Richie Kotzen no Rio: todo o carisma do menino-veneno | JUDAO.com.br

Ele não é o Lionel. E tampouco tinha um abajur cor de carne. Mas sabe o poder do veneno de sua guitarra.

Num passado muito distante, Richie Kotzen tocou no Poison. Entrou substituindo um C.C. Deville que parara de funcionar sobre saltos tipo plataforma. Tocou também no Mr. Big, gravando os álbuns Get Over It (1999) e Actual Size (2001), que contém Shine, último grande hit do grupo. Retomou a carreira solo — antes de usar batom no Poison, era só mais um virtuoso do cast da Shrapnel Records —, e não parou mais, gravando quase que em escala industrial.

À medida que seu comportamento errático torna-se mais à prova de medicamentos, suas experimentações musicais transpassam novas fronteiras. Não é de hoje que abandonou a palheta e limitou seu equipamento a uma guitarra vintage e poucos pedais, quando usa algum. Segue inabalável, entretanto, seu bom gosto e capacidade de dar vazão aos sentimentos em letras que vez ou outra parecem entender e combater aquilo que nos aflige.

Na última terça, 14, Kotzen desembarcou no Rio de Janeiro para seu 99334º show na cidade; a frequência com que se apresenta por essas bandas é tão grande que virou motivo de piada na internet, mas é fato que o cara esgota os ingressos onde quer que toque. Richie subiu ao palco do Teatro Rival às oito e meia, com visual mais sóbrio que da última vez que o vira — nada de túnicas ou aquela aparência de mendigo do rock, consequência do Winery Dogs —, só o cabelo parecia não ver uma água há tempos, mas tudo bem.

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Foto: Daniel Croce

O público que o recebe é pura heterogenia: de jovens (o que estava imediatamente na minha frente na pista parecia que tinha saído de dentro de um pacote gigante de Cheetos) a nem tão jovens, incluindo alguns que já pegam ônibus de graça. Há homens e mulheres: eles, pelo artista completo que Kotzen é; elas, pelo cara bonitão de voz irresistível e que joga ombrinho enquanto canta. Perguntou-me uma amiga: “quando você crescer, quer ser igual a ele?”. “Quando eu ficar bonito, quero tocar que nem ele”, respondi.

Além de mobilizar tanta gente diferente, Kotzen tem o dom de dialogar com qualquer ser humano através de suas letras. Como seu ex-companheiro de Poison, o vocalista Bret Michaels, costuma dizer, enquanto houver corações partidos, haverá músicas para consolá-los. Mas ao contrário das expectativas e de certa torcida, o repertório não foi nada baladístico — exceto por What Is, tocada à voz e guitarra, no momento mais açucarado da noite. As demais 13 músicas tocadas em pouco mais de uma hora e meia de espetáculo serviram muito mais de plataforma para solos exuberantes e jams, sendo a mais WTF delas uma na qual Richie sentou-se à bateria e mostrou domínio sobre os principais fundamentos.

A elevação de músicas de originalmente quatro minutos a jams de cerca de sete cada mostrou ao público também o quanto Richie e banda (leia-se baixista e batera) estão entrosados e tocam despreocupados, como se estivessem ensaiando onde ninguém pudesse vê-los. Esse distanciamento em relação à plateia é traço comum do guitarrista, que, fora dos palcos, faz questão de ficar na sua; os poucos que conseguiram clicar selfies com o ídolo (este sempre com a maior cara de bunda) a exibiam como uma medalha de ouro olímpica.

O pontapé inicial fora dado com War Paint, música de trabalho de seu mais recente The Essential Richie Kotzen. A partir dela, o show delineou-se seguindo mais ou menos o roteiro proposto pela coletânea, com a pièce de résistance Into the Black (2006) comparecendo com uma trinca infalível: Fear (para a surpresa de quem não tá ligado no setlist.fm), Doin’ What the Devil Says to Do (todo mundo conhece alguém que esmurra ponta de faca por opção e não admite, certo?) e You Can’t Save Me, o mantra dos irreparáveis; talvez a mais autobiográfica já lançada por Kotzen, conclamando todos a cantar bem alto “Fuck your money, fuck your fame, fuck my life, I’ll walk away”.

Um saudosista que empunhava a capa do LP Native Tongue (Poison) deve ter saído desapontado: desta vez não rolou Stand. Shine também ficou de fora. Uma música nova, Cannibals, fez sua estreia nos palcos tupiniquins e deu a dica de que o próximo trabalho, previsto para 2015, será bem rock ‘n’ roll. Faltou Remember, faltou My Angel, faltou High, mas ao som dos compassos finais de Go Faster, a saideira, o feeling geral era mais de satisfação do que de contentamento. Podem ir marcando a data para o ano que vem; minha presença é mais certa que andar para a frente.

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Foto: Daniel Croce