Nos últimos anos, a Academia tem premiado filmes com algo a dizer. E este aqui tem MUITO.
OBRAS DO ACASO Não é de hoje que Hollywood vem denunciando as malandragens do capitalismo. Por mais estranho que isso seja, sendo Hollywood uma legítima representante da lógica capitalista. De qualquer forma, a complexa relação entre artistas e homens de negócios, presente em boa parte da produção cultural do planeta, permite esse tipo de contradição.
Assim, filmes como Wall Street, Na Natureza Selvagem, Clube da Luta, O Lobo de Wall Street e Tempos Modernos discutem a relação da sociedade com o mercado, o trabalho e o dinheiro. E colocam para pensar sobre o tal capitalismo as audiências entorpecidas por pipoca e refrigerante.
(Comprados a preço de caviar e champanhe, se você me permite o adendo. Mas segue o jogo)
O ponto é que o cinema parece disposto a não deixar o capital em paz. Desde que isso siga gerando capital, é verdade. Nos últimos anos vimos uma profusão de longas olhando para o sistema em que vivemos e enxergando problemas sérios. O Abutre, O Ano Mais Violento, o já citado O Lobo de Wall Street e até Uma Aventura Lego (!!!) são exemplos.
Tudo isso é, obviamente, um reflexo de forças mais progressistas ganhando projeção no mundo todo e questionando a eficiência de um sistema que permitiu a um grupo de 62 pessoas acumularem riqueza equivalente à da metade mais pobre de toda a população mundial. Sendo que essas 62 pessoas, no geral, não são gente lá muito admirável, por sinal… Depois que acabar esse post, dá uma lida nisso aqui. É um site de esquerda, mas é limpinho. Se dependermos da generosidade dessa galera aí pra resolver nossos problemas... Tamo. Lascado. Galera. Mas enfim, seguindo.
Se vemos uma aparente diminuição da pobreza extrema em muitos lugares do planeta, a desigualdade não para de crescer. Uma realidade que apenas o mais utópico dos liberais parece não enxergar. Essa ganância do mercado, ávido por lucros a qualquer preço, causou em 2008 a catástrofe econômica que até hoje espalha suas ondas (ou lulamarolinhas) pelo mundo.
(Queria ter usado a palavra “culminou” no lugar de “causou” no parágrafo acima. Coloquei em negrito pra você achar. Não rola falar “culminou” porque não culminou nada. O mercado segue mais ávido do que nunca)
Essa crise, tão significativa do momento econômico que vivemos, serviu de prato cheio para o cinema. De lá para cá, diversos filmes já usaram 2008 como tema, seja explicando o caos, seja criando histórias a partir dele. Entre eles, destaco os documentários Trabalho Interno, Capitalismo — Uma História de Amor e Collapse. E os longas de ficção Margin Call, de 2011 e, finalmente, A Grande Aposta.
Sei que você deve estar chateado com a volta que eu dei pra chegar no filme que é, em teoria, o assunto do texto. Especialmente se você for um liberal… Mas aguenta!
A Grande Aposta — em cartaz atualmente nos cinemas brasileiros — desponta como um dos favoritos para o Oscar deste ano. Favoritismo, aliás, mais que justificado. O filme conta o início da crise de 2008, mostrando como a bolha do mercado imobiliário americano foi o dominó que deflagrou o desmoronamento financeiro ao qual o mundo assistiu embasbacado naquele ano.
Protagonizado por gestores de fundos de investimento, que viram a inadimplência das hipotecas crescer e tiraram dali a previsão do colapso financeiro que viria, o filme consegue equilibrar com precisão o objetivo de explicar o que aconteceu com a necessidade de fazer isso de forma divertida.
Entra aí o talento do diretor Adam McKay. Responsável por filmes como O Âncora e Os Outros Caras, ele dá a A Grande Aposta um tom de comédia, mesmo que para isso não precise se apoiar apenas no talento cômico de Steve Carrell, em mais uma atuação dramática.
(Aliás, alguém mais já cansou do Carrell em papeis dramáticos? #VoltaMichaelScott)
Se o personagem de Carrell serve de lastro moral para a história, o personagem de Ryan Gosling orbita o lado oposto. Principal narrador do filme, ele enxerga na tragédia a chance de fazer muito dinheiro. E, num filme habitado por uma série de pessoas sem escrúpulos, McKay é feliz ao evitar o julgamento moral. Mas sem olhar para o outro lado no refere aos custos sociais da crise.
A Grande Aposta é um thriller, é uma comédia e — em muitos momentos — é também quase um documentário. Sabendo da aspereza do assunto que trata, cheio de terminologias que poucas pessoas entendem, ele pega a audiência pela mão diversas vezes. A narrativa é interrompida frequentemente para explicar os termos e conceitos mais complexos, de forma didática. E os personagens quebram a quarta parede e falam diretamente com o espectador em vários momentos, num recurso que não só serve para amplificar o tom didático, mas também para expor o cinismo e amoralidade dos atos vistos na tela.
E se eu disser que mesmo com tanto didatismo e explicações, ainda saí do cinema com algumas dúvidas? Vai me chamar de burro? Então pode chamar.
O arrojo de A Grande Aposta não está apenas em sua estrutura de roteiro pouco comprometida com a formalidade. A montagem também é um primor, trabalhando com sugestões e colagens de imagens para representar tanto o ponto de vista de personagens quanto para criar um clima crescente de tensão conforme o caos vai se aproximando. De todas as indicações que o filme levou no Oscar, montagem certamente é a mais merecida.
Muito tem se falado sobre a possibilidade de um prêmio de Melhor Filme para A Grande Aposta, especialmente após a vitória importante na premiação do Sindicato dos Produtores dos Estados Unidos. E, se você olhar em retrospecto, faria sentido. Não sei se você sabe, mas o Oscar não premia o melhor filme do ano. Aliás, isso nem existe, né? Como comparar Spotlight com Mad Max? Não rola, cara. O Oscar premia outra coisa. Não sei bem o quê. Mas outra coisa.
Queira ou não queira, salvo bobagens como O Discurso do Rei, nos últimos anos a Academia tem premiado filmes com algo a dizer. Birdman pode não ter sido o melhor filme de 2014, mas com certeza é um filme com culhão. O mesmo vale para 12 Anos de Escravidão, O Artista ou Guerra ao Terror.
Assim, se um filme com um olhar tão contundente sobre o sistema capitalista e sobre o mercado acabar levantando o caneco em 28 de fevereiro, bom pra nós. Bom para os progressistas. E bom pra sociedade. Nada como um Oscar para fazer mais gente parar para assistir A Grande Aposta. Quer apostar?
Tá bom. Desculpe o trocadalho do final. :(
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