Bem menos gracinha e bem mais combativa: uma contradição chamada Hebe Camargo | JUDAO.com.br

Cinebiografia de uma das mais icônicas apresentadoras da TV brasileira evita a caricatura e se foca de maneira inteligente num período muito específico de sua vida, fazendo com que o filme se torne tristemente atual

Olha só, quando a gente fala de “cultura pop”, imediatamente pensa em Marvel, DC, Star Wars, a porra toda do pacotão Made in USA. Mas é fato que a NOSSA cultura pop também é foda. A cultura pop dos programas de auditório, das novelas, da literatura de cordel, do repente e da embolada. E eu simplesmente amo quando a cultura pop brasileira olha pra si mesma e resolve celebrar seus próprios ícones — afinal, complexo de vira-latas pras cucuias, a gente também tem histórias incríveis pra contar. Mas melhor ainda é quando roteiristas e cineastas resolvem fugir do óbvio, ir pra trás das cortinas e mostrar outros lados destas pessoas que embalaram nossas manhãs, nossa infância, indo além do personagem que todo mundo conhece.

É exatamente este o ponto no qual Hebe – A Estrela do Brasil, cinebiografia da icônica apresentadora que chegava a rivalizar em termos de popularidade com o próprio Silvio Santos na programação do SBT, acerta no alvo. Teria sido muito fácil trazer alguém que simplesmente imitasse a diva platinada, seus trejeitos, a voz falando por entre os dentes, a coisa toda do “gracinha”, que replicasse seus bordões. Afinal, ela é alvo de humoristas há décadas, tanto quanto o próprio Silvio, a Dercy Gonçalves ou um Lula da vida. Mas o diretor Maurício Farias preferiu uma intérprete gabaritadíssima como Andréa Beltrão. Alguém que não partisse pro lado da caricatura e sim realmente ENCARNASSE a pessoa de verdade por trás das jóias, do laquê e dos figurinos extravagantes. Uma Hebe que chora sozinha dentro do banheiro.

A Hebe da Andréa é o grande acerto do longa porque a atriz rouba a cena tranquilamente, sem esforço, incorporando uma Hebe Camargo cinquentona sem precisar repetir conhecidos trejeitos forçadamente mas ainda assim transbordando todo o requinte e bom humor da apresentadora, com a dose certa de carisma e o tempero adequado de exagero, num flerte entre o luxo e o brega — uma linha fina que marcou a essência da retratada desde sempre.

A Hebe da Andréa, aliás, é um RECORTE da Hebe. Porque o roteiro de Carolina Kotscho não optou por contar a história da vida da Hebe. Não a vemos pequenina, sua infância humilde em Taubaté, o início da carreira como cantora de rádio, a chegada à TV, o primeiro marido, o nascimento do filho. Nada disso. Aqui, o trecho da trama mostra a chamada Rainha da Televisão Brasileira já no segundo casamento, com o empresário Lélio Ravagnani. Estamos falando de uma veterana, que já estava há mais de 15 anos em atividade na telinha — mas que não vinha vivendo uma boa fase na Rede Bandeirantes. Embora encarasse problemas de verba e quisesse não apenas uma plateia maior mas também a volta da sua orquestra de acompanhamento, na verdade o grande inimigo da Hebe naquela época atendia por outro nome: CENSURA.

Faz todo o sentido que Hebe – A Estrela do Brasil chegue neste momento aos cinemas brasileiros, pois vemos a apresentadora, ali por volta da metade dos anos 1980, sofrendo com a ameaça velada dos censores. “Ué, mas ainda tem censura no Brasil?”, se pergunta ela, no camarim, ao ser “aconselhada” a não levar um humorista que interpreta uma personagem feminina ao palco, no mesmo dia da apresentação dos Menudos. O tal conselho, claro, partiu de cima. Muuuuito de cima, é preciso dizer. Mas Hebe era, antes de qualquer coisa, uma mulher de personalidade. Fugia dos roteiros, improvisava, falava o que bem entendia — e, como se tratava de uma atração ao vivo, sua atitude de quem não aceitava ordens de ninguém deixava os diretores de cabelos em pé.

Ao levar nomes como Dercy Gonçalves, uma verdadeira metralhadora de palavrões, e Roberta Close, talvez a primeira mulher trans a obter notoriedade no Brasil, como convidadas de seu programa, ela não estava apenas selecionando ótimos papos, mas também encontrando as pessoas certas para DESAFIAR o alto escalão da emissora, os censores, o governo, todo mundo que achava que podia lhe colocar freios.

Falava de direitos das mulheres, defendia abertamente diante das câmeras os seus amigos da comunidade LGBTQI+, discutia AIDS e preconceito naquele famoso sofá que era pra todo mundo ver. E falava de política, né? Reclamava dos deputados, criticava os senadores, cobrava postura, presença, opinião. E chegou até a ser processada por isso, estando bem perto de ir parar na cadeia inclusive. Uma ativista que defendia “bichas e travestis” se posicionando contra uma censura que diziam por aí que não existia mais. Te lembra algo?

Mas o ponto é que a Hebe, mesmo com toda esta postura aparentemente mais progressista, era bastante contraditória justamente por sua amizade com figuras como Paulo Maluf. “Você quer posar de liberal e é toda amiguinha de político que foi indicado pela ditadura?”, esfrega na cara dela o diretor/produtor Walter Clark, ainda na Band. Neste ponto, o filme não foge do assunto, ainda bem. Por mais que a frase clássica, dita por ela em terceira pessoa, esteja lá, “A Hebe não é de direita, a Hebe não é de esquerda. A Hebe é direta”, também está o filho questionando a mãe, sobre o convidado ilustre que vem pra festa de Natal. “Todo mundo diz que ele é ladrão, mãe”, dispara o garoto. Ela fica sem jeito, mas acaba dando de ombros. “Cada um vota em quem quiser. E eu confio nele”. A voz já não parece ter láááááááá tanta certeza assim.

Além de ser certeiro ao encarar o espinhoso assunto da ditadura, o filme também tem um papel bem interessante ao mostrar que determinadas pautas de direitos civis não deveriam ser coisa considerada de “esquerdista”. Porque isso a Hebe não era, mas nem de longe. Só que era uma estrela que tinha lucidez o suficiente para dizer “todo mundo é igual e tem os mesmos direitos, não importa com quem se deite”. Isso deveria estar claro pra qualquer um nos dias de hoje, assim como estava claro para uma mulher claramente conservadora mais de três décadas atrás.

Curioso ainda que Hebe – A Estrela do Brasil também seja este filme da Globo Filmes que tem o símbolo do SBT pra tudo quanto é canto e que, pra completar, ainda tem uma Hebe falando mal da Globo sem papas na língua. “Eu tenho horror à Globo, jamais trabalharia lá”, diz ela, com asco, em certo momento da história. O motivo? “É tudo muito quadradinho, não iam me deixar ser eu mesma”.

Bom... tá errada? ;)

No fim, Hebe virou um símbolo. Uma marca. Mas tinha uma pessoa ali por trás, alguém que não teve medo de ser ela mesma, que conversava com a câmera com a mesma naturalidade de se estivesse falando numa mesa de boteco e era pura autenticidade. Talvez, nos últimos anos antes de sua morte em 2012, a gente possa argumentar que esta Hebe mais feroz tenha se “domesticado”? Talvez. Mas as muitas portas que ela abriu enquanto tinha um bocado de gente interessada em fechar foram um legado pra televisão brasileira que não se apaga. E é este legado que Andréa Beltrão nos faz rever e celebrar.