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14 de outubro de 2019
El Camino

Vaya con Dios

Breaking Bad poderia ter continuado por mais uns 2 ou 3 anos, mas acabar quando acabou, onde acabou e como acabou é parte de porque ela é, hoje, um mito de como contar uma história. Alguém então pensou que dava pra espremer um pouquinho mais de suco dessa laranja…

Pra muita gente, Breaking Bad é a série perfeita.

É concisa, tem pouquíssima gordura, vai direto aos pontos, sempre realizando milagres narrativos que englobam as crises emocionais dos personagens, o envenenamento moral de suas ações, as surpresas e viradas da trama. E faz tudo isso com baldes de humanidade, sendo horrível (no bom sentido), injetando humor negro e catarses intensas em cada esquina. O criador, diretor e principal roteirista Vince Gilligan tem um domínio sobre ritmo e estrutura que é raro, e junto com o elenco lendário da série, é responsável por muito do prestígio que a mídia TV tem hoje em dia no mundo da ficção serializada. E parte desse talento é expressa na sabedoria de quando parar.

Breaking Bad poderia ter continuado por mais uns 2 ou 3 anos? Poderia. Mas acabar quando acabou, onde acabou e como acabou é parte de porque ela é, hoje, um mito de como contar uma história. Ela amarra todos os nós e nos liberta, junto com Pinkman, de estarmos aprisionados pelo fascínio monstruoso que Walter White rogava em nós.

Alguém então pensou que dava pra espremer um pouquinho mais de suco dessa laranja.

El Camino é escrito e dirigido por Gilligan e responde uma pergunta que pouca gente fez. O que aconteceu com Jesse Pinkman logo após a aparente morte de White? Pouca gente fez essa pergunta porque, por mais simbólica que fosse aquela imagem final de Pinkman, acelerando e gritando que nem um louco, ela era mais do que o suficiente. Pinkman está livre, Walter conseguiu desfazer pelo menos um de seus inúmeros terrores. Fim.

Só que, mesmo desnecessário como El Camino é, o que acontece quando quem está atrás e na frente das câmeras faz um trabalho excelente?

O distanciamento que tivemos da série, que acabou seis anos antes do lançamento desse epílogo, trabalha a favor de como assistimos ao dito cujo. Reencontrar Jesse, no exato momento em que o deixamos, tira um pouco do nosso conforto e nos prepara bem para essa jornada curta e simples.

As duas horas de filme se dividem entre o Jesse do final da série, em busca de dinheiro e de certas resoluções emocionais, e o Jesse do passado recente, quando ainda estava preso pela gangue de Jack, enquanto descobrimos um pouco mais sobre os horrores que ele passou naquele ano. Por exemplo, num flashback, acompanhamos Jesse numa pequena tarefa, ajudando Todd (Jesse Plemons, continuando sua jornada para ser um dos atores mais interessantes da geração) a resolver um problema doméstico.

É nesses momentos que Vince Gilligan se mostra um ótimo e sorrateiro roteirista. Cada flashback está lá para estabelecer um elemento concreto dessa jornada final de Pinkman, mas ao mesmo tempo ajuda a entender o lugar onde ele se encontra psicologicamente no presente. Pinkman passou um ano sendo torturado por uma gangue violenta, e seu stress pós-traumático, assim como sua desenvoltura para sair de enrascadas, é mais do que contemplada. Temos mais do que um thriller com um personagem em conflito, temos um acesso a esses conflitos e como eles se formaram na cabeça de Jesse. E isso pode até ser considerado “normal” para um filme desse tipo, mas é feito com muito mais elegância do que a média.

El Camino é um exemplo de estrutura enxuta e propulsão fervorosa, especialmente com o ritmo de suas revelações e de como nos sentimos engasgados a cada passo, exatamente como durante as cinco temporadas de Breaking Bad. Mas sem Aaron Paul dominando a tela, nada funcionaria. É quase irônico lembrar que o personagem de Jesse Pinkman foi criado para morrer nos primeiros episódios de Breaking Bad, e o trabalho de Paul para convencer Gilligan de que aquele era um personagem para ficar.

Aqui, a naturalidade com a qual entra nos abismos onde Pinkman vive cativa e assombra. Pinkman sempre foi o personagem com o qual muitos de nós mais nos identificamos, pelo menos porque era cada vez mais complicado querer entender (ou pelo menos, admitir a nossa proximidade) com o orgulho venenoso de Walter. Paul sempre foi um dos que mais brilhou no elenco de Breaking Bad, e isso não é pouca coisa. Levou três Emmys e um monte de outros prêmios pra casa. Seu trabalho em El Camino é, basicamente, o porquê de ver o filme, sem mencionar ainda os momentos de flashback em que Paul tem que encarnar um Pinkman em outras vibes. São duas horas ao longo das quais Gilligan mistura a intensidade e a catástrofe do bom e velho “tudo deu errado, e agora?” com momentos contemplativos, com Aaron Paul exorcizando demônios.

Mesmo contando uma história da qual não precisávamos, é ainda uma das melhores coisas que o Netflix produziu. E se nada mais prestasse, ainda conta com uma última demonstração da grandeza de talento de Robert Forster, ator espetáculo que faleceu no mesmo dia em que El Camino foi lançado, de maneira que é triste que a composição final tenha um elemento de realidade em sua melancolia. Mas essa é a natureza da vida. Sofrimento vai, sofrimento vem, sofrimento fica pra trás. E quem de nós consegue uma segunda chance tem mais é que acelerar rumo ao horizonte.

Jesse Pinkman nos envolveu em sua busca por um caminho exatamente por causa dessa busca por um caminho, e não há como negar que se despedir desse amigo, por horas estúpido, por horas genial, mas sempre humano, que mantivemos nessa jornada toda de metanfetamina e máfia mexicana, traz uma alegria agridoce.

Skinny Pete diz que sempre quis ter um “El Camino”.

Quem nunca?