violência tá lá no filme e não é coisa pouca não, viu? Como é (e tá ficando cada vez mais) a vida aqui do lado de fora, aliás. Mas este filme tem tantas camadas e merece ser visto tantas vezes que você vai sacar que a violência não é SÓ violência. É orgulho, é gente diferente se unindo pra dizer “aqui não, bicho”. É resistência metafórica e também muito real. Resistência que vem na forma do silêncio, que vem da música, que vem da festa, que vem do escárnio, que vem até da sutileza do olhar meio injetado de uma Sônia Braga maravilhosa, totalmente despida daquela sensualidade latina a ela sempre atribuída. Tudo isso é resistência em Bacurau.
Tudo isso é dedo no gatilho.
Bacurau, enquanto ideia, nasceu em Novembro de 2009. Imagina que tamos falando de um filme que, se ainda estivesse no papel nos dias de hoje, procurando uma ajuda de incentivo, tinha MUITA chance de nem acontecer. “Eu nunca imaginaria isso porque, de maneira inocente, achava que um país estaria sempre avançando. Não era parte dos planos entender que um país pode voltar, dar marcha à ré”, afirmou Kleber Mendonça. “Não voltar e neste momento estar discutindo censura, o que não é uma discussão. Eu tenho medo de daqui a pouco voltar a ter cigarro em avião, por exemplo”.
Olha que eu não duvido, viu? Já passei a não duvidar de nada com relação às portas que um bom tanto da população teve as manhas de abrir para deixar sair o que existe de pior do esgoto humano. Mas, pulsando de cada uma de suas muitas camadas, esta é a principal mensagem de Bacurau: eles se acham muito maiores, melhores e, bom, eles têm poder o suficiente pra achar isso mesmo. Eles querem nos esmagar. Dá vontade de fugir, de gritar, de desistir. Mas eles não sabem da força que esta gente toda tem. A vontade de resistir. De dizer NÃO.
Eu não conseguiria agradecer mais por este filme. “Obrigado” é pouco pela força que ele dá, pela injeção de coragem, por nos fazer querer continuar, no mínimo, enxergando o absurdo, sem aceitar, sem deixar que nos enfiem uma aceitação forçada goela abaixo.
“Se for, vá na paz”, diz a placa que recepciona os recém-chegados à Bacurau. E é hora de entendermos o tipo de paz que estamos buscando. E a que custo.