Watchmen de Schrödinger | JUDAO.com.br

Primeiro episódio da série produzida por Damon Lindelof poderia ser ou não inspirado na obra de Alan Moore. Poderia ou não ter aquelas dezenas de pequenas referências. Tanto faz. Ainda assim, seria um BAITA ponto de partida para uma história NECESSÁRIA.

E enfim Watchmen virou série de TV, tão prometida e discutida, cortesia do showrunner Damon Lindelof. Da HBO, ainda por cima, que, você sabe, não é exatamente TV, “é HBO”.

A série começou de maneira corajosa e sem amarras, retratando a Rebelião Racial de Tulsa, “um conflito racial de grande escala ocorrido entre 31 de Maio e 1 de Junho de 1921, onde os brancos atacaram a comunidade negra de Tulsa, em Oklahoma”, como reporta a Wikipedia equivocadamente, já que foram mais de 800 feridos, 6000 presos, 1256 casas queimadas e 10000 negros desabrigados. Entre os mortos, a contagem oficial de 39, mas a verdade é que podem ter sido cerca de 300.

Não dá pra chamar de “conflito”, afinal de contas.

Foi bastante curioso assistir a esse primeiro episódio, intitulado It’s Summer and We’re Running Out of Ice e perceber que o espírito de Watchmen está sim ali, conforme prometido. Só que, na real, nem precisava estar.

Watchmen, a HQ original de Alan Moore e Dave Gibbons, é apenas e tão somente pano de fundo. O passado aconteceu, é canônico, tá inclusive virando série dentro daquele universo, mas o futuro no qual chegou é um caminho diferente, único. É 2019, só que funcionando de outro jeito, com Robert Redford, ele mesmo, na presidência lá nos EUA. Mas ainda é 2019. Com o ressurgimento de um bando de supremacistas brancos chamados assim mesmo, de “racistas”, como se deve chamar, e tratados do jeitinho que deveriam ser tratados tanto lá, mundo ficcional, quanto cá, vida real.

Tem uma porrada de referências nos bastidores, que fazem um baita sentido pra quem leu os quadrinhos? Porra, claro que tem. E referências que, talvez, devem se aprofundar nos próximos episódios, Jeremy Irons magnífico como Adrian Veidt, Doutor Manhattan em Marte. Nos pôsteres, nas manchetes de jornais, na tela da TV, na simbologia do relógio, na nave policial que é idêntica à do Coruja, na bandeira do Cargueiro Negro. Tá tudo lá, pra quem quiser (ou conseguir) ver. Mas é uma segunda camada. Porque a história funciona direta e reta pra quem não é leitor. Como deveria ser. Porque este Watchmen de Schrödinger pega, tal qual o texto de Moore, na veia não por falar de super-heróis, mas por usá-los como estereótipos pra falar de VIDA REAL.

A principal inspiração de Watchmen, a série, não é uma história em quadrinhos. Mas sim o mundo que se desdobra ao nosso redor, cruel para leitores e não-leitores. Por igual.

Ambientar os passos iniciais da série em Tulsa, numa pequena comunidade, para depois ampliar o escopo para o restante do mundo foi uma sacada genial — assim como se focar em personagens inéditos e não nos Minutemen que protagonizaram as páginas dos gibis. Regina King, aliás, que mulher maravilhosa, que policial mascarada cheia de pequenas nuances, que escolha magnífica para liderar o elenco. É nas pequenas coisas que se vai, aos poucos, desvendando o tamanho real do que gira ao nosso redor.

Um mundo no qual a polícia se vê forçada a esconder o rosto pra se proteger e proteger quem amam, tal qual acontecia com os heróis uniformizados de outrora em suas identidade secretas, o mundo no qual ela se vê forçada a fingir que vive uma vida paralela fora da força policial, a doce dona de uma padaria que vai à escola dos filhos contar como é seu dia-a-dia e levar cookies... Mas não é isso que ela é de verdade. Estamos falando de uma mulher que foi perseguida e teve que se reinventar por trás de uma máscara.

Ou na frente dela.

Máscaras que, aliás, também são o símbolo da chamada Sétima Kavalaria — e qualquer semelhança com a Ku Klux Klan, tanto pelo K quanto pelo título militar de Nathan Bedford Forrest, fundador e primeiro grande líder do grupo, não são meras semelhanças. E o fato de eles se inspirarem no rosto em eterna mutação de Rorschach, o detetive violento e quase Batman (entenda isso como você quiser) que circulava o submundo do crime nas páginas dos quadrinhos, faz TOTAL sentido. Mas se Watchmen não fosse o pano de fundo aqui, este bando de monstros certamente encontraria eco no Coringa, em Tyler Durden, no Capitão Nascimento até, em qualquer personagem que justificasse suas ações sem precisar entender ou colocar qualquer questão em CONTEXTO.

Isso te lembra alguma coisa?

Watchmen não tenta ser fácil, didática, te contar ou explicar item a item da história. Isso você vai pegando aos poucos, entre diálogos, como um espectador comum e não como alguém que a narrativa precisa tratar como alguém especial a ser guiado pela mão. É um ótimo exemplo de história seriada, já que, mesmo que durante apenas um episódio, a evolução dos personagens e da própria história é paupável. Fosse uma série de serviço de streaming, dificilmente pararíamos nesse primeiro episódio; ao mesmo tempo, que bom que não o é, já que teremos uma semana pra pensar, conversar e absorver.

Pr exemplo, aquela chuva de lulas, pesadelo de tanta gente por aí. Pois é. Ela realmente faz mais sentido para quem leu o gibi — ou, pelo menos, faz EM PARTES. Mas, sinceramente, ali tem muito mais de Magnólia, do non-sense transformado em senso comum, com o que deveria ser assustador e bizarro tornado recorrente e familiar, do que efetivamente daquele monstro tamanho-família que o Ozymandias tornou um ameaça alienígena externa (devidamente referenciada e questionada, aliás) para tentar unir a humanidade.

Metáfora, minha gente. Que cabe como uma luva.

It’s Summer and We’re Running Out of Ice, dirigido por Nicole Kassell (o que, como apontou Ava DuVernay em seu twitter, é algo infelizmente e sem qualquer sentido raro logo de cara em algo tão ACLAMADO) é aquele tipo de episódio que te surpreende, que não poupa esforços, que te pega pelos calcanhares e te faz ficar pensando “por favor, que eles mantenham o clima, que a coisa toda continue de assim”. E eu digo mais: por favor, que os produtores não cedam à tentação. Que Watchmen continue sendo apenas e tão somente o que se pode ler na segunda camada. Que os produtores e roteiristas, sob a batuta do Lindelof, deixem o fantasma de Alan Moore para trás.

Começou bem, Lindelof. Começou MUITO bem.