Um filme que já nasce clássico: O Irlandês é espetacular | JUDAO.com.br

Netflix financia uma obra prima de Martin Scorsese, que respira cinema do começo ao fim

Sem qualquer possibilidade de um argumento em contrário, Martin Scorsese é definitivamente um dos maiores e mais importantes diretores da história do cinema. Não é difícil enxergar que seu mais novo e esperado filme, O Irlandês, trata-se de uma continuação das temáticas abordadas pelo diretor ao longo de sua extensa carreira ao mergulhar no submundo da criminalidade e nos mostrar uma imagem abrangente e assustadora da miséria social e a MESQUINHEZ americana. Não se engane, a corrupção social vai além de qualquer organização criminosa e se espalha por outros ambientes, mostrando homens que contornam e/ou quebram regras em seu próprio benefício, seja dentro da máfia, no sindicato ou própria política norte-americana.

Baseado no livro I Heard You Paint Houses, escrito pelo autor e ex-investigador norte-americano Charles Brandt, O Irlandês segue Frank Sheeran (vivido por Robert de Niro) recordando sua jornada pelo submundo da máfia da Filadélfia quando trabalhou para a família criminosa Bufalino. Agora idoso, o veterano da Segunda Guerra Mundial reflete sobre sua ascensão na organização criminosa, sua relação com a Irmandade Internacional de Equipes e o envolvimento no desaparecimento de Jimmy Hoffa (interpretado por Al Pacino), em 1975, presidente do sindicato e seu amigo pessoal.

Brilhantemente, O Irlandês desconstrói todos os mitos criados por Hollywood – algo que inclui o próprio Scorsese – nos filmes sobre máfia, ao oferecer uma visão diferente e muito menos sedutora da organização criminosa. Enquanto os maiores clássicos do gênero criaram uma imagem de irmandade, fidelidade e família, Scorsese retira qualquer glamour que esse universo poderia ter ao mostrar que alianças conflitantes e amigos íntimos podem ser mais perigosos que inimigos declarados.

Não seria nada surpreendente se surgir uma nova geração de thrillers criminais menos românticos depois de O Irlandês.

Ao mostrar o perigo dos ciclos de violência, O Irlandês revela que Sheeran desenvolveu uma insensibilidade à vida humana ao participar de inúmeros massacres e execuções sumárias de prisioneiros alemães durante a Segunda Guerra Mundial – a expressão “pintar casas”, uma referência ao título das suas memórias, se tornou um eufemismo para matar pessoas com tiros na cabeça e manchar as paredes de sangue. Isso não significa, porém, um banho de sangue explícito, a violência de O Irlandês é perturbadora por ser sóbria e pessoal.

Enquanto Sheeran narra de um ponto de vista bem no centro de alguns dos principais crimes da sua época e revela até participação em alguns outros, O Irlandês também traça um caminho pelos principais e mais significativos eventos entre as décadas de 1960 e 1970, criando uma ligação entre a podridão social, econômica e política dos anos turbulentos que mudaram os EUA.

O Irlandês é recheado de remorso sobre um homem que descobre tarde demais o que perdeu com suas escolhas, mesmo não acreditando que arrependimento signifique alguma coisa. Apesar de Sheeran ter sobrevivido para contar sua história, o filme nos lembra de maneira literal que nem todos tiveram a mesma “sorte” ao descrever rapidamente em legendas na tela as mortes de alguns mafiosos que o protagonista encontra pelo caminho.

Nesse caso, sobreviver é mais importante que arrepender-se.

Com um elenco formado por atores veteramos que conhecemos exatamente o que são capazes de fazer, todos entregam interpretações impecáveis do começo ao fim. As cenas entre De Niro e Pacino são hipnotizantes e a experiente câmera de Scorsese sabe exatamente para onde apontar. Mas é Joe Pesci como Russell Bufalino que domina a tela, ao representar o centro moral da máfia. Sendo uma figura civilizada, sagaz e curiosamente empática que entende o meio em que está, ele está longe de ser um líder explosivo ou um vilão impiedoso. Mas mesmo com suas falas calmas e suas ponderações, ele sempre nos lembra que ainda é um chefão da máfia.

Por ser uma história que se expande por décadas, a produção usou efeitos digitais para rejuvenescer os atores veteranos e existe uma questão física óbvia que dificilmente um computador consegue esconder e vai além de um rosto mais jovem. A própria personalidade de De Niro era mais energética quando o ator era mais novo, mas a diferença não incomoda.

Talvez o principal desafio de O Irlandês seja convencer parte do público à sentar em uma cadeira por 210 minutos, o que é, curiosamente, apenas 28 minutos a mais do que Vingadores: Ultimato. A magistral edição da parceira de longa de data Thelma Schoonmaker é precisa em adicionar apenas o que é fundamental para a narrativa. Claro, você pode imaginar que essa história poderia ter sido contada de forma mais sucinta mas, se isso acontecesse, esse não seria um filme de um preocupado Scorsese em criar um design geral complexo com uma longa teia de acontecimentos, pessoas e universos que se encontram em uma narrativa impecável.

Em tempos em que parte da indústria cinematográfica e até da opinião pública apontam o Netflix como o maior inimigo moderno do cinema, o serviço de streaming foi o único estúdio disposto a entregar um cheque de US$ 160 milhões para Scorsese fazer uma obra prima que respira cinema do começo ao fim. Se te vendem que o streaming é o fim do cinema, apenas diga que foi um serviço do tipo que bancou O Irlandês, mais um filme impecável do diretor que já nasce clássico.