Uma história sobre mulheres. Feita por mulheres. | JUDAO.com.br

Uma produção que funciona incrivelmente bem entre tantos ENFADONHOS e repetitivos filmes baseados em quadrinhos

Entre os óbvios problemas do filme do Esquadrão Suicida, Harley Quinn, interpretada por Margot Robbie, surgiu como um diamante não lapidado que merecia ser tratado com mais carinho. Sorte nossa que Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa caiu nas mãos de Cathy Yan, uma diretora de produções independentes com apenas um longa-metragem na carreira (Dead Pigs, de 2018).

Depois de terminar a complicada relação com o Coringa, Harley ainda está sofrendo com o fim do relacionamento e tenta se ocupar em outras atividades, como entrar para um time de roller derby e fazer novas amizades. Sem contar para qualquer pessoa que não existe mais nada entre ela e Palhaço do Crime, Harley goza de uma vida sem limites, já que a relação lhe trouxe certa segurança no mundo exterior. Quem poderia revidar todo o caos que ela é capaz de fazer com medo de sofrer retaliação do maior pesadelo de Gotham? Ninguém.

Até que, durante uma bebedeira, Harley acredita que é o momento certo para finalmente se libertar do passado e toma uma atitude que poderia ser drástica para qualquer outra pessoa: lançar um caminhão na fábrica de produtos químicos onde o relacionamento começou. Com esta declaração MUITO pública, todo mundo percebe que a jovem vilã está sozinha e desprotegida e, a partir daí, ela descobre que é odiada por uma quantidade considerável de pessoas, incluindo Roman Sionis, conhecido como Máscara Negra, que estabelece um preço pela sua cabeça.

Se sentindo em real perigo pela primeira vez em muito tempo, Harley é forçada a formar novas alianças com outras mulheres que também buscam suas próprias emancipações: Dinah Lance, a Canário Negro (Jurnee Smollett-Bell); Helena Bertinelli, a Caçadora (Mary Elizabeth Winstead); e a Detetive Renne Montoya (Rosie Perez), que trabalha no Departamento de Polícia de Gotham e está justamente montando um caso contra Sionis.

A história acaba sendo muito sobre a própria Harley – o próprio design de produção de KK Barrett reflete muito a loucura visual e multicolorida personagem -, mas a roteirista Christina Hodson inteligentemente soube usar a melhor forma para desconstruir o que todo mundo sabia até então sobre ela. Enquanto em Esquadrão Suicida toda sua personalidade gira em torno do relacionamento com o vilão do Batman, Aves de Rapina expande Harley narrativamente e lhe dá novos traços de personalidade essencialmente dela.

Entre diferentes pulos temporais, Harley nos guia pela história daquele jeito caracteristicamente insano da personagem, com o primeiro ato do filme refletindo muito bem sua personalidade. Com a trama sendo contada pelo seu ponto de vista, inegavelmente a personagem ganha mais destaque, já que é ela que nos explica as principais informações sobre o restante do elenco. O primeiro ato é de tirar o fôlego, mas a história se acalma depois de um início tão frenético quanto a própria Arlequina.

Quando ela percebe que a solidão é uma fraqueza, eis que chama atenção para si mesma e aumenta o nível de caos, exatamente como o próprio ex-namorado. Mas ninguém a teme. E isso força Harley a perceber que nenhum homem da cidade está disposto a protegê-la. E quem melhor para protegê-la do que ela mesma?

Depois de fracassos em um passado não tão distante, a DC precisou reinventar seu universo e introduzir novas ideias e profissionais em seus filmes. Usando seu poder como estrela e produtora, Margot Robbie foi capaz de garantir que Aves de Rapina tivesse uma equipe criativa em grande parte preenchida por mulheres e a diferença é gritante, principalmente porque o foco são as personagens e não seus corpos. De forma bastante surpreendente, a Warner Bros e a DC entregaram um de seus atuais ativos mais lucrativos para Yan, mostrando que existe a necessidade de não apenas VER mulheres em tela, mas também de vê-las CONTANDO essas histórias sob o seu ponto de vista.

Claramente, existiu um cuidado em criar cenas de ação que estivessem de acordo com as habilidades e estrutura corporal de cada personagem. Elas sabem lutar e se defender – as sequências de pancadaria são meticulosamente encenadas -, mas nada sobrenatural acontece e isso é ótimo. Enquanto nos acostumamos a ver determinados personagens fazendo acrobacias irreais nos cinemas, é refrescante ver duas pessoas lutando dentro das suas capacidades. Importante dizer que algumas destas cenas são bastante gráficas, mas essa violência se torna uma pintura nas mãos do diretor de fotografia Matthew Libatique.

Inexplicavelmente, existe um peso nos filmes protagonizados por personagens femininas que, curiosamente, não existe nos filmes protagonizados por homens. Enquanto nos acostumamos a ver histórias de homens imperfeitos, muita gente espera o modelo feminino perfeito no cinema, algo que não existe na vida real. Nem toda história precisa ser um exemplo para alguma coisa e ninguém reclama que falta personalidade em 99% dos protagonistas masculinos em filmes de ação, certo? Aves de Rapina apresenta mulheres imperfeitas e diferentes entre si com desejo de encontrar seu caminho em um mundo dominado por homens abusivos.

Sem dúvida, Aves de Rapina será um filme divertido para os homens, mas muito mais significativo para as mulheres. Durante o período de pós-separação, Harley faz escolhas que todas as mulheres já fizeram depois de um término: fica miseravelmente bêbada, corta o cabelo – e se arrepende – e vive sua vida da forma como quer depois de muito tempo. Algumas situações podem não fazer qualquer sentido para os homens, mas vão encher o coração das mulheres, como a cena do prendedor de cabelo, um exemplo perfeito da cumplicidade feminina.

Criando um mundo colorido e eletrizante, Yan conta uma história digerível sobre a forma como as mulheres lidam com traumas, abuso e a real ameaça de violência masculina. Nenhum personagem masculino desse filme é confiável, porque todos abusaram das mulheres de diferentes formas, seja de forma física, psicológica e até corporativa. Com todos esses elementos juntos, Aves de Rapina funciona incrivelmente bem em meio a ENFADONHOS e repetitivos trabalhos no cinema baseados em quadrinhos. Porque, acredite, você não viu nada tão divertido, colorido e FANTABULOSO antes.